Haddad e os equívocos sobre o patrimonialismo: uma crítica a seu ensaio para a revista Piauí

De fato, há trechos em que a vaidade acadêmica de Haddad beira o ridículo. Eu me irritei também, de início, mas em seguida avaliei que se trata de uma contribuição muito útil ao debate político nacional. Haddad é um político querendo pensar o Brasil, e isso é do que mais precisamos nesse momento, até porque, sem pensamento, não haverá luta

Haddad e os equívocos sobre o patrimonialismo: uma crítica a seu ensaio para a revista Piauí
Haddad e os equívocos sobre o patrimonialismo: uma crítica a seu ensaio para a revista Piauí (Foto: Apu Gomes)


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O “textão” de Haddad para a Piauí despertou um importante debate. E levantou muitas críticas, sobretudo a uma certa soberba de seu estilo. De fato, há trechos em que a vaidade acadêmica de Haddad beira o ridículo. Eu me irritei também, de início, mas em seguida avaliei que se trata de uma contribuição muito útil ao debate político nacional. Haddad é um político querendo pensar o Brasil, e isso é do que mais precisamos nesse momento, até porque, sem pensamento, não haverá luta.

Vamos analisar o artigo de Haddad usando aquele método de texto intercalado, que nos ajudará a organizar o nosso pensamento. As palavras de Haddad vem em fonte normal. As nossas, em negrito e entre colchetes.

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Vivi na pele o que aprendi nos livros

Um encontro com o patrimonialismo brasileiro*
Por Fernando Haddad, para a Piauí

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Eu já havia trabalhado com Dilma Rousseff por um ano, ao longo da transição do Ministério da Educação para Aloizio Mercadante. Conhecia seu estilo tanto como ministra-chefe da Casa Civil quanto como presidenta da República. E, ao contrário do que se diz dela, que é “democrática” no tratamento duro que dedica aos subordinados, eu diria até que sempre me tratou com consideração. Em dezembro de 2012, ainda antes de minha posse no Edifício Matarazzo, fui a Brasília para aquela que seria a nossa primeira audiência de trabalho após minha eleição como prefeito de São Paulo.

[“… eu diria até que sempre tratou com consideração”. Haddad inicia seu artigo com um clichê negativo sobre Dilma. Com base na teoria de que onde há fumaça, há fogo, gostaria de acreditar, até por cansaço de tanto ouvir, na tese de que Dilma é truculenta com subordinados. Mas gostaria que alguém viesse a público e falasse diretamente: Dilma foi grossa comigo, e fez isso e aquilo. E não apenas essa irritante repetição de expressões como a usada por Haddad: “do que se diz dela” . Ora Dilma tratou corretamente Haddad, segundo o próprio, “com consideração”, embora ele tenha acrescentado, numa ressalva sutil, a palavra “até”, usada aqui como advérbio de ironia e ênfase…]

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Em um contato rápido que havíamos tido na manhã seguinte ao segundo turno, eu já havia insinuado à presidenta que entendia que o governo federal deveria tratar São Paulo de maneira singular, em função de sua importância. Ela então me olhou com um sorriso irônico, como quem diz “Não me venha querer levar vantagem”. Pensando em retrospecto, creio que a relação de Dilma com São Paulo nunca se resolveu completamente.

[Admito que a primeira parte do artigo de Haddad quase me fez desistir de lê-lo. É a pior parte de um ensaio que, de resto, é interessante. Minhas críticas mais ácidas ao texto, portanto, talvez se dêem aqui. O que Haddad quis dizer com a “relação de Dilma com São Paulo nunca se resolveu completamente”? Haddad finge desconhecer que ele, possivelmente, só tenha sido eleito na esteira da enorme popularidade de Dilma Rousseff, construída desde o tempo em que foi ministra da Casa Civil de Lula, passando por seu desempenho como candidata, e incluindo os seus dois anos de mandato, quando atingiu uma aprovação popular fenomenal, mais alta e mais universal até do que a de Lula. A frase de Haddad, sobre o tratamento “singular” que o governo federal deveria dispensar a São Paulo é, por sua vez, uma obra-prima de bairrismo. Ora, toda cidade brasileira merece tratamento “singular”. Todas são importantes, cada uma a sua maneira. O sorriso de monalisa de Dilma, que Haddad tem a interpretação de ler como se tivesse a capacidade telepática de ler pensamentos alheios, talvez fosse uma reação puramente natural à observação um tanto ridícula do ex-prefeito paulistano: não era como quem diz “não me venha querer levar vantagem”, e sim “ora, meu filho, todas as cidades são importantes”. Talvez Haddad tenha se exprimido mal, mas aí a culpa é dele, não de Dilma. Um argumento em defesa da cidade de São Paulo é sobre a sua importância estratégia não apenas para si mesma, mas para o desenvolvimento de todas as outras cidades brasileiras, na medida em que ela é o maior centro de serviços do país. Quero crer que era isso que Haddad queria dizer, mas se ele se expressou tão mal, com Dilma, como fez nesse artigo, então o sorriso da presidenta foi uma resposta “até” mesmo muito delicada e compreensiva. ]

