Homicídios e tentativas: Rathenau, Lula e Bolsonaro
A tentativa de homicídio contra Bolsonaro exige toda uma reflexão política e moral, que vai muito além do episódio em si, que já é suficientemente grave para demonstrar a doença da democracia e do convívio respeitoso entre posições diferentes, pois ela também põe a nu os atos preparatórios de uma tolerância ao inverso
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A observação da vida de pessoas ilustres, que terminaram a vida de maneira épica ou trágica em momentos decisivos de um ciclo histórico, pode ajudar a compreender e a responder aos desafios do presente. A partir do assassinato de João Pessoa, do suicídio de Vargas, do assassinato de Rubens Paiva – por exemplo – pode ser desfiada uma análise para conhecer o comportamento de classes, estamentos burocráticos, grupos políticos e até mesmo dirigentes políticos e “formadores de opinião”, que se apresentam como jornalistas isentos ou mesmo intelectuais ditos “independentes”, que, de repente, se transformam em mentores políticos de uma geração. Quando um Governador da importância de Alckmim, por exemplo, diz uma frase que sugere apoiar uma tentativa de homicídio contra um ex-Presidente, toda a cultura política de uma época pode se desenhar a nossa frente, bem como o nível de apreço à democracia, da sociedade que o aceita e reelege-o: “o PT está semeando o que colheu”, disse o Governador sobre o atentado à vida de Lula, feito por pistoleiros, no Estado do Paraná.
Após aquela brutal tentativa de homicídio a tiros ainda não esclarecida, contra o Presidente Lula -prossigo nos exemplos – tratada pela grande mídia como um fato irrelevante e até mesmo duvidoso (celebrado pelo fascismo como um evento político positivo) sobrevém a lamentável tentativa de homicídio contra o candidato Jair Bolsonaro, notório pregador do ódio político e da violência contra os que identifica como seus adversários ou inimigos. Em política, ao ódio imoral ou amoral, despolitizado e sociopático, não se responde com o perdão supostamente politizado, mas com a moralidade humanista da política democrática e libertária, sem o ódio patológico das insanidades doentias. A ação deste insano que atacou Bolsonaro só pode ser compreendida dentro deste ambiente de ódio e de violência, que o mesmo Bolsonaro criou e por isso também ela é duplamente detestável: veio de um comportamento em que emoção doentia fez sucumbir a racionalidade da democracia e ainda abriu espaços para que o ódio se aprofunde.
Ambas as tentativas de homicídio são inaceitáveis e condenáveis. Tanto em termos morais como em termos políticos. Intriga saber, todavia, já que Lula é notoriamente um conciliador que estimula o diálogo e a persuasão – diferente da segunda vítima que estimula a violência e o uso de armas contra seus adversários – porquê os formadores de opinião da mídia empresarial magnificam a tentativa de homicídio contra Bolsonaro, dizendo que ela é um fato “gravíssimo” do nosso processo político (e é), mas não deram e não dão a mínima importância à tentativa de homicídio contra Lula, que foi tão ou até é mais grave do que aquela. Para fazer um exame destas diferenças de tratamento, teria que se voltar a um período em que lideranças que hoje se projetam no cenário nacional, como redentores do país, diziam impunemente que a ditadura “errou porque torturou, pois ela deveria ter matado”.
Desvelar quais os interesses que se escondem nesta análise diferenciada e quais as debilidades morais, os medos, as covardias que se explicitam neste bailado manipulatório, que tem como pano de fundo na grande política a precarização do trabalho, o congelamento do orçamento público, a entrega do pré-sal e a impunidade das violências seletivas de todos os dias -desvelar este enigma- é adentrar à compreensão da vitória de uma certa cultura proto-fascista, que já existia em determinados setores da sociedade, bem como exige entender a cumplicidade do oligopólio da mídia com a sua implementação, com os seus efeitos e o que estes defendem como desejável para o futuro do país. O fascismo que se avizinha, aliás, é diferente daquele do século passado, já que substitui a estética dos uniformes pela uniformização do ódio como opinião em movimento, as marchas com tochas por danças militarizadas, as palavras-de-ordem contra os judeus pela demonização de todos os diferentes: o fascismo que se avizinha procria, como o outro, na crise social e no desemprego, depois de se costurar na morte da compaixão e da utopia.
