Kim No-Vax e o DARPA
Um exercício De Volta ao Futuro: uma viagem no tempo para examinar o cenário da ciência-tecnologia em meados da década de 1980
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Por Pepe Escobar, para o Asia Times
Tradução de Patricia Zimbres, para o 247
Venho vasculhando meus arquivos do Asia Times para selecionar reportagens e colunas para meu novo e-book sobre as Guerras Eternas - Afeganistão e Iraque. Mas então, sem mais nem menos, encontrei esse palimpsesto, originalmente publicado pelo Asia Times em fevereiro de 2014. Por acaso, tratava-se de um exercício de De Volta ao Futuro - uma viagem no tempo para examinar o cenário de meados da década de 1980 no Vale do Silício, no laboratório de IA do MIT, na DARPA (Agência de Projetos de Pesquisa Avançada em Defesa), e na NSA (Agência de Segurança Nacional), tecendo uma intersecção de temas e um fabuloso elenco de personagens, que prefiguram o Bravo-Tecno Mundo Novo no qual estamos agora imersos, em especial no que trata do papel da inteligência artificial. De modo que este artigo pode ser lido hoje como uma espécie de preâmbulo, ou um texto trazendo os antecedentes históricos para Não há como escapar de nosso mundo Tecno-feudal, publicado no início deste mês. Incidentalmente, tudo o que ocorre nesse particular já estava acontecendo 18 anos antes do fim do projeto Lifelog do Pentágono, coordenado pela DARPA, e o simultâneo lançamento do Facebook. Divirtam-se nessa viagem no tempo.
Na primavera de 1986, De Volta ao Futuro, o blockbuster com Michael J. Fox contando a história de um carro DeLorean viajando no tempo, tinha pouco mais de um ano. O Macintosh da Apple, lançado por meio de um único e icônico anúncio dirigido por Ridley Scott (Blade Runner) tinha menos de dois anos. Ronald Reagan, imortalizado por Gore Vidal como "o presidente ator", saudava os mujahideen do Afeganistão como "combatentes pela liberdade".
O mundo estava atolado no modo Guerra Fria Cibernética; só se falava de contra-medidas eletrônicas, com os 3Cs dos Estados Unidos (comando, controle, comunicações) programados para destruir os 3Cs soviéticos, e tanto os Estados Unidos quanto a URSS usando políticas nucleares MAD (mutually assured destruction - destruição mutuamente garantida), e capazes de destruir a Terra cem vezes. Edward Snowden ainda não tinha três anos de idade.
Foi nesse contexto que me lancei a escrever um relatório especial para uma revista hoje falecida sobre a IA (inteligência artificial), me deslocando do Computer Museum de Boston à Apple, em Cupertino, e à Pixar, em San Rafael, e depois aos campi das Universidades de Stanford, Berkeley e MIT.
A IA havia sido "lançada" em 1956 por John McCarthy, de Stanford, e Marvin Minsky, que futuramente viria a ser professor no MIT que, nessa época era graduado em Harvard. A ideia básica, segundo Minsky, era de que qualquer traço de inteligência poderia ser descrito com tamanha precisão que uma máquina poderia ser criada para simulá-lo.
Minha viagem, inevitavelmente, implicava conhecer um elenco fabuloso de personagens. No laboratório de IA do MIT havia Minsky, e também um iconoclasta inveterado, Joseph Weisenbaum, que cunhou o termo "intelligentsia artificial" e acreditava que os computadores jamais conseguiriam "pensar" exatamente como um ser humano.
Em Stanford havia Edward Feigenbaum, absolutamente paranoico com o progresso científico japonês, que acreditava que se os japoneses viessem a desenvolver um computador de quinta geração baseado em inteligência artificial, que conseguisse pensar, raciocinar e falar até mesmo uma língua difícil como o japonês, "os Estados Unidos poderão ver a si mesmos como a primeira grande sociedade agrária pós-industrial".
E em Berkeley, ainda à luz da chama do populismo utópico hippie, encontrei Robert Wilensky - sotaque do Brooklyn, brilhantismo de Yale, tons californianos - e o filósofo Hubert Dreyfus, um incansável inimigo da IA, que se divertia dando palestras tal como "A IA Convencional como Paradigma da Pesquisa Degenerada".
Apresentando Kim No-Vax
Não demorou para que eu mergulhasse por completo nos "quadros" de Minsky - um conceito básico para organizar todos os programas de IA subsequentes e o paradigma de Chomsky: a ideia de que a linguagem está na raiz do conhecimento, e que a sintaxe formal está na raiz da linguagem. Essa foi a Bíblia da ciência cognitiva no MIT.
Minsky era um entusiasta sério da IA. Um de seus temas favoritos era o de que as pessoas sofrem de "chauvinismo de carbono": "Isso é de importância central para o fenômeno da IA. Porque é possível que formas mais sofisticadas de inteligência não estejam incorporadas em forma celular. Se houver outras formas de vida inteligente, poderíamos então especular sobre outros tipos de estrutura de computadores".
Na cafeteria do MIT, Minsky apresentou um rap futurista sem a menor semelhança com o Dr. Emmett Brown, de De Volta ao Futuro:
Creio que em menos de cinco séculos estaremos produzindo máquinas muito semelhantes a nós, representando nossos pensamentos e pontos de vista. Se conseguirmos construir um cérebro humano miniaturizado pesando, digamos, um grama, podemos alojá-lo em uma nave espacial e fazê-la viajar à velocidade da luz. Seria muito difícil construir uma nave espacial para levar um astronauta e toda a sua comida para uma viagem de 10 mil anos...
