Inflação e conflito distributivo: a situação piora e pode definir as eleições
"A busca por sobrevivência pode levar a convulsão social, tomando a forma de arruaças, quebra-quebras, saques etc. O limite foi atingido"
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Em abril, o Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo 15 (IPCA-15), prévia da inflação oficial do País, aumentou 1,73%. A taxa de inflação acumula alta de 4,31% no ano e de 12,03% em 12 meses de acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). A taxa de desemprego no Brasil ficou em 11,1% no primeiro trimestre de 2022.
Inflação embute sempre um conflito distributivo entre capital e trabalho. Como a oferta de moeda é endógena, a quantidade de moeda ajusta-se às pressões inflacionárias, referendando a alta de preços praticada pelos fornecedores de mercadorias e serviços. Os salários não se ajustam no mesmo ritmo, aumentando o abismo entre ricos e pobres. No curto prazo, a inflação atinge menos os ricos do que os pobres. Melhora a situação de rentistas e dos que auferem lucros e dividendos. São penalizados os trabalhadores assalariados que cada vez compram menos mercadorias e serviços com seus salários. No Brasil, hoje, esse conflito assume contornos que ameaçam a reprodução da força de trabalho. As pessoas estão passando fome.
O Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, conduzido pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional, com dados de 2020, apontou que em 55,2% dos domicílios os habitantes convivem com a insegurança alimentar, um aumento de 54% desde 2018 (36,7%). Em números absolutos, no período abrangido pela pesquisa, 116,8 milhões de brasileiros não tinham acesso pleno e permanente a alimentos e ao menos 19 milhões estão passando fome, de acordo com dados de 2020.1 Essa situação se agravou nos dois últimos anos devido à continuidade da pandemia e da estagnação da economia brasileira.
Quem são os grandes ganhadores e beneficiários da situação hedionda que vivenciamos hoje no Brasil?
A renda declarada por brasileiros com lucros e dividendos alcançou R$ 384,3 bilhões em 2020, ano em que o começo da pandemia de covid-19 destruiu milhões de postos de trabalho e levou empresas a cortarem salários de trabalhadores. O valor é 7% maior que o declarado nessa fonte de rendimentos em 2019. A variação supera a inflação do período - o IPCA amplo terminou 2020 em alta de 4,52%. Em 2021, os lucros e dividendos declarados pelas companhias, atingiram R$ 584 bilhões, um crescimento de 51,96 % em relação a 2020, no auge da pandemia, e a inflação medida pelo IPCA foi de 10,06%.2 O crescimento dos lucros é algo estarrecedor. Estima-se que de cada R$ 100 declarados como lucros e dividendos, R$ 70 estavam nas mãos do 1% mais rico da população - um pequeno grupo de cerca de 300 mil pessoas para uma população de 213,3 milhões de habitantes - que ganham, em média, 34,9 vezes mais que a metade dos brasileiros com os menores rendimentos (dados do IBGE). Nosso sistema tributário é perverso - os lucros e dividendos recebidos pelas pessoas físicas são isentos de imposto de renda. Entre seus recebedores estão investidores, acionistas, sócios de empresas, profissionais liberais e outros prestadores de serviços PJ (pessoa jurídica).
Os dados sugerem que as maiores empresas do País conseguiram recompor com folga sua lucratividade mesmo num cenário econômico adverso. Muitas microempresas quebraram, e os microempresários informais proliferaram.
E os rentistas que auferem juros? O valor pago em 2021 é o segundo maior valor pago desde o início da série histórica. Só perde para 2015 quando o pagamento de juros atingiu valores maiores do que R$ 500 bilhões, cerca de 90% pagos como remuneração de títulos públicos, o que sinaliza que a dívida pública interna está crescendo. Com juros elevados a dívida vira uma bola de neve e a conta de juros consome recursos fiscais que poderiam ter sido utilizados em infraestrutura e outros gastos públicos geradores de crescimento. Vale lembrar que as despesas de juros são mantidas fora do teto de gastos e não estão congeladas.