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Dilma me recebeu em seu gabinete no 3º andar do Palácio do Planalto, ao lado dos ministros Guido Mantega, da Fazenda, e Miriam Belchior, do Planejamento, Orçamento e Gestão. Comigo estava o secretário de Finanças Marcos Cruz, que o empresário Jorge Gerdau havia me apresentado e que deixara a consultoria McKinsey para organizar as contas da prefeitura.

[A referência ao empresário Jorge Gerdau e à consultoria McKinsey como elementos do currículo de Marcos Cruz, secretário de finanças de Haddad, me pareceu um tanto pernóstica e provinciana, bem típica do petismo paulista, que se crê “sofisticado”, mas se porta, frequentemente, com um deslumbre de fazer vergonha. Ora, Jorge Gerdau é um empresário tão envolvido em escândalos de corrupção como qualquer outro empresário brasileiro – com a diferença que uns são protegidos pela mídia, outro não. O provincianismo de Haddad, no afã de mostrar que era um esquerdista bem comportado e pró-mercado, me pareceu ingênuo e um pouco estúpido. Ora, antes da Zelotes sofrer a transmutação que a converteu, de uma investigação sobre grandes sonegadores, em mais um capítulo da novela de perseguição a Lula, o grupo Gerdau era um de seus principais alvos. A troco de que, portanto, um prefeito se orgulharia de que o seu secretário de finanças tenha sido apresentado por um empresário suspeito de ser um dos maiores sonegadores do país? A referência à consultoria McKinsey, por sua vez, é simplesmente idiota. Uma pesquisa rápida no Google revela que a McKinsey protagonizou, recentemente, escândalos vergonhosos de “insider information” e corrupção. Um prefeito pode até contratar um ex-funcionário da McKinsey, porque acredita em sua competência e, sobretudo, tem confiança em sua honestidade, mas isso será a despeito de ter trabalhado na McKinsey.]

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As reuniões com Dilma têm sempre uma carga elétrica no ar. O ambiente nunca é relaxado, e aquele dia foi se tornando mais tenso à medida que o debate transcorria. Minha expectativa era realizar um primeiro encontro com ministérios estratégicos para definir o que Brasília poderia fazer para mudar a cara de São Paulo. Mas o que ouvi foi a demanda exatamente oposta: o que São Paulo faria para ajudar o governo federal? Sem muitos preâmbulos, a audiência passou direto a uma questão bastante específica: o reajuste da tarifa de ônibus no município. Percebi na hora que o clima de celebração pela minha vitória tinha passado e que aquilo era um balde de água fria.

[Haddad não demonstra aqui ser um político tão inteligente assim. Ora, a dicotomia entre “o que Brasília poderia fazer para mudar a cara de São Paulo” e “o que São Paulo faria para ajudar o governo federal” deveria compor, e isso me parece um tanto óbvio,  uma relação dialética. Se não disse à Dilma no momento, deveria tê-lo pensado e dito isso no artigo.  São Paulo apenas poderia “ajudar o governo federal” se estivesse bem, com as contas sanadas, projetos de infra-estrutura em andamento, etc. Não evidenciar essa relação e, pior, enfatizar a dicotomia entre São Paulo e Brasil, como se estivéssemos diante de interesses divergentes, me parece próprio de um paulista embriagado pelo mais delirante bairrismo. Em muitos momentos do texto, é o que vemos em Haddad, uma visão paulistocêntrica do mundo que beira a irracionalidade.] 

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A questão da tarifa havia se tornado um problema para a equipe econômica, que lutava contra o repique da inflação. Eu sabia que me seria demandado algo muito difícil: a manutenção do preço depois de um congelamento que já durava dois anos, já que o último reajuste da tarifa em São Paulo ocorrera em janeiro de 2011. Assim, cheguei à reunião com uma proposta alternativa.

Ainda durante a campanha, eu havia encomendado a alguns pesquisadores da Fundação Getulio Vargas, encabeçados pelo professor Samuel Pessôa, um estudo sobre a eventual municipalização da Cide como fonte de financiamento do transporte público. A Cide, Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico, é um tributo de arrecadação vinculada, de competência da União, que incide sobre a importação e a comercialização de gasolina, diesel e derivados. A ideia seria a municipalização desses recursos a fim de que o transporte individual motorizado em nossas grandes cidades respondesse pelo subsídio ao transporte público.

