Historia magistra vitae



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“É preciso encontrar as diversas causas da guerra, perceber seus sinais antes que ela aconteça”. (Tucídides)

O tempo é o faminto e feroz devorador que tudo destrói, mas é também o regenerador perene de tudo quanto nasce e vive, por isso o poeta romano Ovídio (*43 a.C.) o apresenta na imagem da Fênix rediviva. Enquanto o tempo cíclico (tempo cósmico) exclui a ideia de história como aparição do novo, o tempo linear (tempo épico) dos entes da Natureza introduz a noção de história como memória dos que realizaram feitos inovadores, dignos de serem lembrados, tornando-os memoráveis, personagens e trajetórias a serem imitados sob a forma de grandes exemplos.

Com o expansionismo ocidental do cristianismo, herdeiro do judaísmo, uma nova categoria temporal insere-se no pensamento humano: o tempo bíblico segundo o qual a história segue um desígnio e possui uma finalidade que foram determinados pela vontade de Deus, tempo de realização da Promessa, rumo a um fim que orienta sua direção e lhe dá sentido. A História é pois, para a visão bíblica cristã, a operação divina no tempo. E com a vinda de Jesus de Nazaré, o filho de Deus, a Revelação estaria consumada.

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Porém, diante dos eventos históricos devoradores da ordem da Cristandade, com o advento do Islã, de cismas eclesiásticos, cruzadas, guerras entre Império e Papado, foi necessário enfrentar os acontecimentos cujo sentido não estava dado, mas que à luz da crença cristã na existência da Providência era preciso enquadrá-los no bojo da ordem divina. Tornou-se imperiosa a busca de uma formulação mais adequada sobre a estrutura “secreta” do tempo e de seu sentido. Com isso a Encarnação do Verbo deixava de ser o fim da história para ser o seu centro, significando que algo mais ainda deveria acontecer antes do Juízo Final. 

Na influente doutrina do ritmo trinitário da história, do abade cisterciense calabrês e filósofo místico Joaquim de Fiore (1135-1202), em seu desejo de encontrar um fio condutor para a história, capaz de manter viva a esperança na existência de um plano divino redentor (entre seus leitores apreciadores encontra-se o Papa Inocêncio III) este sentido será alcançado por meio daquilo que o abade enuncia como sendo a peleja do Espírito Santo (com seus fiéis cristãos europeus) versus o Anticristo (com os mouros seus seguidores), a qual coincidirá com a vitória fundadora do tempo de plenitude do Espírito, coincidindo com o milenar Império da Revelação.

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Como anota a filósofa brasileira Marilena Chauí (Brasil: O Mito Fundador. Folha de São Paulo, Caderno Mais, 26/03/2000), é a partir desta herança hermenêutica do tempo e da história que surgirá o novo continente no início do século XVI. Antes mesmo de serem designados Brasil ou América, no aqui continental habitava um símbolo com duas significações para os conquistadores europeus cristãos: sede econômica e política dos grandes impérios da China e da Índia (Oriente), mas também sede imaginária do Paraíso Terrestre, preservado das águas do Dilúvio, escrito no Livro dos Gênesis como terra austral e oriental, cortada por quatro rios imensuráveis, rica em ouro e pedras preciosas, com temperatura de primavera eterna. Terra profetizada por Isaías quando escreveu: “Assim, tu chamarás por uma nação que não conheces, sim uma nação que não te conhece acorrerá a ti” (Is. 66, 20). O Padre Antônio Vieira escreverá sua compreensão do Brasil a partir do texto bíblico: “Digo que pelo texto de Isaías se entende o Brasil” (História do Futuro, 1666). Ou seja, nossa matriz fundadora é elaborada segundo uma raiz teológico-política judaico-cristã.

Marilena Chauí esclarece ainda que essa narrativa, embora elaborada no período da conquista, não cessa de se repetir porque opera nosso Mito Fundador. Mito, no sentido antropológico funciona como uma solução imaginária para tensões, conflitos e contradições que não encontram caminhos para serem resolvidos na realidade. E em sua acepção psicanalítica, Mito implica o impulso para a repetição por impossibilidade de simbolização e, principalmente, como bloqueio à passagem para a realidade. Mito Fundador, portanto, porque à maneira de toda “fundatio”, impõe um vínculo interno com o passado como origem, isto é, com um passado que não cessa, não permite o trabalho da diferença temporal e que se conserva como perenemente presente. Um Mito Fundador é aquele que não cessa de encontrar novos meios para se exprimir em novas linguagens, em novos valores e ideias, de tal modo que quanto mais parece ser outra coisa, tanto mais é a repetição de si mesmo.

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Do artigo da professora Marilena Chauí queremos destacar três elementos constituintes principais, apontados por ela, do nosso Mito Fundador elaborado a partir da matriz teológico-política cristã: 1. O Brasil como Jardim do Paraíso; 2. O Brasil como um país Abençoado pela Providência Divina; 3. O Brasil governado pela Graça de Deus. Esses três elementos vão nutrir a mente e as ações da classe dominante desde então até o nosso tempo presente.

