Ir às ruas sábado dia 29, agora e já. Por quê?
O historiador Valério Arcary escreve sobre o #29M: "O governo vem enfraquecendo, ainda que devagar, e a disposição de luta nos setores mais avançados da juventude e dos trabalhadores aumentou, ainda que lentamente. Há, portanto, uma oportunidade. Ela não é isenta de riscos. Mas não deve ser desperdiçada."
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Por Valério Arcary
Não é porque as coisas são difíceis que não ousamos nos aventurar. É porque não ousamos arriscar que elas são difíceis. (Sêneca)
Somente aqueles que se arriscam a ir longe demais podem descobrir o quão longe é possível ir. (T.S. Eliot)
Os perigos da vida são infinitos, e entre eles está a segurança. (Goethe)
Mudou o momento da conjuntura e isso justifica uma inflexão na tática. O que mudou? O governo vem enfraquecendo, ainda que devagar, e a disposição de luta nos setores mais avançados da juventude e dos trabalhadores aumentou, ainda que lentamente. As pesquisas confirmam uma dinâmica de perda de popularidade. Há, portanto, uma oportunidade. Ela não é isenta de riscos. Mas não deve ser desperdiçada.
Ainda prevalecem diferenças de avaliação na esquerda sobre o grau de isolamento de Bolsonaro e, também, sobre os sentimentos e paixões da vanguarda mais ativa. Mas a convocação dos atos de sábado 29 de maio foi aprovada no espaço de frente única que reagrupa as Frentes Brasil Popular e Povo sem Medo, onde estão presentes a imensa maioria das diferentes correntes e partidos da esquerda, das mais moderadas às mais radicais. Essa decisão foi lúcida e corajosa.
Sempre que há uma mudança na conjuntura há alguma perplexidade, dúvida e indecisão. É muito razoável que haja camaradas honestos que têm dúvidas sobre a ida às ruas, em função da gravidade do quadro sanitário. Assim como há militantes convencidos que estão maduras as condições para incendiar a disposição de luta em setores de massas para cercar de pressão a CPI até o impeachment de Bolsonaro. Ambas posições parecem extremas.
O cálculo das organizações que convocam manifestações neste sábado dia 29 é que vale a pena correr algum risco. Não vamos às ruas agora somente porque é necessário. Sempre foi muito necessário, desde a eleição de Bolsonaro. Vamos porque fazemos a avaliação de que amadureceu uma disposição, um anseio, uma vontade de milhares de ativistas de disputar o espaço das ruas com os neofascistas. Não parecem ainda possíveis atos de massas, mas é possível desafiar o governo.
Não há um “sismógrafo” infalível na tradição marxista que nos permita, por antecipação, ter muitas certezas sobre a dimensão de manifestações públicas. Mas a aposta é que é possível realizar atos de vanguarda com disciplina suficiente para diminuir ao mínimo o perigo de contágio. Quem sabe que tem saúde mais vulnerável deve se proteger.
Sábado será um teste para aferir as possibilidades abertas. Em todas as correntes da esquerda brasileira há bons camaradas com avaliações mais pessimistas ou otimistas. Um saudável “empirismo leninista” deve nos orientar. Um teste é um exame, uma prova, uma avaliação. Manter a mente aberta é essencial para que sejamos capazes de um cálculo, uma estimativa, um juízo objetivo. Um diagnóstico das condições em que lutamos é chave para definir os próximos passos.
Há, grosso modo, quatro tipos de mobilização pública no repertório da luta social e política. Uma tipologia é um esquema útil para identificar as diferenças qualitativas. Há atos de protesto simbólicos que funcionam como uma iniciativa de agitação para legitimar uma luta. São aqueles realizados por um pequeno número de militantes organizados que potencializam uma intervenção com grandes faixas e representação cênica emblemática. Foi assim nesta quarta feira em Brasília por iniciativa das Centrais Sindicais
Há os atos de vanguarda que colocam em movimento uma franja de ativistas que têm como referência as organizações populares, sejam o sindicatos, os movimentos ou os partidos de esquerda. São protestos que têm a função de acumulação de força porque operam como agitação sobre os setores organizados de massas e, por isso, são úteis. Podem reunir alguns milhares, mas são atos de vanguarda porque aqueles que comparecem são, politicamente, ativos.