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[Haddad diz que havia encomendado um estudo a pesquisadores da FGV, encabeçados por Samuel Pessoa. Samuel Pessoa é idolatrado pelos neoliberais e, por amor ao debate, posso até admitir suas qualidades, mas a menção a seu nome é outro sinal de que Haddad tentou e tenta, até hoje, ser um queridinho do mercado financeiro. Para se ter uma ideia de quem é Samuel Pessoa: em debate realizado no Insper, em outubro de 2015,  ele admitia:  “em maio, eu fiquei super feliz com dados mostrando uma queda no salário real de 5%. Economista é um bicho meio ruim”. Ele disse acreditar, no mesmo debate, que “a desaceleração da economia e a consequente queda no emprego e nos salários é um sinal de que o ajuste cíclico está funcionado”, e que “quanto maior for a queda no valor dos salários, mais rápido e indolor será o ajuste fiscal proposto pelo ministro Joaquim Levy”. O professor Gonzaga Belluzzo, da Unicamp, que também participava do debate, rebateu: “indolor para quem?”. 

Esse é o chefe dos pesquisadores da FGV, pago por Haddad, provavelmente com dinheiro de sua campanha, para lhe propor alternativas tributárias. O caso reflete bem a maldição do PT paulista: um fetiche inexplicável pelos almofadinhas neoliberais que fazem sucesso exclusivamente na mídia. É o mesmo tipo de fetiche que levou Dilma a nomear Joaquim Levy para a pasta da Fazenda. Neste sentido, como em muitos outros, Haddad e Dilma parecem ser a mesma pessoa. ]

Argumentei que o represamento do preço da tarifa não seria um bom expediente para combater a inflação. Mesmo que o Rio de Janeiro também o adotasse, como era o plano, estávamos falando de um único “preço”, em apenas duas cidades. Imaginar que tal congelamento pudesse colaborar significativamente para combater a inflação em âmbito nacional não me parecia razoável. Fiz, por fim, um apelo: “O tamanho do esforço que terei de fazer no plano local, com um impacto de 600 a 700 milhões de reais por ano, é desproporcional ao benefício que vocês terão. É um sacrifício enorme para um primeiro ano de mandato e não vai ter o efeito que vocês imaginam.” O governo, porém, mantinha-se inflexível.

Apresentamos, então, os números do estudo da FGV, provando inclusive que o resultado que se teria optando por aumentar a gasolina em vez da tarifa dos transportes coletivos seria deflacionário. O que oferecíamos ao governo federal, portanto, era uma alternativa que ia ao encontro daquilo que eles pretendiam, com um ganho de política pública indiscutível. Criava-se uma espécie de “pedágio urbano”, desestimulando o uso do carro e estimulando o do transporte coletivo, mais barato.

A equipe econômica levantou dúvidas sobre o caráter deflacionário da medida. Com o estudo à mão, eu dizia que, no frigir dos ovos, seria melhor optar pelo financiamento via Cide, pois o aumento da gasolina impacta menos na cesta de produtos que compõe o índice de inflação do que o aumento da tarifa. Além de ser uma solução estrutural e definitiva, em que a tarifa deixa de ser um problema que se repete a cada dois ou três anos em nossas cidades. A proposta de municipalização da Cide foi liminarmente descartada e o debate morreu, com a assertiva final de que não era “hora de mexer com o preço da gasolina”.

[A municipalização da Cide não era a única forma de se criar um “pedágio urbano” e estimular o uso do transporte público. Evidentemente, Haddad sabe disso, e até mesmo implementou boas políticas com essa orientação, mas faltou afirmar isso no texto. À luz de tudo que aconteceu hoje, muitos especialistas, inclusive o ex-presidente da Petrobrás, Sergio Gabrielli, consideram que a decisão de não elevar o preço da gasolina foi um erro grave de Dilma Rousseff. Mas analisar erros de governo depois de suas consequências é mais fácil do que tomar decisões à quente, e se Dilma cometeu muitos erros, não se pode negar que a sua obsessão, de controlar a inflação, proteger os salários e reduzir o desemprego, foi espetacularmente bem sucedida até a deflagração da Lava Jato, em meados de 2014, quando se inicia o processo de desestabilização política e destruição econômica. ] 

