Lava-Jato é filha da impunidade

"Ao optarmos pela impunidade demos a Dellagnol e sua turma o recado de que não existe pecado do lado debaixo do Equador", escreve a jornalista Denise Assis

Procurador Deltan Dallagnol 10/03/2020
Procurador Deltan Dallagnol 10/03/2020 (Foto: REUTERS/Rodolfo Buhrer)


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Por Denise Assis, para o Jornalistas pela Democracia 

A impunidade nos trouxe até aqui. Nós permitimos a formação de pelo menos duas gerações de advogados, distanciados do que foi o período totalitário e afeito a torturas, prática de que nos fala o ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal (STF), em entrevista ao site “Jota”, na tarde de ontem (09/02). Mendes se referia ao julgamento ocorrido no Supremo, que autorizou (por 4 X 1) o acesso da defesa do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, às conversas, na íntegra, ocorridas no âmbito da Lava-Jato.

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Não discutimos com a sociedade sobre a gravidade e os danos causados pelo período de arbítrio. Demos a entender que tudo é digerível, tudo é desculpável. Deixamos de transmitir a esses profissionais o sentido da ética, dos valores e da vida. Basta observar o que cita o ministro na entrevista, para entender que o “link” com este passado é inevitável.

“Ontem li uma pequena frase, mas muito ilustrativa envolvendo o [Deltan] Dallagnol. Ele diz ‘nós ameaçamos de mandar essa pessoa para o IML de Curitiba’, que parece que as condições de saúde do próprio presídio eram precárias. ‘E ela já se dispôs a delatar, decidiu cooperar rs’. Veja como é efetivo isso. Em algum lugar mais sensível e talvez mais ortodoxo em matéria de Direito vai se dizer: ‘essa gente estava se permitindo a torturar pessoas’. É lícito isso?”, questionou Mendes.

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Não, ministro. Não é lícito. É tortura, sim. Ameaçar pessoas de morte para que confessem o que se quer que ela diga é exatamente isto: tortura. E quem ensinou Dellanol estas práticas? A impunidade. Ainda em estado de perplexidade, Gilmar Mendes volta a se questionar: “Mas a pergunta que me ocorre como homem do Direito é: o que nós fizemos de errado para que, institucionalmente, produzíssemos isso que se produziu?”

Não fizemos, ministro. Deixamos a vida nos levar, em ritmo de pagode. Fomos tocando o barco. Fizemos, sim, foi vista grossa às atrocidades cometidas em nome do Estado e pelo Estado. Não tenho outra resposta que caiba em sua pergunta. E muito me admiro que o senhor, um “homem do Direito”, não consiga fazer a ligação entre passado e presente. Entre impunidade e mau exemplo. Entre o que se releva e os vícios advindos deste ignorar conivente. Não punimos os torturadores pagos pelo Estado para estuprar, matar, queimar, arrancar mamilos a dentadas e fazer corpos desaparecer.

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Ao optarmos pela impunidade demos a Dellagnol e sua turma o recado de que não existe pecado do lado debaixo do Equador. Demos a entender ser isto perfeitamente tolerado no Brasil. Por isto ele se sentiu à vontade para dizer a seu preso que ele iria para o “IML”. Nunca é demais traduzir: Instituto Médico Legal, para onde vão os corpos dos que morrem por morte violenta ou suspeita e por isto precisam ser periciados.

Gilmar Mendes se espanta e exclama, durante o julgamento ocorrido ontem, no STF: “ou nós estamos diante de ficção, ou nós estamos diante de um caso extravagante. É o maior escândalo judicial da história da humanidade, é disso que estamos falando. A República de Curitiba envergonha os sistemas totalitários, eles não tiveram tanta criatividade”, disse. O que Gilmar Mendes está descrevendo é a história de um país que viveu traumas intensos e seguiu em frente.

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Como se estivesse em algum planeta distante, o ministro saiu do julgamento impactado. Parecia um personagem da peça “O Rinoceronte”, de Eugène Ionesco, onde todos da cidade se transformam no animal, mas o protagonista Bérenger, resiste à mutação.  Juro que ao ler as indagações de Mendes eu quase o vejo a passar a mão pelo nariz, para verificar se está lhe nascendo um chifre de rinoceronte, enquanto comenta sobre sua visão, hoje, do que foi a “República de Curitiba”:

“Um setor que se desliga por completo, que não está acoplado a nenhum sistema jurídico funcional, que cria a sua própria Constituição e que passa a operar segundo os seus sentimentos de justiça. O Russo, que é o Moro, criou seu próprio Código de Processo Penal, o CPP da Rússia. Sabiam que estavam fazendo uma coisa errada, mas fizeram com o sentimento de que tudo estava coberto”, afirmou. Ministro, volto a repisar: é o mau exemplo da impunidade. Moro tinha o seu “Código de Hamurábi” (1772 a. C.). E quem não sabia? E por que não nos ouviram, quando falávamos e escrevíamos isto aos quatro ventos? E sem se dar conta de que passou recibo de alheamento, volta a se admirar:

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“Eu tenho a impressão de que tudo que foi revelado nos enche de constrangimento. Muitos colegas que despacharam e que deram azo a alguns episódios desse assunto certamente têm muito constrangimento ao ver que de alguma forma foram cúmplices de algo deplorável”, completou. E onde estava o ministro quando tudo isto aconteceu? É o caso de se perguntar…

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