Há os atos de massas dos setores organizados dos trabalhadores, da juventude e dos movimentos populares. Eles já têm uma outra escala. O tsunami da educação no primeiro semestre de 2019, mas, sobretudo, os atos do #elenão em setembro de 2018 foram atos de massas. Podem obedecer ao objetivo defensivo de frear um ataque aos direitos sociais, ou serem eles mesmos um fator de agitação para mobilizações ofensivas.
Finalmente, há os atos com impulso revolucionário, na escala de centenas de milhares ou milhões que, pelo impacto de sua força social de choque, abrem a luta pela derrubada do governo, ou de disputa do poder. Foi assim no Chile em 2019, associado à greve geral.
Nos preparamos para atos de vanguarda porque um novo momento não significa que mudou a situação. Permanecemos em uma situação reacionária. A extrema-direita voltou a disputar o espaço das ruas no 1º de maio, na manifestação do agronegócio em Brasília, na marcha das motocicletas no Rio de Janeiro, mas agora em posição reativa ou semidefensiva. O governo não está paralisado, os ataques não foram suspensos: aprovação do orçamento de 2020 com emendas bilionárias para o centrão; PEC emergencial; privatização da Eletrobrás; constitucionalidade da reforma administrativa, por exemplo.
Quatro principais fatores explicam esta evolução:
1. A hecatombe da pandemia em março e abril, que culmina com meio milhão de mortes em maio, precipitou uma divisão na classe dominante, e um setor poderoso da grande burguesia lançou o manifesto dos 500 exigindo mudanças na gestão do Ministério da Saúde e as demissões de Pazzuelo, de Ernesto Araújo no Itamaraty e de Salles no meio-ambiente;
2. As tensões dentro da coalizão das quatro alas de extrema-direita resultaram, simultaneamente, na demissão do Ministro da Defesa, e dos três comandantes militares, aumentando a turbulência institucional em função da decisão da abertura da CPI da pandemia no Senado, e do comportamento provocador de Pazzuelo;
3. As expectativas de massas com a possibilidade de derrotar Bolsonaro aumentaram porque o STF decidiu pela anulação das condenações de Lula por incompetência da 13ª Vara de Curitiba, e votou pela suspeição de Sergio Moro;
4. O choque humanitário com a chacina policial do Jacarezinho incidiu na consciência de dezena de milhões, inflamando o ódio contra Bolsonaro, em especial no movimento negro, de mulheres e de juventude.
O acordo tático em torno do chamado de ida às ruas no dia 29 não dissolveu as diferenças de estratégia na esquerda. Permanecem em debate a estratégia do desgaste ou quietista, a estratégia da ofensiva permanente, e a estratégia da frente única de esquerda.
A quietista se fundamenta na interpretação de que ocorreu uma derrota histórica, é necessário recuar e proteger as organizações e a militância, não provocar e acumular forças até que a experiência de massas abra o caminho para sair da defensiva, aceitando o terreno eleitoral como a arena mais favorável para medir forças, apostando na possibilidade de vitória de Lula.
A estratégia da ofensiva avalia que a eleição de Bolsonaro foi um acidente histórico quase aleatório, e que a hecatombe da pandemia desestabilizou o governo, portanto, que é possível iniciar uma mobilização de massas para derrubar Bolsonaro, e desafiar ou até ultrapassar pela esquerda a influência da moderação lulista.
A estratégia da frente única admite que sofremos derrotas sociais e políticas duras, insiste na necessidade da unidade da esquerda para avançar na acumulação de forças, mas destaca que um novo momento se abriu, e permite atos de vanguarda para acelerar a acumulação de forças, e tentar construir um movimento de massas pelo impeachment antes das eleições de 2022.
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