Justitia violada
Mariana Ferrer é mais uma vítima do sistema patriarcal covarde, apoiado no dinheiro e no poder, que insiste no projeto de silenciamento feminino
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A condução do julgamento do caso de estupro contra Mariana Ferrer, que resultou na absolvição do estuprador, foi considerada estarrecedora pelo ministro Gilmar Mendes, do STF. Quando do resultado, ainda no dia 03 de novembro, às 15h57, o referido ministro tuitou: “As cenas da audiência de Mariana Ferrer são estarrecedoras. O sistema de justiça deve ser instrumento de acolhimento, jamais de tortura e humilhação. Os órgãos de correição devem apurar a responsabilidade dos agentes envolvidos, inclusive daqueles que se omitiram”. O tuite do ministro foi retuitado 18,1 mil vezes, teve 5.363 comentários e foi curtido 79,5 mil vezes.
As cenas consideradas estarrecedoras por Gilmar Mendes não são, ao contrário do que se possa pensar, exceção. Para a maioria da população brasileira, composta de pobres, mulheres, pretos e LGBTQAI+ entre outros, a decisão da justiça embora cause indignação não causa espanto, uma vez que as pessoas que pertencem a estes estratos sociais sabem que é exatamente assim que funciona a caolha justiça brasileira. Acrescente-se que parte da população brasileira vive nos andares de baixo da República e não tem nenhum respeito pela justiça brasileira. Tem apenas medo, por saber tratar-se de uma justiça punitiva sempre pronta a aplicar as leis com mão de ferro aos sem voz, vez e dinheiro.
Observe-se, por exemplo, a dificuldade das pessoas mais carentes em ter acesso à justiça. Nota-se a recorrente má vontade desta mesma justiça, nas figuras de seus agentes, quando do trato com os mais simples, aqueles que mais precisam do abrigo das leis. Quando esses recorrem à justiça costumam ser olhados de cima pra baixo, com o desdém daqueles que deveriam ajudar, pois são pagos, diga-se, muito bem pagos para isso. E o que dizer dos pretos e pobres que, apenas por serem pretos e pobres, já são condenados com antecedência? Assim, para estas pessoas, ao contrário do que afirma o ministro Mendes, o nosso sistema de justiça está longe de ser um “instrumento de acolhimento”. É sim, como visto na audiência de Mariana Ferrer, instrumento de tortura e humilhação, fazendo corar de vergonha a deusa Justitia.
Decisões estapafúrdias como a do caso do “estupro culposo” estão sendo filmadas e divulgadas. Que bom! E aquelas decisões que não são nem filmadas nem divulgadas? E os conchavos que se dão, dizem, nas antessalas dos deuses do judiciário? E o que dizer dos magistrados e magistradas pegos com a boca na botija na venda de sentenças? Há muito a se cavar. E quanto mais se cavar, mais esqueletos virão à superfície. Mas a quem interessa cavar, quando os corpos podem ser, simplesmente, varridos para baixo do tapete?
Mariana Ferrer é mais uma vítima do sistema patriarcal covarde, apoiado no dinheiro e no poder, que insiste no projeto de silenciamento feminino. Para o macho predador, branco e rico a mulher não passa de um objeto a ser usado a seu bel prazer, subalternizado, silenciado e descartado; sendo o estupro uma forma de demonstração de poder político, financeiro, de força e de decisão do macho sobre a mulher.
Desde os primórdios da história da humanidade o macho tem sido cruel, covarde e criminoso para com a mulher, tentando silenciá-la sempre, como bem afirma a historiadora Mary Beard em seu livro Mulheres no poder: um manifesto, de 2018, de leitura indispensável. Lá, a autora faz um apanhado de algumas situações da história, mitologia e literatura, que se constituem como registros da perseguição sofrida pelas mulheres ao longo dos tempos. Na Odisseia (VIII a.C), por exemplo, o silenciamento feminino se dá, entre outros casos, quando Telêmaco impede que sua mãe, Penélope, fale em público. Cassando-lhe a voz, Telêmaco tenta anulá-la como sujeito. Não foi isso, cara leitora, que fez aquele advogado ao humilhar Mariana Ferrer?
Nas Metamorfoses (8 d. C), de Ovídio (sugerimos a tradução de Bocage), tem-se a figura de Filomela, que é estuprada por Tereu, seu cunhado, marido de Progne, sua irmã. Na tentativa de impedir que Filomela denuncie a violência sofrida, seu algoz decide cortar-lhe a língua. Silenciada, Filomela usa uma tela na qual informa sua irmã do ocorrido. Não foi isso, cara leitora, que fizeram os homens na audiência de Mariana Ferrer, que mesmo tendo a “língua cortada” usou uma tela para denunciar ao mundo a violência que sofrera?
Escrita por volta de 1584, Tito Andrônico é considerada a mais sangrenta das tragédias de William Shakespeare. Na peça, Lavínia, filha de Tito, é estuprada por Demétrio e Quirão. Para que não possa denunciar o estupro, os criminosos cortam sua língua e suas mãos na tentativa de impedi-la de se comunicar. Por toda a peça, Lavínia se torna o exemplo mudo de um sofrimento extremo, o que acaba por torná-la uma representação do sofrimento das milhares de mulheres vilipendiadas mundo afora.
Os exemplos que utilizamos aqui, de forma ilustrativa (ao vivo, como diz o poeta, “a vida é muito pior”), não são nada frente ao número de casos de violência e milhares de feminicídios em todo o mundo (enquanto você lê este texto, mulheres estão sendo espancadas, estupradas, mortas), tendo o Brasil como um dos países a liderar os índices. Assim, nos parece pra lá de lamentável ver circos de horrores regados à tortura psicológica, como o que foi promovido na audiência que estarreceu o ministro Mendes e indignou o país. Diante de tudo isto, cabe-nos perguntar: A quem serve uma justiça como esta, que promove cenas tão dantescas? A serviço de quem estão estes servidores públicos? O judiciário brasileiro é uma terra sem lei? A constituição Federal ainda serve como balizamento legal ou devemos esquecê-la? Quem investiga e pune (se/quando necessário) os deuses e deusas do Olimpo do judiciário brasileiro? Quem restituirá a honra de Mariana? Quem retirará a humilhação que lhe foi covardemente imputada apenas por ser mulher e existir?
Com a palavra, nossa Democracia Constitucional, pois Justitia foi barbaramente violentada.
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