Impeachment de Dilma Rousseff: o crime é pretexto, o conjunto da obra mera retórica, o número de votos é que conta
Ao longo de todo o processo de impeachment, um outro processo – denúncia contra o ex-presidente José Sarney – passa ao largo de uma discussão que se mostra relevante, qual seja, se se deve julgar a Presidente pelos crimes alegados per si (e circunscritos a eles) ou pelo alegado conjunto da obra
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Ao longo de todo o processo de impeachment da Presidente Dilma Rousseff, um outro processo – denúncia contra o ex-Presidente José Sarney – passa ao largo de uma discussão que se mostra relevante, qual seja, se se deve julgar a Presidente pelos crimes alegados per si (e circunscritos a eles) ou pelo alegado conjunto da obra. Se se deve considerar, mesmo que minimamente, aspectos jurídicos, ou se as bases para o julgamento devem ser eminentemente políticas.
Não se quer aqui fazer uma discussão maniqueísta, é dizer, se vale o conjunto da obra ou os alegados crimes propriamente ditos. Quer-se aqui chamar a atenção para o fato de que o processo de impeachment de Dilma Rousseff está sendo levado a cabo não pelos crimes tipificados e aceitos inicialmente na denúncia, muito menos pelo conjunto da obra. O impeachment está sendo viável única e exclusivamente porque os atores favoráveis ao afastamento definitivo da Presidente chegaram à conclusão de que tinham o número de votos suficientes para fulminar a Presidente.
Definitivamente, não se trata do conjunto da obra – isso é retórica! – mas do número de votos, do placar favorável, da maioria ocasional. Primeiro à autorização conferida pela Câmara ao Senado para deliberar sobre a admissibilidade da denúncia, depois sobre pronúncia e ao arremate final no julgamento.
Numa palavra, o processo de impeachment surge pela plena certeza de seus adeptos de que falta à Presidente dois escudos parlamentares vitais à proteção do mandato do titular do Poder Executivo em época de crises e instabilidades. São eles: um presidente da Câmara alinhado ao presidente da República e uma base parlamentar suficiente para rechaçar qualquer tentativa de impeachment.
O caso Sarney
Tanto isso é verdade que a tentativa de abertura de processo de impeachment em 1988 contra o então presidente José Sarney morreu no nascedouro, quando o à época presidente interino da Câmara, Inocêncio Oliveira, rejeitou liminarmente a denúncia apresentada pelos então senadores José Ignácio Ferreira (PMDB, depois PSDB) e Carlos Chiarelli (PFL), respectivamente, presidente e relator da CPI da Corrupção, criada no Senado Federal por iniciativa de, nada mais, nada menos, Fernando Henrique Cardoso (PMDB) e Carlos Chiarelli, dois aliados do governo Sarney.
Um dos escudos parlamentares – presidente da Câmara alinhado ao presidente da República – afastou de pronto a denúncia extraída das conclusões daquela CPI. Note-se que Dilma Rousseff tinha na Câmara um presidente publicamente rompido com ela e seu partido. O outro escudo parlamentar – base de apoio ao governo – abandonou a Presidente na certeza de que tinham os votos necessários para levar adiante o impeachment.
A propósito do caso José Sarney, a CPI da Corrupção foi criada pela Resolução nº 22, de 1988, "destinada a investigar, em profundidade, as denúncias de irregularidades, inclusive corrupção, na Administração Pública, ultimamente tornadas tão notórias pelos meios de comunicação".
Que denúncias eram essas?
O Jornal do Brasil de 14 de novembro de 1993 dá conta de que
Uma estranha história que envolve um presidente da República em malversação do dinheiro público e favorecimento a empreiteiras e bancos privados dorme esquecida. [...] Poucos se lembram hoje que Sarney foi denunciado por crime de responsabilidade — por atos que resultaram em perdas para o patrimônio público. Integrantes de seu próprio governo garantem que ele tinha plena consciência do que fazia.
Diz o jornal que "Jorge Murad, secretário particular e ex-genro de Sarney, acabou sendo peça-chave para a CPI. Foi ele quem confirmou, em depoimento à Comissão, que sabia – e tinha informado ao presidente – que boa parte das verbas liberadas não tinha dotação orçamentária". O mesmo jornal informa: "Dílson Funaro já não era ministro da Fazenda quando depôs na CPI, e foi outra peça importante. Em seu depoimento, contou que Sarney não consultou a área econômica ao baixar o decreto que determinava reajuste retroativo dos contratos dos fornecedores do governo".
Essas citações são importantes porque revelam, para fins de raciocínio, uma certa analogia entre os casos Sarney e Dilma Rousseff, qual seja, alegada violação ao orçamento.