Estranhei a insensibilidade diante de uma oportunidade única: havíamos ganhado a cidade de São Paulo, derrotando no segundo turno o principal presidenciável tucano, José Serra. Na época em que fui ministro da Educação, eu sempre disse ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva que, desde 1932, o Brasil nunca havia se reconciliado de fato com São Paulo, nem São Paulo com o país. E quando Lula me encomendou o maior plano de expansão da rede federal de educação superior e profissional, com universidades e escolas técnicas que interiorizamos pelo país, fiz questão de lembrá-lo da pouca presença federal no principal estado da federação. Ele então questionou: “Mas São Paulo precisa? Já tem a USP, a Unicamp, a Unesp, a Fundação Paula Souza…” Insisti: “Mas não tem rede federal.” Assim, criamos a Universidade Federal do ABC, a Unifesp foi expandida pela região metropolitana e a UFSCar, pelo interior de São Paulo. Além do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia, que ocupou o lugar do Cefet [Centro Federal de Educação Tecnológica] de São Paulo, que até então tinha apenas duas escolas e hoje tem mais de trinta.

Quando ganhei a eleição para a Prefeitura de São Paulo, pensei: “Quem sabe podemos começar nosso acerto de contas com 1932?”

Meu primeiro encontro de trabalho com Dilma mostrava que eu havia me equivocado. Ela encerrou a conversa, me acompanhou até a porta e disse uma frase de que não me esqueço: “Espero que o nosso próximo encontro seja mais produtivo.”

[Esse é mais um dos trechos paulistocêntricos e bizarros do ensaio. Que insensibilidade? Não criar o Cide? Pedir para Haddad segurar a tarifa de transportes? E que oportunidade única? Transformar São Paulo num El Dourado, uma ilha de prosperidade, bonança e boa infra-estrutura no meio de um país miserável?  As frases de Haddad carecem de sentido e são seguidas por uma pergunta, com perdão da expressão, incrivelmente idiota, sobre o “acerto de contas com 1932”. Que acerto de contas? Haddad fala de São Paulo como se fosse uma cidadezinha explorada cruelmente pela União desde a era Vargas até os dias de hoje, enquanto se deu exatamente o contrário.  Além do mais, Haddad trata aqui o tema da relação entre governo federal e São Paulo de uma maneira profundamente desonesta, manipuladora mesmo, usando alguns artifícios que ele mesmo irá denunciar, mais adiante, como usados contra si mesmo pela mídia comercial. Se você ler o texto sem cuidado, parecerá que Lula e Dilma não deram atenção à São Paulo, por causa de sua “insensibilidade”, e que perderam uma “oportunidade única” (não me perguntem porque seria “única” – que no caso deve ser apenas um adjetivo retórico). Mas aí o próprio Haddad nos conta, mas com um tom onírico, como se falasse de coisas utópicas, que deveriam existir, mas não existem, como a Universidade Federal do ABC, a expasão da Unifesp e da UFScar, o Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia. Só que essas coisas existem, e foram iniciativas de Lula e Dilma, não é? Então onde está a “insensibilidade”? Outra coisa estranha no texto é que ele dá a entender que as iniciativas federais em São Paulo foram obra de Haddad, e não do governo federal como um todo. E se essas coisas aconteceram, porque Haddad fala, com filistina melancolia, que “eu havia me equivocado”? Não acho outra explicação senão o seguinte: Haddad cedeu, talvez sem ter disso muito consciência, apenas pelo fato de ser paulista, a esse antipetismo sanguíneo, cutâneo, orgânico, que tem o estranho poder de tornar invisíveis todas as coisas boas feitas pelo governo. ]

Sou filho do casamento de um comerciante libanês com uma normalista. Aprendi em casa a negociar e conversar, e tenho um temperamento em geral tranquilo, mesmo nas situações mais adversas. As pessoas confundem isso com frieza, mas não é. Choro até com propaganda de tevê. Mas costumo ser focado e dificilmente perco a cabeça. Meu corpo, no entanto, às vezes reage. É uma coisa neuromuscular, incontrolável.

[Após a xaropada libanesa, em que faz a incrível revelação que aprendeu, em casa, a “negociar e conversar”, Haddad descreve, com termos empolados, o que outrora se denominava “chilique”.

Damas da sociedade e aristocratas excessivamente sensíveis, diante de situações difíceis, costumavam desmaiar ou gritar a seus criados: “meus sais!”

Outros, quando ficam muito excitados ou ansiosos, correm para o banheiro: é uma coisa, como diria Haddad, “neuromuscular, incontrolável”]

Na saída daquela audiência, quando entrei no carro com o secretário Marcos Cruz, essa reação corporal foi muito forte. Ele estranhou, achou que o contratempo na reunião não era para tanto. O que eu sentia ali era algo que já havia experimentado algumas outras vezes na vida: mais do que um mal-estar ou uma simples angústia, era uma espécie de intuição, a sensação nítida de que algo muito sério estava se passando, de que havia um risco real e iminente.