Entre lucros, dividendos e juros foram contabilizados, em 2021, mais de R$ Hum trilhão de reais, 12,5% do PIB de R$ 8,7 trilhões. E a situação só melhora para os rentistas haja vista que, desde março de 2021, a taxa de juros básica não para de crescer estando nesse momento em 12,75%, provavelmente a maior taxa de juros do mundo. Enriquecem os rentistas brasileiros e os estrangeiros também. Os fluxos de capitais externos que aumentaram, substancialmente, nesse ano de 2022, não refletem confiança na economia brasileira. Decorrem, fundamentalmente, do diferencial de juros entre o Brasil e o resto do mundo e não se traduzem em investimentos na economia real visto que são, na sua maioria, especulativos e são direcionados para títulos da dívida pública ou privada com liquidez praticamente imediata. Ao menor sinal de possibilidade de maiores ganhos em economias como a dos Estados Unidos, migram para os títulos públicos do império, rapidamente. Só que juros tão altos ao provocarem ingressos de capitais especulativos, valorizam o real frente ao dólar, incentivando importações de manufaturas chinesas e exportações de produtos primários e alimentos cujos impactos sobre a economia doméstica, em termos de geração de empregos e renda, são bastante reduzidos. Ganham o agronegócio e o mercado financeiro.
O aumento dos juros é explicado pela crendice de que vão debelar a inflação. A política do Banco Central tem se mostrado ineficaz, impactando de forma negativa o lado real da economia sem diminuir os preços. Os principais produtos que têm aumentado o custo de vida nesse momento são: o preço internacional do petróleo (afetando a gasolina, o gás de cozinha, o diesel, combustíveis em geral etc.), das commodities (em parte pela fome por commodities da China) e os alimentos. Portanto, têm mais a ver com fatores externos, como a guerra entre Ucrânia/EUA/OTAN e Rússia que provoca escassez de trigo e fertilizantes, do que com causas internas. Juros altos podem ser remédio para combater inflação em situação de pleno emprego ou excesso de demanda. Não nos encaixamos em nenhuma dessas situações. No nosso caso, juros altos desestimulam consumo, investimento e encarecem a produção das empresas que precisam de capital de giro e empréstimos para expandir os negócios.
Assim a inflação persiste, as empresas exportadoras de commodities se amplificam, o mercado financeiro especula com os juros e a economia não decola. Mas “a inflação é um jogo: um jogo de cartas marcadas”3. Fácil inferir que os que perdem são os trabalhadores assalariados.
Adam Smith, no Século XVIII, em sua obra seminal “A Riqueza das Nações” já se perguntava: “quais são os salários comuns ou normais do trabalho?” A resposta para essa questão surge, de acordo com ele, “a partir do acordo que é feito entre as duas partes, que apresentam interesses conflitantes. Os trabalhadores querem ganhar o máximo possível, os patrões, pagar o mínimo possível. Os trabalhadores associam-se para levantar os salários do trabalho, os patrões, para baixá-los”. Sempre esteve claro para o mais famoso economista escocês clássico, pai do liberalismo, teórico do laissez-faire e da mão invisível, que “o menor número de patrões facilitava a sua associação, permitida pela legislação da época. Enquanto isso, a associação dos trabalhadores, para lutar em prol dos seus interesses, era proibida - não havia leis do parlamento que proibissem os patrões de combinar uma redução de salários, mas muitas que proibiam associações para aumentar os salários”. Desde Smith já existe a ideia de que “o salário de mercado deve flutuar ao redor do nível de subsistência, ao redor do salário natural”.
É interessante apontar que no Brasil dos presidentes Temer e Bolsonaro, a reforma trabalhista de 2017 vem cumprir exatamente o papel apontado por Adam Smith, nos levando de volta aos Séculos XVIII e XIX. A reforma dificultou a associação dos trabalhadores criando formas de contratação precárias com efeitos desprezíveis no nível de emprego. Houve aumento do trabalho autônomo, intermitente, temporário e terceirizado. Cresceu a informalidade.
Foi apenas em 1930, depois de mais de 400 anos de escravidão, que o presidente Getúlio Vargas criou o Ministério do Trabalho e a Justiça do Trabalho e a pauta sobre o salário mínimo (SM) começou a ganhar força no Brasil em meio à promulgação da Constituição de 1934. Mas, somente em 1940, é que começa a vigorar legislação específica sobre o salário mínimo. A intenção era oferecer uma remuneração digna aos trabalhadores, um valor que fosse suficiente para atender às suas necessidades de alimentação, habitação, vestuário, higiene e transporte. A partir de 1946, com a nova Constituição, o SM deveria garantir as necessidades básicas não só do trabalhador, mas de sua família. Portanto, o SM real, que é um direito constitucional, deve ser a remuneração mínima a ser paga, oficialmente, a um trabalhador brasileiro.
