Investimento público e saque criminoso do FGTS
O ataque ao Fundo de Garantia é um roubo com mão alheia. Ao contrário do Fundo original, que parecia ruim para o trabalhador mas acabou bom para ele e para a economia, a liberação anunciada parece boa para o trabalhador, mas é ruim para o trabalhador, para o saneamento, para a construção de casas e para a economia
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Suponha que a receita do governo num ano seja 100, e a despesa do governo também seja 100. Em consequência, do ponto de vista financeiro, não haverá nenhuma contribuição do setor público ao crescimento do conjunto da economia. Para que haja essa contribuição, em especial quando a economia está em recessão, é necessário que a despesa do governo seja maior que a receita. Nesse caso, o governo injeta mais recursos na economia sob forma de gastos, provocando seu crescimento, do que retira dela sob a forma de impostos.
Numa recessão não é possível esperar que o conjunto do setor privado responda pelo aumento do investimento e leve ao crescimento da economia. É que a lógica de investimento do setor privado exige que haja uma perspectiva de aumento do consumo logo à frente. Do contrário, é produzir para prateleiras e correr riscos de prejuízo. Sem a perspectiva da venda e do lucro não há investimento privado generalizado; há apenas investimentos tópicos justificados por uma perspectiva de demanda a longo prazo, quase como um ato de fé.
Por isso que, em recessão, o investimento, ou o gasto público é absolutamente fundamental. Não apenas o investimento, como se viu acima. Mas o aumento do investimento acima da receita. Os investimentos privados se neutralizam: investe-se de um lado e consome-se de outro. Daí não pode sair crescimento da economia. Estamos vendo isso atualmente. A economia está mergulhada em recessão desde 2014, mas, como os gastos públicos são sistematicamente cortados, flutuamos acima e abaixo do nível de recessão.
Veja-se isso agora em relação à liberação do FGTS pelo Governo. Inicialmente, vamos a uma pequena digressão sobre a origem do Fundo. Foi uma concepção controversa, mas finalmente vitoriosa, do maior de nossos liberais históricos, Roberto Campos. Ele queria acabar com a estabilidade do trabalhador aos 10 anos de casa, o que lhe parecia um grande embaraço para os patrões, pois não poderiam demitir trabalhadores mais antigos. Na prática, a Justiça já estava aceitando como limite nove anos, e até mesmo oito anos para a estabilidade.
Eu tinha uns 19 anos e era editor de um semanário em Coronel Fabriciano, no Vale do Aço mineiro, e assumi a causa dos trabalhadores contra a opção pelo novo regime de trabalho, que incluía o FGTS. Foi o meu primeiro embate com a polícia. Acontece que estava enganado. O direito à estabilidade não funcionava mais, pois o trabalhador era demitido antes de usá-lo. A maioria dos trabalhadores gostou do novo regime. Ganhou a perspectiva de formar um fundo, com um salário indireto pago pelo patrão, para o caso de demissão ou aposentadoria.
Vinculado originalmente ao financiamento da construção de casas para baixa renda e para o saneamento, o Fundo teve sucesso considerável ao longo do tempo, com poucas modificações. Juntou-se a outro também criado por Campos para o financiamento das telecomunicações, que teve sucesso igual na conformação da infra-estrutura econômica brasileira. Esse era Campos, o liberal. Encontrei-o uma vez numa sala privada no casamento de um amigo comum, e não me contive em perguntar: “Mas como você, um liberal, criou ou implementou tantos setores estatais?”
Ele era muito irônico. “Eu me arrependi”, afirmou. De fato, Campos tornou-se no fim da vida um privatista radical, mas não um destruidor de suas próprias obras. Agora o comparo a esses primatas da economia que assaltaram o governo brasileiro e “sinceramente choro”, como diz o Fado Tropical de Chico. É que entramos sob a égide da destruição física e funcional das grandes empresas públicas construídas desde Getúlio e ao governo militar. É o maior processo de pilhagem privatista do Estado no mundo desde o fim da União Soviética.
O ataque ao Fundo de Garantia é um roubo com mão alheia. Ao contrário do Fundo original, que parecia ruim para o trabalhador mas acabou bom para ele e para a economia, a liberação anunciada parece boa para o trabalhador, mas é ruim para o trabalhador, para o saneamento, para a construção de casas e para a economia. Quem está propondo isso só vê o elo da corrente, não vê a corrente inteira. É uma medida demagógica e irresponsável, uma canalhice com o trabalhador, uma violação de seu seguro de vida e de morte.
Finalmente, vejamos o aspecto econômico dessa estupidez. O dinheiro do Fundo financia atividades econômicas e retorna ao trabalhador com uma taxa de juros real, que acumula com o principal durante sua vida ativa. O dinheiro sacado antecipadamente do Fundo financia o consumo e desaparece. Entretanto, esse dinheiro é retirado do financiamento a casa própria e ao saneamento. Se não for sacado antecipadamenete, financia o crescimento econômico, pois uma obra de casa e de saneamento consome aço, cimento, ferragens, utensílios como louças e talheres, móveis etc etc.
Contra isso, o consumo do trabalhador, que progressivamente vai esgotar o Fundo, não vai além do armazém e da loja, talvez do camelô. É que o chamado efeito multiplicador desse gasto na economia é quase nulo. Com isso, os 30 a 40 bilhões do Fundo que se quer queimar jamais terá o efeito de crescimento que Paulo Guedes imagina. Se ele quiser fazer a economia crescer, que invista deficitariamente, como mandaria Keynes . Crie alguma coisa em lugar de destruir. Ou então financie os saques antecipados do FGTS com dinheiro do Tesouro, sem meter a mão no bolso e nas expectativas do trabalhador.
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