[Haddad e sua dor de barriga profética. Ai, ai ai, é tão fácil afirmar, anos depois, que já se havia previsto o que iria acontecer…]  

Alguma coisa estava muito errada: não se pensa em controlar a inflação de um país continental pelo represamento de uma tarifa municipal sem atravessar estágios intermediários e sucessivos de uma compreensão equivocada. Não se chega a um erro deste tamanho sem ter feito um percurso todo ele equivocado. Não se produz estabilidade macroeconômica por intervencionismo microeconômico. Foi essa sensação que me tirou do sério naquela manhã em Brasília.

[Ora, o governo federal não pensava em “controlar a inflação de um país continental pelo represamento de uma tarifa municipal”. Evidentemente, esse era apenas um entre milhares de ações federais que tinham esse objetivo. Dilma e seu governo provavelmente cometeram inúmeros erros, porque são humanos, porque eram mal informados, talvez por um toque de arrogância tão comum em governantes (como no próprio Haddad, como se vê), mas a análise de Haddad é um tanto rasa. Entretanto, o pior não é isso. Haddad parece desconhecer, tanto hoje quanto na época, a importância de sua própria posição, como prefeito, como quadro partidário, como intelectual ocupando uma posião de poder. Se teve tal “sensação”, ele poderia – e deveria tê-lo feito – ter lutado por sua convicção, ou então ter feito, agora, uma dura mea-culpa. O que Haddad fez? “Obedeceu” ao governo federal? Baixou a cabeça para Dilma. Ora, não disso que precisamos. Por que Haddad não deu entrevistas, porque não criou núcleos de inteligência e estratégia, para ajudar e influenciar o governo? Um prefeito não é apenas um administrador: é um agente político, e deve usar o poder que lhe foi conferido por seus eleitores para aprimorar o debate político, econômico e social do país. Em se tratando de um prefeito de São Paulo, essa responsabilidade é óbvia: é a cidade com o maior número de intelectuais do país! Afirmar que teve uma “dor de barriga” depois de uma reunião com a Dilma não o absolve de nada!]

Sensação semelhante, de percepção dos próprios limites diante de uma situação que indica maus presságios, eu tive em 2011, no Ministério da Educação, durante a crise do chamado “kit gay”. A história toda, a começar pela expressão preconceituosa, é um exemplo de como uma informação falsa pode ser criada (e deliberadamente mantida) com intenções políticas nefastas – e consequências sociais que reverberam até hoje.

A Comissão de Direitos Humanos da Câmara, acertadamente, aprovou uma emenda de bancada ao orçamento, designando recursos para um programa de combate à homofobia nas escolas. O Ministério Público questionou o MEC sobre a liberação da emenda. Só então o MEC entrou na história, solicitando a produção do material a uma ONG especializada. No exato momento em que o material foi entregue para avaliação, eclodiu a crise do “kit gay”.

Desde o início, quem lia as notícias imaginava que aquela era uma iniciativa do Executivo, quando na verdade a demanda havia sido do MP e do Legislativo. Também se sugeriu que o material estivesse pronto e já distribuído, quando sequer havia sido examinado. Expliquei tudo à imprensa e às bancadas evangélica e católica do Congresso, e o mal-entendido parecia desfeito. Despreocupado, viajei no dia 25 de maio a Fortaleza para receber o título de Cidadão Cearense. Então, durante a minha ausência de Brasília, um material de outro ministério, o da Saúde, foi apresentado como sendo o tal “kit gay” do MEC para as escolas. Esse outro material se destinava à prevenção de DST/Aids e tinha como público-alvo caminhoneiros e profissionais do sexo nas estradas de rodagem – com uma linguagem, portanto, direta e escancarada.

O deputado Anthony Garotinho (PR-RJ) exibiu em plenário a campanha do Ministério da Saúde dizendo que eu havia mentido no dia anterior e que as escolas de Campos dos Goytacazes, onde a mulher dele, Rosinha Garotinho, era prefeita, já dispunham de exemplares para distribuir aos estudantes. Aquilo virou um caldeirão. Gilberto Carvalho, então chefe de gabinete da Presidência, me telefonou alarmado. Eu disse: “Gilberto, pare dois segundos para pensar e se acalme. Isso não existe. O material para as escolas ainda está na minha mesa, não há chance de ele ter sido distribuído.”