Walther Rathenau (Berlim,1867-1922), industrial judeu e estadista, intelectual de formação política, ministro de Relações Exteriores durante a República de Weimar, fundador do Partido Democrático Alemão – que os nazistas designavam como “conspirador judaico-comunista”- tinha duas posições claras que ajudavam elucidar – para os seus inimigos e adversários – os seus pontos supostamente mais vulneráveis a serem atacados. Defendia, Rathenau, que os judeus deveriam opor-se ao sionismo e ao socialismo, postura que – segundo ele – contribuiria para eliminar o anti-semitismo latente na sociedade alemã. Sua posição era recebida por parte da maioria da comunidade judia como enfraquecedora da sua identidade nacional-religiosa, e, pelos socialistas e comunistas, como debilitadora, dentro desta mesma comunidade, dos grupos de esquerda que aderiram aos ideais socialdemocratas e de esquerda.
Nas relações internacionais Rathenau defendia uma aproximação, tanto com a Europa capitalista como com a recente URSS, mas fazia uma demarcação radical com o modelo soviético. Para ele, este modelo pretendia – segundo sua análise – enquadrar todos numa espécie de “felicidade compulsória” através da igualdade, já que a Revolução Russa não era um sucesso civilizatório e humanizante, pois assassinara -segundo seus cálculos – 10 milhões de pessoas para salvar outros 10 milhões da fome e da miséria, apenas com o intuito de se “livrar da burguesia”. Pode-se concordar ou não com a posição crítica de Rathenau, baseada em dados quantitativos imediatos aferidos num dado momento da História, mas jamais se poderá dizer que ele era um néscio. Jamais fora um reacionário extremista de caráter fascista, pois abominava a violência política e inclusive defendia -no plano das relações de trabalho- a participação dos operários na gestão e na administração técnica e financeira das empresas capitalistas privadas.
Odiado pela extrema direita alemã, que iria mais tarde massivamente embarcar na aventura hitlerista, sem a simpatia de boa parte das comunidade judia-alemã porque fazia predominar – nas suas posições políticas – os seus vínculos de classe sobre as questões religiosas e, com o nazismo em criação, preparando-se para chocar o Ovo da Serpente, Rathenau é assassinado. Era a manhã de 24 de junho de 1922, na qual dois assassinos, Errwin Kern e Hermann Fischer, militantes de uma organização de extrema direita alemã, atiraram no Ministro com metralhadoras, após “fechar o seu carro”, fugindo a seguir da cena do crime. Mais tarde os pistoleiros se suicidaram no Castelo de Saaleck, em Koensen, local onde estavam refugiados quando foram cercados pela Polícia. Quando Hitler assumiu o poder em 1933, a memória de ambos foi homenageada, oficialmente, com o título de “Heróis Nacionais”. Os assassinos estavam, com aquele ato de violência armada, adiantando o espírito de uma época, que, mais tarde, os receberia como heróis: no nazi-fascismo os assassinos, os cultores da violência, os semeadores do ódio passam a ser e falar pelo Estado, junto a um Poder Judiciário submetido e acovardado.
A tentativa de homicídio contra Bolsonaro exige toda uma reflexão política e moral, que vai muito além do episódio em si, que já é suficientemente grave para demonstrar a doença da democracia e do convívio respeitoso entre posições diferentes, pois ela também põe a nu os atos preparatórios de uma tolerância ao inverso. Com a cumplicidade do oligopólio da mídia, dos dirigentes políticos da direita, de Governadores e de uma parte das classes médias superiores, uma parte da sociedade -que vinha participando do processo democrático- assumiu o Golpe por inteiro e parece preferir o fascismo à democracia, a violência física à política, o ódio de classe àquela tolerância concertada, em torno dos valores de 88. Eles não são maioria, mas tem a força e o dinheiro. Passarão, os fascistas? já devemos nos perguntar nos dias de hoje. Quando nos movimentos de junho de 2013 todo o padrão globo de qualidade anunciava vibrante que o “gigante acordou”, não era certamente isso que ele queria dizer, mas quem pode duvidar que aquela aventura golpista, em momentos de radicalização de uma crise mundial e nacional não possa se tornar um processo sem tréguas de liquidação da democracia, parodiando a crítica de Rathenau, matando “cem mil”, para o conforto dos cem mil que se deleitam com o modelo neoliberal?
Também publicado no site Sul21.
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