Temos a lei do salário mínimo desde 1946, mas algo em torno de 50 milhões de pessoas (23% da população brasileira) vivem, nos dias de hoje, 75 anos depois, com menos de um salário mínimo (dados do IBGE de 2021). De acordo com a lei é obrigatória a reposição da remuneração pela inflação de forma a proteger o poder de compra do trabalhador. Assim, o salário mínimo ideal, no Brasil, deveria ser de R$ 6.754,33 em abril de 2021, calcula o Dieese (Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos). Esse seria o pagamento mínimo para sustentar uma família de quatro pessoas, considerando gastos com moradia, transporte, alimentação, saúde, educação, vestuário, higiene, lazer e previdência. É mais que cinco vezes o valor de R$ 1.212 estabelecido em 2022.4 O aumento representou 10,18% em relação a 2021, uma diferença mínima do INPC acumulado de 10,16%, um ganho real desprezível. Novo aumento somente ocorrerá a partir do novo governo, em 2023.
As estatísticas mostram que o ganho real do salário mínimo, na ‘era Lula’ foi de 53,6%. O poder de compra no governo Lula foi três vezes maior do que no período de Fernando Henrique Cardoso. O modelo do aumento do SM real e atrelado ao crescimento do país seguido até o governo Dilma, propiciou um ganho maior para os assalariados. Em 1995, o salário mínimo comprava 1,2 cestas básicas, em 2016 era possível adquirir em torno de 2,4 cestas (o dobro).
Temer, como Bolsonaro, reajustaram o SM sem praticamente nenhum ganho real. Em 2019, o salário mínimo era de R$ 998, em 2020 foi reajustado para R$ 1.045, em 2021 passou a R$ 1.100 e em 2022 para R$ 1.212. As mudanças representaram somente a correção da inflação. Rompe-se com o ciclo de valorização do SM. Em fevereiro de 2019, o trabalhador remunerado pelo piso nacional comprometia, em média, 45,09% do rendimento para adquirir os produtos da cesta. Em fevereiro de 2022, esse índice atingiu 56,11%.5 De janeiro para abril deste ano, os preços aumentaram em média 4,31% e o preço da cesta vem dando saltos muito maiores. Voltamos a uma situação em termos de poder de compra semelhante ao que prevalecia nos anos 1990. O SM está muito aquém do necessário para reproduzir com dignidade a força de trabalho. A falta de reajustes efetivos prejudica o crescimento do País. Com menos poder de compra, há menos consumo e investimentos, menos renda e menos empregos. A economia já se encontra em processo de estagflação – estagnação com inflação. De forma resumida, estamos num círculo vicioso. O fato da moeda ser endógena alimenta o aumento de preços, a inflação. A ortodoxia econômica do Banco Central reage elevando a taxa de juros que por sua vez reduz a liquidez da economia e ajuda a aumentar a recessão e com isso empobrecer ainda mais os mais pobres. Os juros altos reduzem o investimento produtivo e incentivam a especulação financeira. Com isso travam o produto e aumentam a pobreza. Trabalhadores estão desarticulados, sindicatos enfraquecidos. O conflito aumenta a exploração e a miséria. A busca por sobrevivência pode levar a convulsão social, tomando a forma de arruaças, quebra-quebras, saques etc. O limite foi atingido.
A esperança de mudança pode estar nas mãos desse segmento de cidadãos penalizados pela perda de direitos, desempregados e marginalizados por políticas públicas ortodoxas e equivocadas de combate à inflação que só favorecem o capital, em detrimento da força de trabalho e do crescimento do País. Que 2023 seja um ano de transformação e recuperação do tempo perdido.
Notas:
- http://www.olheparaafome.com.br/
- https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2022/03/renda-de-brasileiros-com-lucros-e-dividendos-cresce-na-pandemia-e-atinge-r-384-bi.shtml
- Vide Mollo, M.L.R e Falcão Silva, M.L (1987). “Inflação e Conflito Distributivo: Um Jogo de Cartas Marcadas”. Brasília. Humanidades, 14, Ago./Out.
- https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2022/05/09/bolsonaro-salario-minimo-desvalorizado-plano-real.htm
- https://noticias.r7.com/economia/em-tres-anos-cesta-basica-fica-48-mais-cara-e-itens-sobem-ate-153-21032022
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