Imprensa local e coronavírus

O que “chama mais atenção”, como falam os comentaristas da GloboNews, é que a falta de conexão com o mundo não se dá pela pauta, pelo assunto, pela origem do assunto. Todo telespectador, todo leitor tem o direito de saber a notícia da sua cidade, sem necessidade de ser visto como um alienado



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Sempre nos causou mal-estar as reportagens na TV e nos jornais sobre a realidade local. Sempre vimos um cotidiano desconectado do que ocorria no Brasil e no mundo. Isso queria dizer que mesmo nos atentados mais fascistas do desgoverno Bolsonaro às mulheres, a jornalistas, à educação, ou no assassinato de Marielle, continuávamos a ver matérias da falta d’água na rua, da batida de carros na avenida Bêbêribe, que não era Bibiribe, como todos chamamos o nome Beberibe. Ou então – estrela máxima da notícia - era o feriado em Ô-linda, como pronunciam o nome da cidade de Olinda, que todo pernambucano chama Ó-linda. Não importava, estávamos todos no burro, fechado noticiário local.

Os editores burocratas sabem muito bem dividir o mundo: o que é da cidade é local, o que é fora da cidade é nacional. Notem que na divisão de tarefas bruta, o que for além das fronteiras do Recife já periga ser nacional.  Nem o interior nordestino, mesmo o sertão pernambucano, é local. É outra coisa, um limbo de criança sem nome e sem batismo. Ou melhor, já condenada ao inferno da não-notícia. Tão simples, não é? Local é o buraco na sua rua. Local é o acidente de trânsito. Local é a lama, a barreira que ameaça casas... A esta altura, sei que tem editor LOCAL perguntando: se chove pesado no Recife, se no Alto do Pascoal tem esgoto a céu aberto, em que diabo de notícia deve aparecer o problema, a não ser nos telejornais da cidade, locais? 

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Mas o que “chama mais atenção”, como falam os comentaristas da GloboNews, é que a falta de conexão com o mundo não se dá pela pauta, pelo assunto, pela origem do assunto. Todo telespectador, todo leitor tem o direito de saber a notícia da sua cidade, sem necessidade de ser visto como um alienado. Isso quer dizer, de modo mais claro: deveria haver um tratamento da notícia, um nível do repórter, que elevasse o local a uma notícia de ser vista em qualquer noticiário internacional. É difícil? É, todo bom trabalho é difícil ou então é desonesto. No entanto, possuímos exemplos entre nós em que um acontecimento local consegue alturas do mundo. De passagem, lembro uma reportagem de Marco Albertim sobre a cheia em Palmares, que deveria ser objeto de estudo por todo jornalista. 

E agora chego a outro caminho da superação, levado pela desgraça do coronavírus. Na quinta-feira, fui ver a pauta local dos jornais do Recife. E o que vi merece aplausos. A repórter Bianca Carvalho, da Globo Nordeste,  relacionou com muita propriedade o combate ao vírus à falta d’água nos morros do Recife. Denunciou, estabeleceu a relação e perguntou: como atender à recomendação de lavar as mãos? Aqui, quando chega a água? A reportagem era local, mas se tornou nacional, e virou do mundo. 

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E pude recolher rápido no Diário de Pernambuco: 

“Boa Viagem e Pina são os bairros com mais casos do novo coronavírus

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Viralizou nas redes sociais nesta quarta-feira (18) um mapa com áreas de maior incidência de casos confirmados e suspeitos do novo coronavírus no Recife. O gráfico é real e faz parte do boletim epidemiológico da Prefeitura do Recife, consolidado nessa terça (17), mas a Secretaria de Saúde (Sesau) da capital explica que ele é direcionado a ‘profissionais da área de saúde’. Nele, é possível ver que a maior parte das ocorrências foram detectadas em Boa Viagem e no Pina, ambos bairros da Zona Sul da capital pernambucana”.

Para quem não é do Recife, não pode sabe o espanto diante dessa notícia: Boa Viagem é o bairro da zona sul preferido por 9 em cada 10 novos-ricos pernambucanos. É da “elite”, portanto. E no entanto é primeiro lugar também no vírus. 