Veja o que diz o Jornal do Brasil sobre o caso Sarney:
Era 4 de agosto de 1988, e os membros da CPI da Corrupção — entre eles o então senador Itamar Franco, vice-presidente da Comissão — mal puderam crer no que tinham ouvido. Jorge Murad, secretário particular e ex-genro de Sarney, acabara de confirmar tudo o que eles precisavam: que o presidente fora informado de que boa parte das verbas que liberava em seus despachos com o ministro do Planejamento, Aníbal Teixeira, não tinha dotação orçamentária. Ou seja, o governo estava passando cheques sem fundos e utilizando a reserva de contingência do Orçamento — criada para casos de calamidade pública ou despesas prementes da administração federal — para atender compromissos políticos.
[...] nas conclusões da CPI, Sarney aparece como um presidente que distribuía o dinheiro dos Fundos Especiais — controlados diretamente pela Presidência e destinados aos municípios — sem critério técnico algum, movido apenas por interesses políticos.
O jornal vai mais além quanto ao descumprimento da lei orçamentária:
A CPI também comprovou, pelo depoimento do ex-ministro da Fazenda Dílson Funaro, que um dos maiores golpes nas contas públicas de que se tem notícia foi dado sem que ninguém da área econômica fosse consultado. [...] "Foi a primeira vez no governo que nenhuma assessoria econômica da Fazenda, nem a Secretaria do Tesouro, nem a Assessoria Econômica, nem ninguém, discutiu, teve acesso ou soube, a não ser pelo Diário Oficial, quando foi publicado", disse Funaro à Comissão.
Com essa alusão ao caso José Sarney, busca-se criar um paralelo entre as alegações de crimes de responsabilidade supostamente cometidos pelos dois presidentes por descumprimento da lei orçamentária. E que o tal "conjunto da obra" deve ser considerado no tribunal parlamentar. Todavia, existe uma brutal diferença!
No caso Sarney, o relatório final da CPI e a denúncia por crime de responsabilidade demonstraram haver dolo, pois Sarney tinha conhecimento das supostas violações orçamentárias, conforme confessaram Jorge Murad e Dílson Funaro. Dilma Rousseff, segundo evidenciado pela perícia conduzida por técnicos do Senado, não tinha ciência nem como aferir pari passu o cumprimento da meta em tempo real. Ademais, os ditos decretos não afetaram a meta fiscal e tinham autorização prevista em lei para suas edições. Quanto ao atraso do pagamento da equalização de juros do Plano Safra, a perícia também exclui qualquer possibilidade de conhecimento por parte da Presidente. O próprio Ministério Público reconhece que os atrasos no pagamento da equalização de taxas de juro não caracterizam operação de crédito. Portanto, ausência absoluta de crime de responsabilidade.
Por falar no conjunto da obra, quem não se recorda de que a economia no governo Sarney agonizava no fundo do poço, com todos os fundamentos econômicos e sociais em níveis insuportáveis? A inflação, para citar um exemplo, galopava a quase 2 mil por cento. Sem mencionar o congelamento de preços, salários, serviços. Sem falar no desabastecimento de produtos básicos, como carne e leite, e da corrida aos supermercados para comprar e estocar o máximo de produtos. Sem falar, também, na corrupção generalizada. Não é preciso dizer mais para retratar a debilidade do conjunto da obra no qual naufragava o governo de José Sarney.
Na análise da denúncia contra Sarney, o conjunto da obra de seu governo sequer foi ventilado. Sequer a denúncia foi aceita preliminarmente pelo então presidente interino da Câmara, Inocêncio Oliveira, apesar de a denúncia ter surgido de conclusões robustas de uma CPI composta e dirigida por senadores altamente respeitados, dentre eles, Itamar Franco, José Paulo Bisol, Maurício Correa, Affonso Camargo, José Ignácio Ferreira (Presidente), Carlos Chiarelli (Relator), Mendes Canale, Mansueto de Lavor, Severo Gomes, Chagas Rodrigues, José Fogaça, Cid Sabóia de Carvalho, Nelson Wedekin, Marcondes Gadelha e Carlos Alberto.
Ora, se no caso Sarney o conjunto da obra não foi relevante, nem mesmo para o recebimento preliminar da denúncia pelo presidente da Câmara, por que no caso da Presidente Dilma foi e continua relevante para o convencimento dos parlamentares partidários do impeachment?
Não, não é o conjunto da obra nem mesmo a existência de crime – um é retórica, o outro é pretexto. O que conta é o número de votos, a maioria fortuita. O que motivou e motiva os defensores do impeachment de Dilma Rousseff é a certeza da existência de maioria suficiente para golpear a democracia e tomar o poder sem a permissão das urnas.
O que faltou à Presidente Dilma Rousseff na Câmara e, até o momento, no Senado, e sobrou ao Presidente José Sarney, sabendo da debilidade do conjunto da obra de ambos? Como já citado, faltaram os dois escudos parlamentares essenciais à proteção do mandato de um presidente da República em tempos de crises e instabilidade política: um presidente da Câmara alinhado ao presidente da República e uma base congressual confiável, dois pilares e barreiras intransponíveis a qualquer aventura que possa colocar em jogo a democracia.
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