Justiça e Judiciário impedem a saída da crise
Sem política não há possibilidade de construção de normas e sem estas não há segurança. A política, como debate de interesses e soluções, é a própria expressão da sociedade. Saber valorizá-la acima das inevitáveis disfunções trazidas principalmente pela banca já é parte da solução
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Lê-se no Evangelho de Marcos (12, 38-39): "tomai cuidado com os doutores da lei. Eles gostam de andar com roupas vistosas, de ser cumprimentados nas praças públicas, gostam das primeiras cadeiras nos templos e dos melhores lugares nos banquetes".
A sociedade humana coloca-se, desde sempre, com questões relativas a sua organização e à convivência de seus membros. E é aí que entra o direito. No livro de meu grande mestre Hermes Lima há esta conceituação do direito positivo: "conjunto de regras de organização e conduta que, consagradas pelo Estado, se impõe coativamente" (Introdução à Ciência do Direito, Livraria Freitas Bastos, RJ, 12ª edição, 1962).
Neste meio século que nos medeia muitas mudanças ocorreram, não só no Brasil mas no mundo. A mais notável, para mim, foi a ressurreição do capitalismo financeiro – o neoliberalismo – derrotando a experiência socialista marxista da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), o capitalismo industrial e, de maior gravidade, sepultando a solidariedade em nome da competitividade. As consequências desta filosofia de vida estão na base das disfunções sociais, aqui avultando a corrupção, como aspecto ético.
À competição se uniram as desregulações, formando um verdadeiro pacto para a disrupção social. E o que estamos assistindo, perplexos, no Brasil, já não é apenas uma continuada intervenção colonial, o avanço imperialista sobre nossas riquezas, mais acirrada pelo estágio atual do capitalismo. Vivemos uma ruptura com a própria humanidade e, em consequência, o desfazimento dos pactos sociais, o desborôo do direito, como definido por Hermes Lima.
Muito me valerão, nas reflexões sobre as normas, os conceitos e exemplos que encontrei em notáveis trabalhos do jurista e historiador português, professor António Manuel Hespanha, em especial O Caleidoscópio Do Direito – O Direito E A Justiça Nos Dias E No Mundo De Hoje (Almedina, 2ª edição, reelaborada, Coimbra, 2014).
De início vamos colocar um contraponto à visão inspiradora do "direito neoliberal", surgida no século XVIII, com a atualidade da antropologia jurídica, que se desenvolve a partir de 1950. Nesta área são fundamentais, em especial para nós brasileiros, os trabalhos do jus-sociólogo Boaventura de Souza Santos, como sua Epistemologias Do Sul, trabalho coletivo, organizado em colaboração com Maria Paula Menezes (Almedina, 2ª edição, Coimbra, 2010).
Os golpistas de 2016, com secular retardo intelectual, pelejam por "reformas" que melhor chamaríamos "retrocessos", para que a insegurança, já enorme no País, aumentasse ainda mais, sob a proteção da lei.
Vejamos a questão da segurança. Ela está, sob vários significados, presente nas manifestações e demandas da sociedade. Ora, e mais constantemente, voltada para as questões da violência urbana, das ações criminosas que o desemprego, outra insegurança, só faz aumentar. Mas também se pensa na segurança face a potencial inimigo externo, ou na impossibilidade de prever os ônus de um empreendimento econômico ou o desenlace de uma pendenga nos tribunais.
Existe uma insegurança própria deste mundo neoliberal onde as próprias fortunas se esboroam num piscar de olhos. O que efetivamente dá garantia a todos, e não somente aos que a podem comprar, é um sistema de justiça que reflita os valores da sociedade. Escreve Hespanha na obra citada, o risco "está na modernização da organização econômica", ao que acrescentaria eu, e na forma com que ela lhe é comunicada. Temos, assim, dois pontos fulcrais: a economia e a comunicação. No devido momento trataremos deles.
Mas que não haja desânimo. Há casos como do Canadá, da Bolívia e do Equador onde as garantias constitucionais já atingem, com especificidade, povos que habitam no interior destes países e se consideram, a si mesmos, como autônomos, o que inaugura um novo paradigma constitucional.
A indiscutível desigualdade, os desequilíbrios das mais diversas ordens que invadem nosso cotidiano, acarinham a ideia que a democracia não é apenas a manifestação de uma maioria, é também a deliberação das "minorias" e o respeito a suas regras de convivência. Isto desloca determinado candidato à Presidência do Brasil ao pré-Estado.
