Hoje a revolução não é possível?
A revolução no sentido estrito da palavra é a derrubada da classe dos capitalistas, derrubada promovida pela classe que é, ao mesmo tempo, oprimida e explorada pelos capitalistas: a classe trabalhadora
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Há alguns dias, importante dirigente nacional do PT enviou, através do “zap” um artigo publicado na tribuna de debates do jornal El País.
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Intitulado “Por que hoje a revolução não é possível?”, o artigo foi publicado em 3 de outubro de 2014 e vem assinado por Byung-Chul Han, conhecido por suas reflexões acerca das redes sociais.
O artigo pode ser lido no seguinte endereço: https://brasil.elpais.com/brasil/2014/09/22/opinion/1411396771_691913.html?id_externo_rsoc=whatsapp
O artigo expressa um ponto de vista muito comum em setores da esquerda brasileira e mundial, para quem a revolução seria não apenas um fenômeno raro, mas também um fenômeno do passado, impossível de ocorrer nos dias atuais.
Se isto fosse mesmo verdade, estaríamos diante da disjuntiva reforma ou barbárie.
O artigo toma como ponto-de-partida uma polêmica entre Byung-Chul Han (daqui por diante denominado de BCH) e Antonio Negri, este último porta-voz de um ponto de vista influente em setores da esquerda que tratam a revolução de forma, digamos, apocalíptica.
BCH começa fazendo perguntas: “Por que o regime de dominação neoliberal é tão estável? Por que há tão pouca resistência? Por que toda resistência se desvanece tão rápido? Por que a revolução já não é mais possível apesar do crescente abismo entre ricos e pobres? Para explicar isso é necessária uma compreensão adequada de como funcionam hoje o poder e a dominação.”
Para facilitar nossa conversa, suponhamos que todas estasafirmações – vertidas capciosamente na forma de perguntas – são totalmente corretas.
Vamos supor, portanto, que nenhum dos acontecimentos ocorridos no mundo entre 1979 e 2018 contradiz aquelas afirmações.
Vamos supor, então, que os últimos 40 anos foram marcados por uma dominação neoliberal “estável”, por uma resistência que se “desvanece rápido”, por uma revolução que “não é mais possível”.
Mesmo que aceitemos estes pressupostos, não há como negar que nem sempre foi assim e não é a primeira vez que parece ser assim.
Nem sempre foi assim: entre 1642 (revolução inglesa) e 1979 (revolução iraniana), houve diversos “regimes de dominação” que foram questionados e destruídos.
Nesse questionamento e destruição, assim como no surgimento de novos “regimes”, jogaram papel importante tanto as guerras quanto as revoluções.
Não é a primeira vez que isto acontece: entre 1642 e 1979, houve diversos períodos dominados pela “estabilidade”, em que as reformas e contrarreformas predominaram sobre as guerras e as revoluções.
Mas visto em perspectiva histórica, estes períodos de estabilidade apenas acumularam material explosivo para uma próxima rodada de instabilidade que, em alguns casos, resultou em guerras, revoluções e mudanças de “regime”.
Detalhe importante: nestes períodos de aparente estabilidade, sempre havia gente de bom senso afirmando algo assim como: antes de mim, o Dilúvio...
Assim como havia, é importante reconhecer, gente que via uma revolução atrás de cada esquina. Mas voltemos a BCH, porta-voz da suposta estabilidade definitiva do regime de dominação.
Segundo ele, “para explicar isso é necessária uma compreensão adequada de como funcionam hoje o poder e a dominação”.
É muito importante compreender adequadamente tudo isto. Infelizmente, BCH promete, mas não entrega. E se não parece ser assim, é devido (novamente) a um truque retórico.
Num primeiro momento, a técnica de BCH consistiu em apresentar afirmações preconceituosas disfarçadas de perguntas.
Agora sua técnica consiste em falar da árvore e esquecer do bosque.
O atual “regime de dominação” é parte integrante do capitalismo contemporâneo. E quem defende uma revolução, precisa, efetivamente, decifrar os mecanismos de dominação. Mas existe uma relação muito forte entre a estabilidade do capitalismo e a estabilidade da dominação. Motivo pelo qual não basta falar da “dominação”: é preciso entender como se articulam “dominação” e “exploração”.
BCH afirma: “Quem pretende estabelecer um sistema de dominação deve eliminar resistências. Isso é certo também para o sistema de dominação neoliberal”.
Acontece que o objetivo dos capitalistas não é “estabelecer um sistema de dominação”, o objetivo dos capitalistas é acumular capital.
