Jabuticaba Azeda

"Nosso capitalismo, nosso mercado e nossa Bolsa precisam ser salvos de si mesmos", escreve o colunista Marcelo Zero

Reuters | ABr
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O modelo de teto de gastos brasileiro é uma jabuticaba azeda.

Jabuticaba porque só tem no Brasil. Azeda porque fracassou totalmente.

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E o fracasso reside justamente no fato de que nosso modelo é um ponto fora da curva na experiência internacional de tetos de gastos e de regras fiscais. 

Em primeiro lugar, a experiência brasileira tem um escopo bem mais ambicioso que as das experiências internacionais. Nos países da União Europeia, por exemplo, o principal objetivo do teto era e é, basicamente, estabilizar o montante de gasto em relação ao PIB e garantir a sustentabilidade da dívida. 

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No Brasil, o objetivo maior é reduzir a participação do Estado na economia. Sua finalidade é estrangular o crescimento das despesas obrigatórias criadas pela Carta Magna e fulminar o incipiente Estado do Bem Estar que ela gerou. Assim, visa-se conter, sobretudo, o crescimento das despesas sociais. 

Com a inevitável redução do espaço estatal, se descortinaria um espaço aberto para atuação do capital privado no provimento de serviços à população. 

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Há, portanto, um modelo econômico que o teto jabuticabano persegue. 

A ideia central é substituir o modelo inclusivo previsto implicitamente na Constituição de 1988, e efetivamente implantado e aprofundado pelo PT, por um modelo concentrador, baseado essencialmente no investimento privado, que diminuiria os custos do trabalho e da seguridade social, aumentando a margem de lucro das empresas e assegurando ao sistema financeiro e aos investidores especulativos o pagamento de juros em larga escala.

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Ao mesmo tempo, o estrangulamento do teto pressionaria para alienar, a preços de conveniência, setores estratégicos da economia nacional, como o setor de petróleo e gás, a Eletrobras etc.

Em segundo, o teto brasileiro foi concebido olhando-se exclusivamente pelo retrovisor. O limite foi fixado unicamente com base nos gastos reais de 2016, perenizados pela PEC que criou o teto.

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Já na maior parte das experiências internacionais, os limites das despesas levam em consideração o comportamento do PIB, o eventual aumento da arrecadação e o crescimento demográfico.

Em outras palavras, o futuro não entrou no computo do teto de gasto, o que é algo desastroso para quem pretende gerir a coisa pública de forma racional. 

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Em terceiro, o modelo brasileiro, ao contrário dos demais, é extremamente inflexível.

Com a crise de 2008, as experiências internacionais de tetos de gastos e as regras fiscais de um modo geral tornaram-se flexíveis e passaram a levar em consideração, cada vez mais, as fases do ciclo econômico e as necessidades da população.

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No caso da União Europeia, que impunha uma política de austeridade bastante contestada, não se verificava tamanha rigidez, mesmo antes da crise. 

De fato, a União Europeia criou o Tratado sobre a Estabilidade, Coordenação e Governação, também conhecido como Pacto Fiscal ou Tratado Orçamental, o qual impõe compromisso com a busca de um “saldo orçamental” que não supere -0,5% do PIB. Mas esse saldo é obviamente referenciado ao desempenho do PIB, o que não ocorre com o teto jabuticabano, e “estrutural”, ou seja, deduzem-se de seu cálculo os efeitos da recessão sobre as receitas. 

Por exemplo, no caso de uma recessão que cause uma quebra das receitas fiscais, tal quebra obviamente aumentará o déficit orçamentário. Mas, pelo Tratado, o Estado afetado não estaria necessariamente obrigado a reduzir suas despesas para compensá-lo, justamente porque o saldo orçamentário “estrutural” deduz esse impacto negativo do cálculo. Um aumento do déficit induzido pela recessão é obviamente cíclico, deixando o saldo estrutural inalterado. 