A produção mítica do País-Paraíso nos lança e nos conserva no reino da Natureza, deixando-nos fora do mundo da História: somos sensíveis e sensuais, carinhosos e acolhedores, alegres e religiosamente não-violentos. A bandeira republicana brasileira não exprime a política nem as lutas humanas inseridas nas bandeiras tricolores (liberdade, igualdade e fraternidade). Somos uma unidade nacional expressa pela Natureza: verde (floresta), amarelo (ouro), azul (céu), branco (paz e ordem). Um país deitado eternamente em berço esplêndido, ao som do mar e à luz do céu profundo, iluminado ao sol do novo mundo. 

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O segundo elemento lança-nos na submissão à manifestação da vontade divina, como afirmou Padre Antônio Vieira, que vê o Brasil como a confirmação das profecias de Daniel e Isaías, “um novo céu e uma nova terra”, consumação do tempo da revelação na qual irá se realizar o seu destino-manifesto de terra abençoada por Deus. 

Por fim, o terceiro componente da matriz mítica fundadora brasileira encontra-se na elaboração jurídico-teocrática do governante pela Graça de Deus. Na Bíblia encontram-se os fundamentos teológicos da soberania política divina. Lê-se nos Provérbios: “Por Meu intermédio, os reis governam e as autoridades exercem sua justiça; da mesma forma, mediante o Meu poder, governam os nobres, todos os juízes da terra” (8:15). As cartas paulinas seguem o mesmo caminho: “Todos devem sujeitar-se às autoridades superiores porquanto não há autoridade que não venha de Deus; e as que existem foram ordenadas por Ele” (Romanos 13:1). Também nos evangelhos encontram-se sentenças com o mesmo teor: “Toda autoridade Me foi dada no céu e na terra” (Mateus 28:18). Portanto, por uma decisão misteriosa e incompreensível, ou seja, por uma graça especial, do Alto, Deus concede o poder a alguns homens. Consequentemente, o governante não representa os governados e sim a fonte transcendente do poder. Governar é distribuir os favores divinos. Nesta formulação teológica, o poder político, isto é, o Estado, antecede a sociedade e tem sua origem fora dela, primeiramente nos decretos divinos e, como consequências, nos decretos do governante.

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Estes três elementos conjugados dinamicamente vêm justificar a onipresença do nosso Mito Fundador, alimentado pelas elites no poder, do qual nasce a ideia de que, em virtude da índole alegre e acolhedora, religiosa e ordeira do nosso povo, a história no Brasil foi feita sem derramamento de sangue, porque os acontecimentos políticos não parecem provir do povo e suas lutas, mas diretamente do Estado por meio dos decretos dos governantes. Consequentemente as lutas de nossa história são tratadas pela elite dominante como conspirações ou “inconfidências” (deslizes, mancadas, baixezas) ou fanatismo popular atrasado (Revolução Praieira, Canudos, Equador, Contestado ou atualmente o MST e MTST). Sem contar o tráfico de 10 milhões de africanos desterrados para o Brasil Colonial, que aqui sofreram todo tipo de torturas, violações e morte, além da dizimação dos povos originários.

Assim, o Mito Fundador opera com a visão teológico-política do direito divino e natural ao poder, legitimando o ufanismo nacionalista (verdeamarelismo) e desenvolvimentista, visando assegurar a imagem do Brasil como sendo uma comunidade una e indivisa, ordeira e pacífica, rumando ao seu destino-manifesto escolhido por Deus. Para os dominantes, quem questionar essa determinação – com as injustiças que dela decorrem – é colocado na posição subversiva de um Anticristo, inimigo do Estado e de Deus. 

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Baseado em tal teologia política, o neofascismo brasileiro contemporâneo colocou no centro de sua práxis o retorno a este tempo passado, expresso no lema: “Brasil (o Estado) acima de Tudo, Deus (Soberania divina) acima de Todos”, tendo no campo religioso conservador e no campo hierárquico militar os alimentadores dessa ideologia, qual Fênix a reavivar as bases do conservadorismo político, visando a nos impedir de continuarmos em nossos passos ao encontro de nossa história popular e democrática como nação. Como exemplos recentes e ilustrativos, há uma postagem do dia 07/01/2022, nos “stories do instagram” da ex-primeira dama evangélica Michele Bolsonaro, com o seguinte dizer: “O diabo está preparando o mundo pro Anticristo, mas o Espírito Santo está preparando a igreja para o arrebatamento”. Como segunda ilustração, encontra-se no discurso do ex-presidente em exercício, Hamilton Mourão, de 31/12/2022, a ênfase na teologia política do destino-manifesto: “Que o nosso amado Brasil continue sua caminhada na direção do seu destino-manifesto”.

Sendo assim, a recém-conquistada democracia brasileira precisa acompanhar bem de perto os sinais emitidos pelos templos e pelos quartéis, para evitar o retrocesso das ameaças golpistas ardilosas como aquela armada e consolidada em 2016.

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