Dito de outra forma: o sistema de dominação não é um fim em si mesmo, é um meio. Portanto, quem deseja compreender o sistema de dominação, precisa compreender o capitalismo.
BCH segue outro caminho: “a instauração de um novo sistema requer um poder que se impõe frequentemente através da violência. Mas esse poder não é idêntico ao que estabiliza o sistema por dentro”.
Ou seja: seu fio da meada é o “poder”, o poder que “instaura”, o poder que “estabiliza”. Não há uma análise sobre a natureza econômico-social da tal ordem, não há uma análise sobre a exploração, apenas se fala da “dominação”.
Este tipo de abordagem resulta em conclusões defeituosas.
Por exemplo, vejamos o seguinte trecho: “O poder estabilizador da sociedade disciplinadora e industrial era repressivo. Os proprietários das fábricas exploravam de forma brutal os trabalhadores industriais, o que ocasionava protestos e resistências. Nesse sistema repressivo são visíveis tanto a opressão como os opressores. Existe um oponente concreto, um inimigo visível diante do qual a resistência faz sentido”.
Sempre com o intuito de facilitar, vamos fingir que todas as frases acima sejam totalmente verdadeiras.
Pergunto: por qual motivo a história evoluiu de maneira tão diferente em países onde existia a tal sociedade “disciplinadora e industrial”? Por qual motivo em algumas delas houve revoluções e noutras não? Por qual motivo as principais revoluções do século XX (México, China, Rússia) ocorreram exatamente naquelas sociedades onde a “indústria” era cercada por camponeses por todos os lados?
É óbvio que a resposta para tais “diferenças evolutivas” só pode ser encontrada se a análise deixar de lado generalizações do tipo “sistema de poder” e se dedicar a análise histórica concreta da luta de classes.
Mas isto implicaria em abordar a evolução do capitalismo como sistema de exploração, não apenas como sistema de dominação; o que resultaria em perceber que as contradições do modo de produção capitalista estão na base dos conflitos fundamentais de nossa sociedade. E que, portanto, é nestas contradições que reside o segredo que explica porque alguns períodos históricos são ditados predominantemente pela “reforma”, enquanto outros são marcados pela “revolução”.
Alias, é importante lembrar que até hoje, mesmo nos momentos históricos marcados pela revolução, o capitalismo demonstrou alta capacidade de resistência e resiliência.
Portanto, em última análise não é o atual “sistema de dominação” que garante a estabilidade. A ordem é inversa: a estabilidade da dominação depende da dinâmica da exploração. Ou ainda: a instabilidade é determinada pelas contradições e crises do capitalismo, pela luta entre os capitalistas e destes com os trabalhadores.
Nem todo capitalismo em crise desemboca numa revolução, assim como nem toda revolução resulta em vitória revolucionária. Mas não existe revolução vitoriosa num capitalismo em fase de expansão.
Quem não se dá conta disto, se contenta com frases do tipo: “é ineficiente o poder disciplinador que com grande esforço oprime os homens de forma violenta com seus preceitos e proibições. É essencialmente mais eficiente a técnica de poder que se preocupa com que os homens por si mesmos submetam-se à trama da dominação”.
Tal frase é uma obviedade, válida em diferentes situações históricas. A saber: a dominação pela hegemonia é mais estável do que a dominação pela força.
O que não é uma obviedade? Compreender por que, em determinadas situações históricas, é possível derrotar a dominação, não importando se esta dominação está baseada na hegemonia ou na força. E a resposta é: são as crises do capitalismo que abrem esta possibilidade.
BCH parece acreditar que só recentemente surgiu esta “técnica de poder que se preocupa com que os homens por si mesmos submetam-se à trama da dominação”. Mas se ele acredita nisto, está redondamente enganado. O escravismo antigo e as várias modalidades de feudalismo abundam em exemplos de submissão “por si mesmos” à “trama da dominação”.
BCH também parece acreditar que os mecanismos de dominação e hegemonia são mais potentes hoje do que no passado. E nisto ele está provavelmente certo. Mas por quais motivos são, ou pelo menos parecem mais potentes neste período que ele chama de neoliberal? Exatamente porque nos últimos 40 anos o capitalismo – como modo de produção, exploração, circulação – tornou-se mais hegemônico do que nunca.
Mas exatamente porque ele é mais hegemônico do que nunca, suas contradições também são mais potentes do que nunca foram. E por isso o momento em que ele parecer ser mais “estável” é também o momento em que sua “instabilidade” se torna mais aguda.
Dito de outra forma: no momento em que a situação objetiva parece ser mais a propícia para que ocorra uma revolução, neste mesmo momento os elementos subjetivos parecem ser os menos propícios para que ocorra uma revolução.