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No mesmo Diário, pude ver um local tratado com dignidade: 

“Comunidades pobres sob o temor do contágio

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‘Às vezes, nesses lugares, não tem água encanada, recursos, não tem banheiro e, quando tem, o banheiro por vezes tem péssimas condições. São casas juntas demais. Isso tudo deixa eles mais vulneráveis”, diz Fátima Nepomuceno, médica de família há 24 anos. Fátima integra hoje a coordenação das equipes de Saúde da Família do Recife. Medo por eles? ‘Sim, muito’”

Já no Jornal do Commercio do Recife pude ver: 

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“Recife e outras cidades têm novo panelaço durante pronunciamento de Bolsonaro

Na capital pernambucana, o barulho da panelas, acompanhado de gritos de "fora, Bolsonaro", pelos opositores, e "mito", pelos apoiadores, foram ouvido em alguns bairros.

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Na capital pernambucana, o JC recebeu relatos de que o barulho das panelas, acompanhado de gritos de ‘fora, Bolsonaro’ foi ouvido em bairros como Boa Vista, no Centro, Boa Viagem, na Zona Sul, Madalena, na Zona Oeste, e Rosarinho e Encruzilhada, na Zona Norte. Gritos de "mito", além do som das panelas, em menor escala, foram ouvidos em Boa Viagem, Espinheiro, na Zona Norte da cidade, e Torre, na Zona Oeste. Em Jaboatão dos Guararapes, Piedade também registrou atos dos dois grupos”.

Creio não ser preciso explicar onde “Fora, Bolsonaro” se relaciona com o coronavírus do título deste artigo. Já não se trata nem de relação: o desgoverno do Brasil se tornou o próprio mal em forma de gente: um bolsonavírus. Para esse mal que deprime e traz indignação, eis que no mesmo JC outra notícia acende um sorriso bom:  

“Moradores colocam avisos solidários em elevadores de prédios do Grande Recife

Pessoas se disponibilizam para ajudar vizinhos mais idosos que não devem sair de casa por conta da pandemia de coronavírus

Durante o período, quem está fora do grupo considerado de risco para a covid-19 ainda consegue realizar atividades essenciais na rua, como ir ao mercado ou a farmácia. Mas para quem tem mais de 60 anos - e é considerado parte do grupo de risco - até essas saídas precisam ser evitadas. Para amenizar a dificuldade que realmente não pode ir à rua, uma moradora de um prédio localizado no bairro de Casa Caiada, em Olinda, teve a ideia de colocar um aviso no elevador, se colocando à disposição dos vizinhos idosos para ajudá-los caso eles precisem. 

A professora universitária Thyana Galvão, 45 anos, entrou em quarentena na última segunda-feira (16), junto com as duas filhas, de 8 e 11 anos. No mesmo dia, escreveu o aviso e colocou no elevador. ‘Sempre aproveito esses momentos caóticos para transformar em algo bom. Tenho duas filhas e procuro passar isso para elas, que a situação não é tão ruim, pode ser sempre pior para os outros. Meu prédio tem muitos idosos e fiz isso para tentar ajudar realmente’, contou”. 

Mas para mim a melhor notícia, que dá o gosto e a universalidade do particular do Recife, veio da que mostra este anúncio do Cine São Luiz:

“Com sessões suspensas, o Cinema São Luiz troca letreiros: 'Cuidem-se'

Os tradicionais letreiros do cinema de rua de 1952, o mais antigo em funcionamento no Recife, foram alterados especialmente para o momento. ‘Cuidem-se’, diz o painel da direita. ‘Em breve estaremos juntos’, completa o lado esquerdo” https://imagens2.ne10.uol.com.br/blogsne10/social1/uploads/2020/03/O-letreiro-do-Cinema-S%C3%A3o-Luiz-emocionou-pela-sensibilidade.jpg 

Para essa notícia, uma recifense postou no twitter: 

“O cinema de vocês também é carinhoso?

Ao que respondo, deve ser. O cinema do Recife também é cinema do mundo. 

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