Homo tossiens
Com o passar do tempo, o organismo dos sobreviventes virou dependente de poluição, e isso levou a uma sofisticação da nova língua baseada no defluxo
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Foram 25 longos anos de poluição nos níveis máximos. Nuvens plúmbeas faziam negras revoadas pelo planeta semimorto.
As ruas pareciam o palco de um show de heavy-metal - só fumaça. Os rios tinham mais espuma que um copo de Malzebier quente. A impressão que se tinha, ao andar numa calçada, era a de estar numa sauna finlandesa em que, por distração, fora colocado no vaporizador excremento, em lugar de essência de eucalipto.
No princípio, as pessoas não se adaptaram ao efeito estufa. Para ser mais estatístico, 95% da população mundial morreu. Os 5% que restaram tiveram de resolver alguns problemas - além de pagar o condomínio e achar uma vaga na Zona Azul. O primeiro deles, após sobreviver, foi evitar respirar. E creiam, isso não foi fácil. Porém, a própria seleção natural - e também os escafandros, adquiridos pelo pessoal da Classe A Gargalhada - incumbiu-se de eliminar os 4,9% dos incompetentes que não conseguiam deixar de arfar. O 0,1% de população mundial que não sucumbiu reuniu-se para formar um novo país.
Depois de muita reflexão, decidiu-se que utilizariam, para a comunicação, a única coisa que havia em comum entre eles: a tosse.
Uma tossidinha passou a significar "sim", duas tossidinhas "não". Foi o que primeiro se convencionou.
Depois veio - três tossidinhas para "sexo", e quatro tossidinhas para "não, hoje estou com dor de cabeça". Cinco e seis tossidinhas passaram a querer dizer, respectivamente "pra que time você torce?" e "isto é um assalto!".
Com o passar do tempo, o organismo dos sobreviventes virou dependente de poluição, e isso levou a uma sofisticação da nova língua baseada no defluxo. O conjunto de 38 tossidas semifusas somado a uma sutil fungada podia ter diversos significados. Frases mais complexas - do tipo "você está irritantemente behaviorista hoje, querido" - ou mesmo livros de Jacques Lacan podiam ser vertidos para o idioma da tosse. No entanto, como sempre, havia aquele grupo espírito-de-porco que acreditava que os espirros representavam melhor a "fala" humana àquela época.
"A tosse é um engodo, é uma imposição autocrática. O espirro, este sim, representa nosso momento sócio-cultural-poluente”.
Logo depois, fundariam um partido de oposição.
Era inegável que, apesar de ainda rudimentar para a comunicação, a tosse fazia o grupamento progredir. Imaginem que a primeira coisa que fizeram foi eleger uma Assembleia Nacional Constituinte! Pena que a segunda coisa que fizeram foi um golpe militar.
Dizem que a intervenção aconteceu porque a Carta Magna aprovou uma lei que criava um país independente para os que adotassem o espirro como idioma.
O novo regime, todavia, não conseguiu evitar que a facção Espirro ocupasse uma área resoluta ao lado do País da Tosse - fundando ali a República Provisória do Espirro - e passasse a promover diversos atos terroristas contra seus primos irmãos.
O País da Tosse, apesar de viver sob estado de sítio, procurava desenvolver-se. No campo científico, chegaram a inventar motores mais poluentes que os do jipe Toyota movido a diesel. Eles garantiam à população os índices da bronquite asmática vitais à sobrevivência. No campo cultural, produziram um clássico da poesia épica, "Os Tossíadas", que, em dez cantos, narrava a saga da construção do País da Tosse. No esporte, em modalidades de aviação esportiva como as esquadrilhas da fumaça, eram imbatíveis.
O pouco que se sabia da República Provisória do Espirro era que a junta de governo investia maciçamente em agricultura. Toda a população participava no processo de plantação, colheita e beneficiamento do principal produto agrícola do país: o rapé. Se havia uma tecnologia avançada, como no País da Tosse, era um mistério. Aliás, mistério era a especialidade da República Provisória do Espirro. Tudo lá era muito enrustido.
Anos depois, entretanto, os tossistas puderam perceber que o país vizinho não estava tão atrasado assim.
Era madrugada. Ninguém notou que um avião espirrista penetrara o espaço aéreo do País da Tosse. Essa distração foi fatal para os adeptos do defluxo. Na calada da noite, o avião largou bem em cima de seu evoluído país uma bomba letal, com conteúdo mais mortífero ainda: xarope de agrião.
Nesse dia, eles viram o que era bom pra tosse.
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