Para quem acredita que os elementos subjetivos (a politica) atuam no vácuo, a única conclusão é aquela proposta por BCH: hoje a revolução não é mais possível. Ou ainda: antes havia um sujeito revolucionário, hoje não há mais.
Mas quem se dê ao trabalhar de estudar os processos revolucionários realmente existentes, vai perceber que existe uma dinâmica muito mais complexa entre os fatores ditos objetivos e subjetivos.
Vai perceber, também, que o determinante nesta dinâmica são os fatores objetivos, vinculados à maneira de ser do capitalismo, não os fatores subjetivos, vinculados à maneira como as pessoas enxergam o capitalismo.
Os fatores objetivos (por exemplo, o desenvolvimento acumulado das forças produtivas, a velocidade e a natureza da acumulação de capital etc.) determinam a capacidade que o capitalismo tem de compensar, neutralizar, reduzir os danos causados pelos fatores destrutivos que ele próprio gera.
Dito de outra forma: há momentos em que o capitalismo perde grande parte de sua capacidade de auto-reforma. Nestes momentos, a revolução se torna possível e necessária, o que não a converte (nem à sua vitória) em provável ou inevitável.
E se muita gente acreditar que a revolução não é possível, isto não impedirá que uma revolução ocorra, apenas tornará mais difícil que ela triunfe.
Ou seja: neste sentido, BCH não explica a estabilidade do regime de dominação; a análise de BCH contribui, mesmo que não seja esta sua intenção, para a estabilidade do regime de dominação.
Por exemplo: “é importante distinguir entre o poder que impõe e o que estabiliza. O poder estabilizador adquire hoje uma forma amável, ‘smart’, e assim se faz invisível e inatacável. O sujeito submetido nem sequer é consciente de sua submissão. Acredita ser livre. Essa técnica de dominação neutraliza a resistência de uma forma muito eficiente. A dominação que submete e ataca a liberdade não é estável. Por isso o regime neoliberal é tão estável, é imunizado contra toda a resistência porque faz uso da liberdade, em lugar de submetê-la”.
Cá entre nós, em que mundo BCH vive?
Peço ao leitor que pense na quantidade de guerras imperialistas, repressões violentas, opressão sistemática aos direitos de organização e manifestação ocorridas desde 1979, em todo o mundo.
Se fosse verdade que “o regime neoliberal é tão estável, é imunizado contra toda a resistência porque faz uso da liberdade, em lugar de submetê-la”, a população carcerária dos Estados Unidos não seria do tamanho que é; o Ato Patriota não teria sido necessário; não estariam crescendo como estão, em todo o mundo capitalista, as restrições aos direitos democráticos básicos e os orçamentos militares, para não falar dos sistemas de monitoramento e controle digitais.
Mesmo o leitor que não conhece a história da Coreia do Sul percebe o ponto débil do exemplo que BCH dá sobre o que teria ocorrido naquele país: “A opressão da liberdade gera resistência de imediato. Ao contrário, isso não ocorre com a exploração com a liberdade. Depois da crise asiática, a Coreia do Sul estava paralisada. Veio então o FMI e deu crédito para os coreanos. Para isso, o Governo teve que impor a agenda neoliberal com violência contra os protestos. Hoje mal existe resistência na Coreia do Sul. Pelo contrário, predomina um grande conformismo e consenso com depressões e síndrome de Burnout. Hoje a Coreia do Sul tem a mais alta taxa de suicido do mundo. A pessoa emprega a violência contra ela mesma, em lugar de querer mudar a sociedade. A agressão ao exterior que teria como resultado uma revolução cede diante da autoagressão”.
Novamente vamos supor que as frases são todas corretas e nos perguntemos: o que BCH está nos dizendo? A resposta é: ele está afirmando que a classe dos capitalistas da Coréia do Sul obteve, numa determinada situação, uma vitória contra os trabalhadores sul-coreanos. Vitória que talvez não tivesse ocorrido, se esta classe capitalista tivesse adotado outra tática.
Pois bem: o que isso prova acerca da possibilidade ou não da revolução, seja na Coreia do Sul, seja noutros países do mundo? A resposta é: não prova nada. Ou ainda: prova que a simples existência de condições objetivas para que ocorra uma revolução não garantem que ela ocorra, assim como a ocorrência de uma revolução não garante que ela se torne vitoriosa.
Isto não quer dizer que BCH esteja errado, quando dá a entender que a opressão política aberta (e também as guerras, acrescentamos nós) são variáveis decisivas para fazer os fatores subjetivos entrarem em movimento.
