História do cerco ao STF
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A História não admite o “se”, tal como no Direito o “não” inverte a lei pretendida.
Saramago fez o revisor Raimundo Silva introduzir um “não” na ajuda dos cruzados à conquista de sua capital pelos portugueses em História do Cerco de Lisboa. O autor transformou quimicamente o fato para tentar um equilíbrio, se não histórico, ao menos emocional. O Mago José quis falar de amor e refletir sobre as correções (in)devidas em um texto e as consequências de atos da emoção sobre os da razão. Combinou a conjunção com o advérbio e postulou se os mouros não tivessem invadido Lisboa, dentre outras subversões à história conhecida. Mas isso é ficção, muito boa, mas ficção.
Não se pode alterar pedaços de uma afirmação – ou negação – em textos legais; por isso a cautela na elaboração da lei é importante. Em país no qual ainda há 6% de analfabetos absolutos (cerca de 12 milhões de pessoas com mais de 15 anos) e 38 milhões são considerados analfabetos funcionais, as Comissões de Redação das Casas Legislativas são muito importantes, mister consignado em grande parte à assessoria de funcionários de carreira, deixando o representante do povo mais à vontade para a concepção dos direitos e deveres. Os Operadores do Direito atuam fartamente nesse mar de inconsistências, omissões, dubiedades e as más redações que deixariam consternados meus mestres da Língua Portuguesa Nivaldete e Modesto.
Ao Supremo Tribunal Federal cabe a defesa da Constituição Federal, o que inclui sua interpretação, ainda que se debruce em dispositivos legais e regimentais de outros poderes que explicitamente firam a Lei Maior. Houve abundante manifestação inconstitucional ao longo do ano, incluindo ataques ao Supremo Tribunal Federal que devem ser sumariamente refutados e os autores devidamente incriminados e julgados. No entanto, a contrapartida de alguns Magistrados deixa margem ao cerco à Suprema Corte.
O caso mais recente da lei da Ficha Limpa (nome dado à Lei Complemetar 64/1990 após as alterações da Lei Complementar 135/2010) não é uma especulação literária ou licença poética para dizer que “não seria desse jeito se de outro fosse”. Além de o STF já ter enfrentado a lei em 2012 com profundidade e atestado sua constitucionalidade, a remoção de apenas um trecho da validade remonta aos tempos da ditadura militar quando decretos-lei faziam esse papel, pois o parlamento lá sim era fictício para pseudo-legitimar uma dura realidade ditatorial. Isso porque aos chefes dos executivos não é facultado vetar trechos de um artigo, parágrafo, alínea ou inciso de qualquer dispositivo legal (artigo 66, § 2º da Constituição Federal, em relação ao Presidente da República), mas o Ministro Kassio Nunes Marques, responsável pela liminar concedida, fez isso ao tornar inconstitucional apenas a parte final da contagem do prazo de inelegibilidade do condenado político.
Não bastasse tal estultice suprema, Kassio explicita o casuísmo ao restringir a aplicação da lei às situações em análise referentes a este ano eleitoral. Ou seja, se inconstitucional, o trecho assim o seria desde que a alteração na lei complementar foi sancionada em 2010 e para todas as situações, indistintamente. O paradoxo é alegar que tal procedimento evita insegurança jurídica para não lidar com situações pretéritas já julgadas. A função do Magistrado é exatamente conferir segurança jurídica ao ser guardião da Constituição e, havendo tal dúvida, de pronto, a matéria não poderia ser julgada de outra forma que não pela improcedência do pleito.
Sabemos que a condição de notável saber jurídico e reputação ilibada requerida para assumir uma cadeira no STF, conforme reza o artigo 101 da Carta Magna, não é de pleno entendimento e aceitação, transfigurando-se por vezes no atendimento aos interesses de ocasião. O juiz Kassio Nunes Marques, portanto e ao que tudo indica, segue o bolsonarismo para exarar liminar esdrúxula revogando trecho importante da lei da Ficha Limpa, apostando também no entendimento semelhante dos 45% do STF que apoiaram a inconstitucionalidade da reeleição para presidentes do Congresso Nacional.
Usurpando a ideia de Saramago, se alguém suprimisse as três palavrinhas finais do artigo 2o da Constituição Federal, o que seria da existência do próprio STF?
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