Vamos então focar o judiciário. A justiça ainda se torna mais reles quando o processo para obtê-la se legitima por simples atos, ou ausência deles, de seus executantes, em outras palavras, a justiça faz do rito o próprio conteúdo decisório. E quantas vezes os prezados leitores conheceram ou até sofreram esta realidade?
Niklas Luhmann (1927-1998), observou que o direito trata as expectativas normativas de forma diferente de qualquer outro sistema, com uma capacidade de resistência, em caso de conflito, que são mantidas como expectativas mesmo no caso de serem frustradas, e que tudo isso é sabido e feito saber antecipadamente. A normatividade é uma estabilidade contra os fatos; decide os conflitos mesmo antes deles se darem (Le droit comme système social, artigo em Niklas Luhmann Observateur Du Droit, de Pierre Guibentif, LGDL, Paris,1993).
Destes entendimentos surge um ponto básico: as normas do direito devem ser tais que não possam ser alteradas do sentido que a sociedade lhes dá e que mudando o sentido da sociedade são as normas que o devem acompanhar e não novas interpretações ou formas de obter suas aplicações. Isto pressupõe, então, que o órgão legislador represente, efetivamente, toda – sublinho o toda – a sociedade e se sobreponha ao executor das normas.
Temos então a norma jurídica como referencial para segurança social, pois representa o entendimento comum da sociedade sobre o assunto e estará sempre adequada às mudanças da própria sociedade, vez que o processo legislativo é permanente e as mudanças sociais sempre ocorrem. A lentidão das mudanças pode significar a sociedade estagnada, mantendo a mesma representação de poder.
Voltemos à questão econômica. É ridículo dissociar economia-sociedade e, consequentemente, economia-direito, via sociedade. Os ordenamentos que disciplinarão estas relações são próprios das normas estabelecidas. Tautológico!
O que se discutiria, e pretendo fazê-lo em posteriores reflexões sobre a constituição, é a identidade das normas aos anseios da sociedade. E a economia e a comunicação entram aí.
Comecemos pela comunicação que se apresenta em duas situações: na elaboração da norma e na aplicação da norma, ambas passíveis de disfunções.
A banca, ou o sistema financeiro internacional, foi o segmento que melhor entendeu e se utilizou da comunicação. O que chamamos comunicação é a junção de vários conhecimentos que se desenvolveram, a partir dos anos 1940, nas áreas das ciências exatas e sociais, voltados para a produção, transmissão e recepção de mensagens.
Lucien Sfez, em seu livro A Comunicação (Martins Fontes, SP, 2007), escreve: "se a realidade se tornou uma noção sem conteúdo real, se a mensagem não tem mais sentido, se não há mais fronteiras entre o fora e o dentro, se a própria expressão se torna uma construção oca, pois tudo o que lhe resta é se repetir indefinidamente como seu mesmo, sem diferenças, então a mensagem deve ser tratada da mesma maneira. Elas não tem mais realidade nem mais peso para dizer o que se passa do que o teriam outras mensagens que dissessem o contrário ... porque nada diriam". Ou, como em outra passagem, "a realidade remete à ficção e onde a ficção é a própria realidade" (remetendo a Baudrillard).
Está aí a desconfiança, hoje reinante, numa eleição para constituinte e até para um novo congresso, se feitas nas contestáveis e manipuláveis normas vigentes. O que representam estas normas, efetivamente, senão o maior poder da economia, no caso do Brasil e outros países, dirigida pela banca, sobre qualquer outro interesse nacional: político, social, tecnológico, e mesmo da manutenção do Estado.
O alerta de Hespanha coloca a questão brasileira num verdadeiro impasse: a norma e seus aplicadores, pelas razões das próprias normas, não espelham a sociedade. A comunicação, controlada pela banca, impede a compreensão da sociedade, mesmo diante de sua própria vivência, da sua realidade, o que possibilitaria a transformação e não se previu uma saída normativa que quebrasse este circuito.
Ademais, os poderes vigentes, com ou sem voto, não se dispõe a romper com a confortável situação que a banca, em termos majoritários, lhes proporciona.
Foram situações desta natureza que possibilitaram ditaduras, eleitas ou conquistadas, sem o repúdio social que as derrubasse.
Por ora, embora difícil e lento, mantido o entendimento democrático, é a conscientização, à margem das mídias tradicionais e dominantes, de que toda solução sempre é política. Sem política não há possibilidade de construção de normas e sem estas não há segurança. A política, como debate de interesses e soluções, é a própria expressão da sociedade. Saber valorizá-la acima das inevitáveis disfunções trazidas principalmente pela banca já é parte da solução.
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