Era, evidentemente, uma armação, explicada inúmeras vezes para a imprensa, mas a confusão já estava feita. E a polêmica do “kit gay” – que foi sem nunca ter sido – estendeu-se por meses. Em junho, às vésperas da Marcha pela Família, convocada por grupos religiosos em Brasília, recebi em meu gabinete o senador Magno Malta (PR-ES) para conversar sobre o assunto. Em determinado momento, ele elevou o tom e começou a me ameaçar. Disse que a Marcha ia parar na frente do MEC, que eles iriam me constranger. Mantive o tom calmo que sempre adoto: “Mas, senador, o senhor conhece a história, sabe que não é verdade.” Não adiantou. Percebi, então, que aquilo não era uma questão de argumentos, mas um jogo de forças. E eu disse, também com o tom de voz mais alto: “Então venham. Hoje à noite eu vou rezar um Pai-Nosso e amanhã nós vamos ver qual Deus vai prevalecer, o da mentira ou o da verdade.”

O senador parou, abriu um sorriso e pegou na minha mão: “Você é um homem de Deus. Se acredita n’Ele, eu acredito em você.”

[A partir daqui, tem início, a meu ver, os momentos mais interessantes do artigo. Mantenho, todavia, o meu tom crítico. Haddad admite, com anos de atraso (para não dizer décadas), que a mídia brasileira é desonesta, e que a política brasileira, para não dizer mundial, é cheia de pegadinhas… Na verdade, Haddad parece não perceber que ele está admitindo, aqui, uma ingenuidade imperdoável num político, porque flerta com a incompetência. Tanto Lula quanto Dilma foram vítimas desse tipo de incompetência por parte de seus ministros, que nunca souberam montar, no âmbito de suas atuações, estratégias eficazes de comunicação. Se os presidentes petistas merecem críticas duras por sua covardia e apatia no campo da comunicação, seus ministros devem ser igualmente criticados, porque uma comunicação bem feita no âmbito de qualquer ministério poderia servir de modelo para todos os outros e, por fim, para o próprio Planalto. E não digam que não havia liberdade, porque houve algumas exceções de competência na área de comunicação no governo petista, e elas nunca foram censuradas. Por exemplo: a comunicação do BNDES, quando este começou a sofrer os primeiros ataques, no governo Dilma, foi exemplar: respondendo a todos os internautas, nas redes sociais, com gráficos, estatísticas, links; rebatendo artigos e reportagens, de maneira sistemática, intensa e corajosa, com verve e até mesmo com dureza, em alguns casos. O que fez Haddad? Ele poderia ter percebido, diante do resultado positivo de seu “tom de voz mais alto” diante de um senador mal intencionado, que a única solução é rebater as críticas, de preferência em tom similar ao daquele que as proferiu. Mas Haddad não tirou nenhuma lição do episódio, nem na época nem agora. Sua reação se limitou a um bate boca privado com um senador.]

Voltei a esse episódio já relativamente antigo porque ele me parece exprimir muito bem um fenômeno que o ultrapassa. Em um artigo recente para a revista nova-iorquina Dissent, a filósofa norte-americana Nancy Fraser discutiu a eleição de Donald Trump e o que chamou de “derrota do neoliberalismo progressista”. No texto, Fraser mostra como se constituiu nos Estados Unidos a disputa entre duas modalidades de direita: o neoliberalismo progressista dos governos Clinton e Obama e o protofascismo de Trump, com seu discurso protecionista na economia e seu conservadorismo regressivo em relação aos costumes e direitos civis. Pode-se discutir se é correto enquadrar Obama no campo neoliberal, mas o que importa preservar do argumento da autora, nesse embate, é que a grande vantagem do neoliberalismo americano, que era o diálogo com as minorias – LGBT, mulheres, negros e imigrantes –, se perdeu.

O que vimos no Brasil dos últimos anos foi algo um pouco diferente: essas duas modalidades de direita em boa medida se fundiram, de modo que mesmo nossa direita neoliberal passou a cultivar a intolerância. A vitória socioeconômica do projeto do PT até 2013 foi tão acachapante – crescimento com distribuição de renda e ampliação de serviços públicos – que sobrou muito pouco para a versão civilizada da direita tucana. Ela não podia mais se dar ao luxo de ser neo-liberal e progressista. Para enfrentar a nova realidade, os tucanos passaram a incorporar a seu discurso elementos do pior conservadorismo.

Temas regressivos foram insuflados no debate nacional. A campanha de José Serra à Presidência em 2010 foi um momento importante dessa inflexão tucana. Embora talvez fosse o desejo íntimo de alguém como o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, o PSDB não conseguiu se transformar na versão brasileira da agenda democrata norte-americana. Pelo contrário, ao radicalizar o discurso conservador, o partido revolveu o campo político de onde floresceu a extrema direita no Brasil. Quem abriu a caixa de Pandora de onde saiu o presidenciável Jair Bolsonaro foi o tucanato. Embora essa agenda pudesse vir à tona em algum momento, foram os tucanos que a legitimaram. Um equívoco histórico. Quando, pela mudança de conjuntura, se tenta abdicar desse ideário, isso já não é mais possível, pois logo aparece alguém para ocupar o espaço criado. Foi exatamente o que aconteceu: a extrema direita desgarrou e agora quer tudo – a agenda tucana e muito mais.