Com o Prof. Feigenbaum, no jardim filosófico de Stanford, só houve espaço para o apocalipse amarelo que estava por vir. Mas então, um dia, eu cruzei o Rubicão pós-hippie de Berkeley e abri a porta do quarto andar do Evans Hall, onde encontrei ninguém menos que Kim No-Vax.
Não, não se tratava da loura de Hitchcock e ícone de Vertigo, e sim de um hardware de computador alterado (No-Vax porque tinha ultrapassado a linha VAX de supercomputadores da Digital Equipment Corporation), financiado pelo melífluo acrônimo do Darpa, a agência militar do Pentágono, decorado com uma foto de Kim Novak, e zumbindo em uma vibração sexy de 2.900 megabites - àquela época imensa - de dados eletrônicos espalhados por todo o seu corpo.
A Agência de Projetos de Pesquisa Avançada em Defesa (DARPA) do governo dos Estados Unidos tratava unicamente de ciência da computação. Em meados da década de 1980, a DARPA estava imersa em um projeto muito ambicioso ligando microeletrônica, arquitetura de computadores e IA, que ia muito além de um mero programa militar. Uma comparação possível seria o programa japonês de computadores de quinta geração. No MIT, a maioria esmagadora dos cientistas torcia pela DARPA, o que deixava claro o quanto aquela agência liderava nas pesquisas. No entanto, Terry Winograd, professor de ciência da computação em Stanford, advertiu que se a DARPA fosse um órgão civil, "creio que teríamos feito progressos muito maiores".
Coube ao Professor Dreyfuss trazer a voz da razão em meio a tanta ciber-euforia: "Os computadores não conseguem pensar com um ser humano porque não há como representar todo o conhecimento retrospectivo de uma vida humana média - isso é senso comum - em uma forma capaz de ser apreendida por um computador". A motivação de Dreyfus era que, com a rápida expansão da ciência da computação, a filosofia estaria morta - e ele era filósofo: "Heidegger disse que a filosofia havia chegado ao fim porque havia atingido seu ápice na tecnologia. A filosofia, na verdade, atingiu seu limite com a IA. Eles, os cientistas, herdaram nossas perguntas. O que é a mente? Agora eles terão que responder por isso. A filosofia acabou".
No entanto, Dreyfus continuava lecionando. Da mesma forma, no MIT, Weizenbaum condenava a IA como uma trama para "lunáticos e psicopatas" - mas continuou trabalhando no laboratório de IA.
A NSA tem sonhos molhados com a rede
Não demorou nada para que eu, com a ajuda dessas mentes brilhantes, entendesse que o "segredo" da AI seria uma questão militar, e isso significava a Agência de Segurança Nacional (NSA) - já em meados da década de 1980 vagamente conhecida como "não há nenhuma agência com esse nome", com o dobro da verba anual da CIA para bancar a bisbilhotice em todo o planeta. A missão, naquela época, era penetrar e monitorar a rede eletrônica global - isso foi anos antes da badalação toda sobre a "estrada da informação" - e ao mesmo tempo, reassegurar o Pentágono quanto à inviolabilidade de suas linhas de comunicação. Para aqueles camaradas - lembram-se, a Guerra Fria ainda existia, mesmo com Gorbatchev no poder na União Soviética - a IA foi um presente de Deus (vencendo do Papa Francisco por quase três décadas).
Então, o que tramavam o Pentágono e a NSA, no auge da Guerra nas Estrelas e mais de uma década e meia antes da revolução nas questões militares e da doutrina de domínio de espectro total?
Eles já queriam controlar seus navios, aviões e armamentos pesados com a voz, e não com as mãos - comando de voz à la Hal, o computador-celebridade de 2001: Uma Odisseia no Espaço, de Stanley Kubrick. Mas isso ainda era um sonho longínquo. Minsky era de opinião de que "só no próximo século" conseguiríamos conversar com um computador. Outros acreditavam que isso jamais aconteceria. Seja como for, a IBM já estava trabalhando em um sistema que aceitasse ditado, e o MIT, em um outro sistema que identificava palavras faladas por diferentes pessoas, enquanto a Intel desenvolvia um chip especial para tudo isso.
Embora proibido de visitar a NSA, como seria de se prever, logo fiquei sabendo que o Pentágono esperava estar de posse de sistemas de computadores "inteligentes" até a década de 1990. Hollywood, afinal já havia lançado a série Terminators. Coube ao Prof. Wilensky, de Berkeley, soar o alarme:
Os seres humanos não possuem uma engenharia adequada à sociedade que desenvolveram. Ao longo de um milhão de anos de evolução, o instinto de se juntar em pequenas comunidades, beligerantes e compactas, acabou por se mostrar acertado. Mas então, no século XX, os homens pararam de se adaptar. A tecnologia ultrapassou a evolução. O cérebro de uma criatura ancestral, como o de um rato, que vê provocação no rosto de qualquer estranho, é agora o cérebro que controla o destino da Terra.
Era como se Wilensky estivesse descrevendo a NSA tal como ela viria a ser 28 anos mais tarde. Algumas perguntas ainda permanecem sem resposta: por exemplo, se é verdade que nossa raça não combina mais com a sociedade que ela construiu, quem garantiria que as máquinas foram construídas de forma correta? Quem garantiria que as máquinas inteligentes agiriam em nosso benefício?
O que já estava claro naquela época é que computadores "inteligentes" não poriam fim a uma corrida armamentista global. E ainda levaria muito tempo até que as revelações de Snowden, em 2013, fizessem com que grande parte do planeta passasse a ter uma ideia mais clara da forma como a NSA orquestra o complexo Orwelliano-Panopticon. Quanto à minha viagem de volta ao futuro, eu, no final das contas, não consegui descobrir o "segredo" da IA. Mas sempre pensarei com muito carinho em Kim No-Vax.
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