Portanto, na União Europeia houve, ao menos em tese, a preocupação de que o equilíbrio macroeconômico e orçamentário não obrigasse os governos a reduzir drasticamente despesas em períodos recessivos, não impedisse a implantação de políticas contracíclicas, não impusesse necessariamente limites ao tamanho do Estado e, sobretudo, jamais significasse ‘austeridade permanente’. 

No Brasil, contudo, não se leva em consideração as fases do ciclo econômico e nem meios para se lidar com eventuais aumentos da inflação. Tampouco há exceções ou tratamento diferente para os investimentos, nem sequer para aqueles que têm alto impacto no crescimento econômico e, portanto, na geração de receitas.

O pior é que, ao contrário das experiências internacionais, o teto jabuticabano não previu as óbvias válvulas de escape para lidar com retrações econômicas ou outras dificuldades.

Créditos extraordinários só são admitidos em caso de situações imprevisíveis e urgentes previstos na Constituição, como as decorrentes de guerra, comoção interna ou calamidade pública (art. 167, § 3º).

Outra amarra inusitada tange a se colocar o inflexível teto na Constituição Federal e por um longo prazo de 20 anos.

Como já referido neste artigo e como bem destacou Francisco Luiz C. Lopreato, em seu texto “Regras fiscais: o olhar internacional e a experiência brasileira”, publicado pelo Instituto de Economia da Unicamp:

Qual a razão de se optar por mudar a constituição se outras normas fiscais, com exceção da regra de ouro, não seguiram esse caminho? A escolha deve ser atribuída à necessidade de alterar as vinculações constitucionais dos gastos de saúde e educação. A PEC 95, em 2017, seguiu o padrão então vigente, com o gasto federal em educação de no mínimo 15% da RCL (Receita Corrente Líquida) e em saúde de não menos de 18% do total dos imposto., Mas, esses valores deixam de se atrelar à arrecadação dos anos seguintes e passam a ser calculados de modo semelhante ao dos demais gastos, vinculando as aplicações nessas áreas aos valores definidos no ano inicial, com a simples correção inflacionária. Ou seja, a medida suspendeu, por 20 anos, a determinação constitucional anterior e colocou no limbo o projeto de 1988 de criação do Estado de bem estar social.

Não é de estranhar, portanto, que o teto tenha se transformado numa camisa de força ultraortodoxa que tentou aprisionar a economia brasileira num asilo de celerados Tentou, mas nem conseguiu. A realidade, esse detalhe, se encarregou de rasgá-la. 

A mesma critica vale para outras medidas muito inflexíveis de contenção de gastos. 

Ressalte-se que o próprio FMI, em seu World Economic Outlook, de 2020, recomendou, ante a crise, a suspensão temporária das regras fiscais, taxas de juro reduzidas e impostos progressivos sobre os mais ricos (sobre faixas de renda mais altas, grandes fortunas, ganhos de capital, e patrimônio), bem como mudanças na tributação que garantam que as empresas paguem impostos proporcionais à lucratividade.  

Não foi Lula quem falou. Foi o FMI. E as bolsas não foram afetadas. 

Na realidade, a maior parte dos países desenvolvidos continua a praticar políticas anticíclicas. Os mercados de lá, essas simpáticas reificações, sabem que, nas atuais circunstâncias, os investimentos gastos estatais são fundamentais para se evitar o pior, tanto social quanto economicamente, pois eles induzem o crescimento.

O importante é ter uma perspectiva de equilíbrio fiscal e de controle da dívida de longo prazo, flexível, com visão de futuro e que seja compatível com a responsabilidade social e com a necessidade de desenvolver o país.

Mas, no Brasil, muitos continuam presos a modelos falidos e arcaicos. Não olham para o novo mundo. Como o teto, olham pelo retrovisor para uma realidade que não mais existe. 

A jabuticaba azedou. Tem de jogar fora. Nosso capitalismo, nosso mercado e nossa Bolsa precisam ser salvos de si mesmos.

Frutos melhores virão. 

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