Imaginário

Choraram, se abraçaram, e, depois de meses na secura, se amaram. Estava decidido. Romperia aquela relação. O importante é a família, a igreja, as instituições que seguem funcionando normalmente. Não iria mais àquela confeitaria mal frequentada

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Todos os dias entrava na confeitaria perto de seu trabalho e pedia dois cafés. A mesa poderia variar, dependia da disponibilidade, o pedido, nunca. O dele, alongado, carioquinha. O outro, espresso, meia xicrinha (resisto ao xicarazinha, acho feio). Dois cafés. Todos as tardes. Tomava o seu, pagava a conta e saía. O outro, intocado, era deitado à pia.

Um cunhado, passando pela calçada, viu a cena. Atrapalhou-se. Certamente uma evidência de solerte infidelidade. Sentiu-se invadindo-lhe a intimidade. Não quis nem ver quem era a sirigaita. E poderia não ser nada disso. Benefício da dúvida e pulga atrás da orelha. Resolveu tirar a limpo. No mesmo horário, no dia seguinte, como quem não quer nada, passou na confeitaria, sentou-se ao fundo, simulando a leitura de um jornal. Chegou o cunhado. Dois cafés, um carioquinha, outro espresso. Tomou o seu, ficou pensativo por um quarto de hora, pagou a conta e saiu. O espresso, ali, esfriando. Caboclo esquisito, pensou. O garçon haveria de elucidar.

Vem todas as tardes, pede os dois cafés, toma o dele, e se vai. Não acha estranho? Não é da minha alçada, respondeu como um funcionário público. Todos os dias, dois cafés, toma um e sai, não é esquisito? Paga pelos dois, e deixa gorjeta, problema dele. Cada um tem os seus. Mais alguma coisa?

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Cunhado é cunhado. Contou para a irmã. À noite a jiripoca haveria de piar. A casa do cretino havia caído, o poço de virtude, o moralista militante, o palmatória-do-mundo tinha um, agora descoberto, segredo. Boa coisa não seria.

Ele prefere espresso, eu sou mais, todos sabem, um carioquinha. Ele quem? Meu amigo. Que amigo? Ele, oras, quem mais, meu parceiro de todas as tardes. Descreveu-o em detalhes.

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Sopesando a gravidade dos fatos, o casamento, a sagrada instituição da família, e escândalo que seria, aceitou. Não era tão grave. O invisível era homem, pelo menos. Fosse uma mulher, seria mais difícil. Mas era homem. E não se fala mais nisso nessa casa.

Ele prefere café espresso e defendia o Ele Não, com argumentos racionais, e com certa razão, reconheçamos, pela quantidade de estultices no primeiro mês de governo. Não me convenceu, seguimos a orientação da igreja, somos gente de bem. Estava mesmo começando até a brigar com ele, muito chato, com a reiteração vespertina daquele viu eu bem que disse. Todo santo dia a mesma coisa, sarcástico, comentando as falas dos ministros, dos garotos, e perguntando pelo Queiroz. E eu lá sei? É preciso ter fé.

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Choraram, se abraçaram, e, depois de meses na secura, se amaram. Estava decidido. Romperia aquela relação. O importante é a família, a igreja, as instituições que seguem funcionando normalmente. Não iria mais àquela confeitaria mal frequentada. Só tinha um pedido, queria distância do cunhado esquerdista. Aquiesceram, confundindo-se, carinhosos, reciprocamente carinhosos, protegidos pelos sacro-santos recônditos da normalidade.

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