Independência se conquista com luta
Não devemos temer o que o povo decidir. Ao contrário, todas as guerras, toda miséria, toda fome, todos os males da civilização partiram das definições e decisões das elites, e em nosso caso particular da “elite casa grande”
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Em janeiro de 1987, quando o sistema financeiro – a banca – desferia seus últimos ataques para conquistar o poder mundial, Franz-Joseph Strauss, líder da direita alemã, afirmava: “sem uma identidade nacional, na qual reencontramos nossa origem e encontramos nosso futuro, o povo alemão não cumprirá seu papel no mundo”.
Convido meu prezado leitor a abandonar suas revistas da Marvel, desligar o Netflix e, ao invés de idealizar um salvador, mergulhar em nossa história, entender a fraude que sempre nos impingiram e iniciar a construção – admito que pense prosseguir a construção – de um país soberano e cidadão.
Façamos um brevíssimo retrospecto.
O filósofo Johann Gottlieb Fichte proferiu, entre 1807 e 1808, uma série de 14 conferências que se consolidariam no seu “Discursos à Nação Alemã”.
Recordemos que o Império Alemão ainda não existia e a Prússia, a mais poderosa das unidades que o constituiriam, estava ocupada por tropas do país que, poucos anos antes, fizera uma revolução pela “liberdade, igualdade e fraternidade”.
Fichte afirmava que se vivia uma época de “puro egoísmo material”, que destruía a própria existência e se perdia a autonomia cidadã. E pior, se subjugava a “objetivos de potência estrangeira numa lógica distinta da nacional” (alemã).
Quanta semelhança, passados mais de dois séculos, com o Brasil de hoje!
Com estranha frequência e pouco discernimento, vejo loas ao Império Brasileiro, como época de paz, progresso e honestidade.
Para não polemizar, no que considero irrelevante, peço que o amigo leitor lembre que o Império foi o atroz período da escravidão racial, do domínio econômico da Inglaterra e que não se pode chamar honestidade quando uma família usa o país como um bem privado.
Penso que os movimentos dos anos 1920, denominados tenentistas, que desembocaram na Revolução de Trinta, foram o primeiro instante de nossa história que, como na Alemanha buscada por Fichte, pensou-se no Brasil independente.
Mas os séculos de submissão colonial – Portugal e Inglaterra – haviam deixado marcas indesejáveis. Ruralistas e rentistas constituíram um sistema de poder no Brasil, com instituições e a formação de uma casta de centuriões, pretorianos para defendê-los. Estes defensores foram a princípio empregados diretos dos senhores da Casa Grande, depois passaram a ser ônus do Estado: soldados, policiais e magistrados.
O gênio de Darcy Ribeiro descreveu esta elite do poder nacional como cruel e sagaz, “não há país construído mais racionalmente pela elite que o nosso” (Sobre o óbvio).
Desenvolveu-se assim uma didática colonial – vem pelos séculos deseducando o povo para a cidadania e reforçando sua ideia de submissão escravista – e a íntima vinculação com os interesses estrangeiros, que lhes fornecem, pela economia exportadora, os recursos para sua manutenção.
Um cinismo enorme desta elite é o discurso de cobrança da educação. Veja que um governo, verdadeiramente exemplar para estes interesses contra o povo, o do professor Fernando Henrique Cardoso, em oito anos de mandato não construiu uma única faculdade, uma só escola técnica, nem aumentou, em termos reais, o dispêndio com a educação, exceto nos anos 1998/1999 (José Lúcio Alves Silveira, “Os gastos do governo federal em educação no período 1995/2010 e o desafio atual para o país”, V Jornada Internacional de Políticas Públicas, 2011).
Retomemos da vitória tenentista. A capacidade da classe que chamarei “elite casa grande” de transformar derrota em vitória ficou evidente no período Vargas de 1930 a 1945. Se fora derrotada a dominação inglesa, tratou de trazer um novo discurso e aderir ao novo império que crescia: os Estados Unidos da América (EUA).