[Sim, Haddad está certo em relação ao tucanato, embora seja uma análise um tanto óbvia e já consolidada há muito tempo. Entretanto, sua visão sobre as administrações Clinton e Obama são assustadoramente superficiais. Mencionar o “neoliberalismo progressista” dos governos Clinton e Obama sem abordar a destruição recente do oriente médio, a espionagem em massa e a possível orquestração (admitida pelo próprio Haddad mais adiante) de golpes brancos, ou revoluções coloridas, no exterior, é um erro crasso, que apequena o autor. Além do mais, se existe alguma coisa de progressista no neoliberalismo americano, e isso vem desde os anos 60, é uma qualidade voltada exclusivamente para dentro. Para fora, é só neoliberalismo, sem nada de progressista. Ademais, Haddad se revela, ao contrário do que ele tentará provar, alguns parágrafos mais adiante, um intelectual monótono, repetidor de clichês sobre neoliberalismo e EUA. Ora, os EUA tem desenvolvido, desde o pós-guerra, políticas domésticas que flertam com o socialismo, como o imposto sobre herança, que chegou a 75% durante a era Roosevelt, e tem oscilado na média de 40% ao longo das últimas décadas. Chomsky já denunciava essa contradição da inteligentsia americana: socialista para dentro, com a defesa de investimentos públicos em infra-estrutura, em mobilidade urbana, em educação e saúde públicas, em políticas de emprego, e neoliberal para fora, derrubando democracias pelo mundo e patrocinando programas de austeridade que ela mesmo, a América, nunca implementou. ] 

Um movimento semelhante ocorreu com a imprensa. Curiosamente, o veículo que mais respaldou essa pauta foi aquele de quem menos se esperava uma aproximação com o obscurantismo: o jornal Folha de S.Paulo. Sob o manto moderno do pluralismo, uma pretensa marca do jornal, a Folha legitimou, tornou palatável e deu ares de seriedade a uma agenda para lá de regressiva. Adotando inclusive a expressão “kit gay”, criada pela bancada evangélica do Congresso, o jornal deu dignidade a uma abordagem que contribuiu para que o debate sobre direitos civis atrasasse cinquenta anos no país.

Embora tenha desandado na cobertura noticiosa, a Folha continua utilizando o espaço dos editoriais para se apresentar como uma espécie de vanguarda da modernidade. O expediente tornou-se tão incongruente com as opções do noticiário que em determinado momento a Folha precisou alardear em peças publicitárias, no próprio jornal e na tevê, aquilo que seria seu posicionamento oficial sobre temas mais delicados. Vejo isso como um caso singular de cinismo que maquiava o embarque do jornal numa espécie de “neo-liberalismo regressivo”.

[Perfeito. A única ressalva que eu poderia fazer a esse trecho é sobre o seu “timing”. A blogosfera e as redes sociais de todo o campo progressista vem denunciando isso há muitos anos. Haddad, com o respaldo que recebeu dos eleitores da maior cidade do país, poderia ter nos ajudado muito se tivesse se expressado dessa maneira enquanto estava no cargo. Ao invés disso, Haddad nomeou, para a secretaria de comunicação, um conservador amigo da mídia, e nunca tentou criar uma mísera política pública que ajudasse a democratizar a comunicação social de São Paulo. Tampouco deu qualquer contribuição à luta quixotesca que vemos empreendendo, desde sempre, contra os desmandos e arbítrios dos grandes meios de comunicação.]

Um dos problemas do jornalismo no Brasil é a falta de regulação do mercado. Os meios de comunicação por aqui funcionam, do ponto de vista econômico, como oligopólio; e funcionam como monopólio do ponto de vista político. Chegaram a ponto de tentar tirar do ar, por via judicial, os portais de informação estrangeiros em língua portuguesa – como BBC Brasil, El País Brasil ou The Intercept Brasil –, invocando o artigo 222 da Constituição, que reserva aos brasileiros natos a propriedade de empresas jornalísticas.

Os grandes grupos de comunicação são geridos por famílias que pensam da mesma forma e têm a mesma agenda para o país, com variações mínimas. Em momentos cruciais de nossa história, como em 1964 e 2016, atuam em bloco.