O erro de BCH está em outro lugar: não perceber que a dinâmica objetiva do capitalismo conduz, de tempos em tempos, para situações de opressão política aberta e para situações de guerra. E que estamos exatamente num destes momentos.
BCH polemiza com a “multidão” de Negri. Trata-se de uma polêmica do roto com o esfarrapado. Nos dois lados da polêmica, há similar cegueira: não perceber o papel das classes sociais, substituída num caso por uma “multidão cooperativa, interconectada, capaz de se transformar em uma massa de protesto e revolucionária global” e, noutro caso, pela “solidão do auto empregado isolado, separado”.
Novamente, BCH não está errado quando afirma que “não se forma uma massa revolucionária com indivíduos esgotados, depressivos, isolados”. O erro está em não se dar conta de que esta não é a primeira vez na história em que a classe trabalhadora vive uma mutação na sua forma de ser e viver; agora como antes, a desestruturação das formas anteriores de ser e viver da classe trabalhadora não fazem com que esta classe deixe de existir.
BCH se apresenta como crítico do capitalismo. E considera não ser possível “explicar o neoliberalismo de um modo marxista”. E por qual motivo?
Porque, diz ele, “no neoliberalismo não existe lugar nem sequer para a “alienação” a respeito do trabalho. Hoje dedicamo-nos com euforia ao trabalho até a síndrome de Burnout [fadiga crônica, ineficiência]. O primeiro nível da síndrome é a euforia. Síndrome de Burnout e revolução se excluem mutuamente. Assim, é um erro pensar que a multidão derrotará o império parasitário e instaurará a sociedade comunista”.
Novamente, não sei em que mundo BCH vive. Primeiro, há no mundo centenas de milhões de desempregados. Segundo, não sei onde ele enxerga “euforia” na atitude daquelas centenas de milhões que estão empregados. Muito mais fácil é enxergar alienação. Terceiro e mais importante: o marxismo, especialmente sua análise do capitalismo, é de uma atualidade tão evidente, que até mesmo porta-vozes do capitalismo reconhecem isto.
Claro, uma revolução, especialmente uma revolução vitoriosa, supõe uma classe trabalhadora emancipada da dominação política e ideológica exercida, sobre ela e contra ela, pela classe dos capitalistas. Supõe, ainda, que as pessoas tenham tempo livre para fazer política. Não admira que medidas como a redução da jornada de trabalho sejam comuns em períodos revolucionários.
Finalmente: BCH termina seu texto criticando o “sharing” e a “comunidade”, que na opinião de alguns autores seriam uma espécie de antecipação, exemplo e modelo de um comunismo possível.
Esta é uma discussão muito interessante, mas qual é o lugar dela numa discussão sobre se a revolução é ou não possível?
A revolução no sentido estrito da palavra é a derrubada da classe dos capitalistas, derrubada promovida pela classe que é, ao mesmo tempo, oprimida e explorada pelos capitalistas: a classe trabalhadora.
Mas também podemos falar da revolução no sentido amplo da palavra, ou seja, da destruição do capitalismo e da criação de outro modo de produção.
E o que seria a essência desta revolução no sentido amplo?
Seria a constituição de uma sociedade baseada na produção e na propriedade coletiva, uma sociedade que planeja suas necessidades e suas atividades, uma sociedade organizada para produzir valores de uso e não mercadorias, uma sociedade que supere toda forma de exploração e opressão – portanto, que supere não apenas o capitalismo, mas também a divisão da sociedade em classes.
Em vários aspectos, esta sociedade já começa a ser antecipada. O aumento da produtividade e a redução do custo de produção criam as bases materiais para o desaparecimento, não apenas das carências, mas inclusive da exploração do ser humano pelo ser humano. E começam a ser testadas antecipações de como se poderia organizar a humanidade, em novas bases.
Claro: várias destas antecipações terminarão se demonstrando estéreis. E nenhuma delas, tomada isoladamente, será capaz de superar o capitalismo.
Pelo contrário: todas as novidades “socialistas” serão inevitavelmente sufocadas pelo capitalismo, se este não for superado de conjunto.
Algo parecido ocorreu na longa transição do feudalismo para o capitalismo.
E também por isto a revolução burguesa capitalista foi, naquela época, possível e necessária.
Por analogia, hoje a revolução socialista também é possível e necessária, seja para impedir a barbárie, seja para fazer florescer brotos socialistas e comunistas que já estão por aí.
Que ela seja possível e necessária, não quer dizer que ela vá ocorrer efetivamente, nem quando, nem sob que formas. Mas é sintomático que El País tenha aberto espaço para debater o assunto.
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