O discurso foi a “luta ideológica” contra o comunismo. Também era a fala oficial dos EUA para calar e dominar as aspirações populares e o crescimento sindical. Para isso, lá como aqui, o poder governante criou um sindicato dominado por máfias e pelegos. Era e é fundamental excluir o povo do debate e da participação no poder. Poderia, em outras palavras, afirmar: tirar 90% da população de qualquer interferência nos destinos do País.
Em todo mundo, exceto aqui, duas forças se empenhavam no desenvolvimento industrial tardio: o socialismo, no modelo revolucionário soviético, e o capitalista industrial. Mas no Brasil é emblemática a frase de Eugênio Gudin para Edmundo Macedo Soares, a respeito da criação da Companhia Siderúrgica Nacional: siderurgia é para brancos, não é coisa para nós.
É instrutivo verificar que os governos militares, entre Costa e Silva e Ernesto Geisel, formularam o mesmo ideário desenvolvimentista dos tenentes de 1930, conduzido pelo Estado – dirigismo econômico – motivado pela segurança nacional e garantindo o emprego.
Mas como Darcy Ribeiro, na excelsa aula contida em “O Processo Civilizatório”, deixa explícito, “as nações subdesenvolvidas não são apenas atrasadas, são também as nações espoliadas da história, empobrecidas pelo saque que sofreram originalmente das suas riquezas entesouradas e, pela sucção secular, dos produtos do trabalho de seus povos, através de sistemas inigualitários de intercâmbio. Soma-se a tudo isto a deformação de sua classe dirigente que, posta a serviço da espoliação estrangeira, não se torna capaz de amadurecer como um empresário renovador e competitivo” (1968).
Caberia perguntar: em que erramos?
Muitos historiadores ressaltam que a disputa pelo poder no Brasil sempre terminou pelo acordo da “elite casa grande”. E as revoluções foram cruelmente exterminadas e para isso os governantes contaram sempre com o apoio e financiamento estrangeiro.
Vemos agora mesmo o caso da Lava Jato que teve origem e condução dos EUA, já amplamente registrado e divulgado, para evitar um simples desvio no rumo do empoderamento da banca, no Brasil.
Em nossa história não são poucas as interferências estrangeiras para que o povo não constituísse um sistema de instituições que o defendesse e efetivamente o representasse. Seria fastidioso enumerar a revoltas desde a colônia, as inúmeras durante o Império e as Repúblicas.
Já não temos dúvida que a mudança é necessária. E novos modelos de organização do Estado precisam ser construídos. O caminho a ser trilhado é para soberania e para cidadania.
Para isso temos que desenvolver novas instituições, novas formas de representação, novos modelos de governança, diferentes de tudo que foi feito até hoje, com intensa e profunda participação do povo.
Não devemos temer o que o povo decidir. Ao contrário, todas as guerras, toda miséria, toda fome, todos os males da civilização partiram das definições e decisões das elites, e em nosso caso particular da “elite casa grande”.
Foi a “elite casa grande” que manteve por mais tempo a escravidão legal e, ainda hoje, mantém a escravidão real, de fato. Lutemos para que os 90%, excluídos de tudo que se constituiu no Brasil, tenham agora voz ativa e participação efetiva. Comecemos com uma constituição debatida nacionalmente, nos partidos, nos clubes, nos sindicatos, nas associações, nas ruas, por toda parte. Ela definirá a verdadeira representação do povo brasileiro. As instituições que repudiarão os golpes e nos defenderão deles. As estruturas de poder que não serão os centuriões, as guardas pretorianas, os sistemas judiciais, pagos por nós, para nos ameaçar, nos prender, nos eliminar.
Vamos criar o Brasil de todos. Como Fichte, em seu primeiro discurso: “eu considero que tal mundo exista” e, parodiando o filósofo alemão, acrescento que só o povo “indicará os meios que o fará nascer”.
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