Jafar Panahi explora as fronteiras no/do cinema

O que mais importa em Sem Ursos é sua parábola sobre a responsabilidade do cinema (e da captação de imagens, por extensão) sobre a vida das pessoas

(Foto: Divulgação)


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Com Abbas Kiarostami, Mohsen Makhmalbaf e o próprio Jafar Panahi, o cinema iraniano consagrou um modelo de filme híbrido, em que realidade e encenação se imbricam infinitamente para representar dilemas humanos contundentes. Esses procedimentos evoluíram para uma espécie de fetiche, com a própria encenação se abrindo em camadas de "realidade-dentro-do-filme-dentro-do-filme". Assim é Sem Ursos (Khers nist), o mais recente imbroglio cinematográfico de Panahi.
Quando proibido de filmar pelo governo iraniano, ele driblava a interdição com diferentes estratégias, como se via em Isto Não é um Filme e Taxi Teerã. Depois foi autorizado a filmar, mas não podia sair do país. Deslocou-se, então, para uma aldeia próxima à fronteira da Turquia para fazer o papel de si mesmo enquanto dirigia, remotamente, um filme rodado numa cidade turca. Fez questão de carregar o seu próprio nome e citar o da mulher, Tahereh Saidii. Como o personagem de O Vento nos Levará, de Kiarostami, que subia a uma colina para conseguir sinal do celular, Panahi faz o mesmo para tentar uma conexão que lhe permita se comunicar com a equipe e orientar as filmagens à distância com seu notebook.

Hospedado por um aldeão humilde, ele fotografa e interage com os locais nas horas vagas. Ao fotografar um casal, porém, se vê no centro de uma disputa amorosa grave, calcada em velhas tradições da aldeia. Por razões diferentes, todos exigem a foto, e Panahi precisa se desvencilhar do pandemônio. Forçado a fazer um juramento, ele propõe filmar a cerimônia perante os anciãos da aldeia e as partes interessadas. 

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De amor trata também o filme-dentro-do-filme. Um casal de iranianos exilado na Turquia tenta obter passaportes a fim de emigrar para a Europa. A moça já foi presa e torturada. O homem sofre de problemas de saúde. Tudo, afinal, parece correr bem até a hora decisiva, quando a atriz sai da personagem e explode numa surpreendente contestação. A dobra entre ficção e realidade-dentro-da-ficção chega a nos desnortear. 

Fica claro, então, que há um desnível entre a história vivida por Panahi na aldeia, que é densa e bem conduzida, e a história que ele filma, afinal um tanto rala. 

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Mas o que mais importa em Sem Ursos é sua parábola sobre a responsabilidade do cinema (e da captação de imagens, por extensão) sobre a vida das pessoas. Panahi se coloca num papel ingrato, como se oferecendo em holocausto para chamar atenção sobre essa responsabilidade. Fazendo as vezes de um personagem passivo, ele deixa que a culpa recaia sobre seus ombros nas duas camadas do filme, ambas trágicas.

Vale a pena observar, ainda, o papel das fronteiras no filme. Panahi é tentado a cruzar a fronteira com a Turquia por uma estrada usada por contrabandistas de pessoas. Essa tensa sequência é um libelo contra a obstrução dos artistas pelo regime iraniano. Mas a questão das fronteiras se estende também aos limites entre a consciência citadina (Panahi é um homem de Teerã) e os preceitos brutais do interior. Tem a ver com o limiar entre a invenção e a fidelidade. Em duas palavras, entre arte e vida. 

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Nota 1: o título original, mencionado de passagem num diálogo, se refere à inconsistência dos anátemas rurais. Nem tudo é para ser acreditado ao pé da letra, e todos sabem disso mas fingem o contrário. Parte de um comportamento muito típico iraniano.  

Nota 2: Quando Sem Ursos passou em Veneza 2022, levando o Prêmio Especial do Júri, Jafar Panahi já estava preso, cumprindo uma pena imposta em 2010 por "propaganda contra o regime". Foi libertado em fevereiro último depois de iniciar uma greve de fome. Em fins de abril, enquanto eu estava visitando o Irã, ele foi autorizado a sair do país pela primeira vez depois de 14 anos de proibição.

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