Ideias fora do lugar

"Pode-se dizer o que quiser do PT, mas a verdade é que o ciclo histórico recente dos governos desse partido teve resultados inversos aos da “renovação” à direita dos partidos socialistas europeus. Mesmo com a política de alianças e com a inexistência de uma ruptura política, aqui houve uma substantiva redução das desigualdades dos rendimentos", diz o colunista Marcelo Zero; ele também lembra que, diferentemente dos partidos europeus, "o PT foi apeado do poder por um golpe de Estado"

Lula na reunião ampliada da Comissão Executiva Nacional do PT
Lula na reunião ampliada da Comissão Executiva Nacional do PT (Foto: Marcelo Zero)


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O artigo de Mathias Alencastro, publicado na Folha de São Paulo em 23 deste mês, intitulado “Senão se Transformar, PT se tornará PMDB de esquerda” é um caso típico de ideias fora de lugar. 

Alguns milhares de quilômetros fora de lugar e algumas décadas fora do tempo histórico.

Com efeito, o artigo compara o PT aos partidos socialistas europeus, que, durante décadas, segundo o autor, “resistiram à renovação” e acabaram se isolando. Mais especificamente, o autor recorda o exemplo do partido socialista francês, que, ao contrário do Partido Trabalhista britânico e do Partido Socialista português, não soube se renovar e, em vez de apoiar Mélenchon nas últimas eleições, insistiu na candidatura própria de Hamon, com resultados catastróficos. O mesmo ocorre na Espanha, onde o PSOE perdeu muito terreno para o Podemos.

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O artigo analisa a ruína política desses partidos socialistas a partir de sua incapacidade de desenvolverem uma política de alianças com a esquerda, mas não explica realmente os motivos dessa débâcle. 

Na realidade, a crescente ruína política desses partidos socialistas vem justamente do fato deles terem se “renovado”. Se renovado ao contrário. Conforme bem assinala Avelãs, após a conversão de Mitterrand ao “socialismo do possível”, as grandes linhas da ideologia neoliberal começaram a dominar o pensamento e a ação dos partidos socialistas e socialdemocratas europeus.

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Eles se “modernizaram”. Tony Blair, por exemplo, virou o queridinho da Terceira Via, e sua primeira grande medida foi conferir autonomia ao Banco da Inglaterra (banco central inglês). Anos depois, apoiaria a guerra ao Iraque, dando suporte à geoestratégia unilateralista dos EUA. 

De um modo geral, esses partidos acabaram capitulando ante a hegemonia neoliberal e desenvolveram políticas “amigáveis ao mercado” e contrárias aos interesses da população. Assim, começaram a rever e “renovar” o Estado de Bem–Estar e a promover políticas que redundaram em crescente desigualdade e precarização do mercado de trabalho. 

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Como bem evidencia Piketty, além de vários outros autores, houve um aumento substantivo das desigualdades no capitalismo avançado, ao longo das últimas décadas. Esse aumento das desigualdades, combinado com a crescente erosão do Estado de Bem-Estar e com um desemprego estrutural muito alto, cria um mal-estar que solapa os sistemas de representação e as democracias.   

A crise dos socialistas europeus, que faz parte de uma crise geral das democracias europeias vem daí, não do fato de não terem feito aliança com outros partidos de esquerda e se “renovado”. Isso é mera consequência. 

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E o PT? O PT está tão longe do Partido Socialista Francês quanto Lula está de Hamon.

Pode-se dizer o que quiser do PT, mas a verdade é que o ciclo histórico recente dos governos desse partido teve resultados inversos aos da “renovação” à direita dos partidos socialistas europeus. Mesmo com a política de alianças e com a inexistência de uma ruptura política, aqui houve uma substantiva redução das desigualdades dos rendimentos (embora não tenha sido acompanhada por uma redução da desigualdade patrimonial), redução significativa da pobreza, especialmente da pobreza extrema, geração volumosa de empregos formais com redução substancial da precarização no mercado de trabalho, expansão dos serviços públicos, implantação de uma política externa altiva, ativa e independente, recuperação da capacidade de investimento do Estado, etc.

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Entretanto, com a crise, esse ciclo histórico, que poderia ser chamado de ‘social-desenvolvimentista” e que lembra o ciclo histórico da socialdemocracia europeia quando ela ainda não tinha se “renovado”, entrou em choque frontal com os interesses do grande capital, especialmente do grande capital financeiro. 

E aqui temos de mencionar um “detalhe” que o autor curiosamente omite. O PT foi apeado do poder por um golpe de Estado. Ao contrário de Hamon e de outros que foram varridos pelo voto popular, Dilma Rousseff ganhou as eleições, mas foi derrubada por um conluio sórdido que uniu mídia, parte do judiciário, o grande capital e todos os setores da direita, inclusive aqueles que defendem a “nova política”, com certa torcida a favor, convenhamos, de alguns setores da “esquerda”.

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Esse golpe destinou-se e destina-se a impor uma agenda ultraneoliberal ao Brasil e sabe muito bem que seus inimigos principais são Lula e o PT, pois são os atores políticos que podem aglutinar com êxito a resistência à agenda golpista.  

De fato, mesmo com toda a lawfare contrária e anos de perseguição constante, Lula é, de longe, o candidato do campo da esquerda que reúne as melhores condições de derrotar o golpe e sua agenda. Não há outros. E o PT, mesmo com toda a campanha midiática contrária de décadas, ainda é o partido mais popular do Brasil. 

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O “Plano B” é, dessa forma, o sonho da direita. Daí a resistência a sua implantação, que deveria aglutinar todos aqueles realmente interessados em derrotar o golpe. Há, contudo, aqueles que só pensam em disputar um eventual espólio político de Lula, em vez defender a democracia e a soberania popular, que serão fraudadas, caso Lula seja impedido de disputar as eleições. 

O PT nunca teve aversão às renovações e ao diálogo com todas as forças de esquerda e progressistas. O PT, aliás, sempre foi um partido plural, que congregou forças políticas distintas. Agora mesmo, o partido vem promovendo amplos debates para elaborar um novo e renovado programa de governo, adaptado às novas conjunturas internacional, regional e nacional. Tais debates, incluem, é claro, avaliação crítica de erros cometidos.

A “renovação”, porém, não pode passar por cima da vontade popular e da defesa intransigente da democracia. Renovar-se fazendo, a priori, concessões aos golpistas e à direita não parece ser um bom caminho. Parece coisa de partido fisiológico. Parece coisa de um MDB de esquerda.

 

 

 

 

 

 

  

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