Talvez a prova mais consistente de que esse oligopólio econômico funciona como monopólio político-ideológico seja o fato de que, à propriedade cruzada dos meios de comunicação, corresponde uma espécie de emprego cruzado no mundo do trabalho. Ou seja, os principais jornalistas do país, sobretudo aqueles que cumprem o papel de alter ego dos empregadores, podem estar – e rigorosamente estão – em qualquer lugar a qualquer tempo. Não se pode escapar da sua voz, imagem e comentários onipresentes, baseados ou não nos saberes dos “especialistas” de sempre, a não ser à custa de desesperado alheamento. Eles não só estão na emissora de tevê, na rádio e no jornal da mesma organização, como podem assinar uma coluna de jornal de um grupo de comunicação e, simultaneamente, comentar notícias na rádio ou tevê de outro. Em outras palavras, ocupam posições que só são plenamente intercambiáveis pelo caráter próprio do modelo. Algo que seria impensável em um país liberal como os Estados Unidos ou a Inglaterra, por exemplo. É bastante surreal que críticas ao modelo brasileiro de comunicação sejam apresentadas como um atentado à liberdade de imprensa, quando na verdade o modelo brasileiro é o que limita a atividade jornalística.

[Perfeito.  Comentário atrasado, mas antes tarde do que nunca. A mídia brasileira é um cartel ideológico. Faltou, talvez, apenas dar nomes aos bois e falar das consequências danosas disso para a economia, para a democracia, para a cultura, e para a saúde mental dos brasileiros. A cabeça desse cartel, muito mais danoso que qualquer organização criminosa atuante no país, é a Globo. ]

Claro que há limites para o poder desse monopólio político-ideológico. Num ambiente de relativa liberdade, os indivíduos trocam impressões, questionam, firmam contrapontos. Até as Organizações Globo, com todo o seu poderio, têm dificuldades em derrotar uma boa ideia. O Programa Bolsa Família, por exemplo, existe, apesar da Globo. Tentou-se por todos os caminhos deslegitimá-lo, desconstruí-lo, mas essa iniciativa de caráter eminentemente liberal é hoje recomendada a outros países do mundo pelo Banco Mundial. A promoção da igualdade racial é outro exemplo de ação que resistiu bravamente à tese “global”, bastante extravagante, da inexistência de racismo entre nós – tese que contraria absolutamente todas as evidências empíricas, em especial no que se refere à situação da mulher negra no país.

[Não é bem assim. A ideia do Bolsa Família pode ter prevalecido, mas a campanha de preconceito deu frutos sim. O golpe e o antipetismo fascista estão aí para provar.]

Por mais severo que fosse meu diagnóstico sobre a mídia brasileira, sempre procurei respeitar os profissionais da imprensa. O jornalismo, com todas as suas limitações, se bem exercido, é bastante útil à sociedade. Numa democracia, até uma imprensa ruim pode ajudar. O jornalismo crítico, mesmo quando desprovido de boas intenções, pode fazer bem ao poder público, fiscalizando a atividade política e trazendo pontos de vista novos que o administrador nem sempre observa, de modo a permitir aperfeiçoamentos e correção de rota.

[Imprecisão de Haddad. Ele respeitava os profissionais da Globo, da Folha, do Estadão, da Veja (que afinal não tem culpa por seu patrões). Mas nunca demonstrou respeito, enquanto prefeito de São Paulo, aos profissionais da imprensa não oligárquica, já que nunca implementou políticas públicas para apoiar rádios comunitárias na periferia, imprensa alternativa, blogs, agências de fact-checking, observatórios de midia, canais públicos, enfim, nunca fez nada de concreto para lutar contra o cartel de criminosos que domina a imprensa nacional. Cartel este que mantém os profissionais de imprensa como seus reféns, ou como seus escravos ideológicos. Se não fez nada contra isso, então não pode falar que  tinha tanto respeito assim pelos profissionais de imprensa.]

Como prefeito, eu não nutria grandes expectativas sobre o tratamento que receberia da imprensa. Sabia que seria difícil. Vencer o would-be president José Serra na capital do assim chamado “Tucanistão” não ficaria impune. Mas confesso que, mesmo consciente das circunstâncias adversas que enfrentaríamos, os acontecimentos me surpreenderam.

[Haddad foi o único brasileiro no país a ficar surpreendido com o tratamento que veio a receber da imprensa brasileira. E ele ainda vem se gabar que “leu todos os clássicos da formação do Brasil”. Deve ter lido apenas os mais famosos. Ou então se esqueceu da História da Imprensa no Brasil, de Nelson Werneck Sodré, e de 1964: a Conquista do Estado, de René Armand Dreifuss.]

Em dezesseis anos de vida pública, sempre mantive com as principais famílias proprietárias dos meios de comunicação uma relação cordial e respeitosa, em que pesem nossas diferentes visões de mundo. Não dispensava interlocução com os Marinho, os Frias e os Civita.

[Neste caso, eu sugiro a Haddad que assista ao filme o Homem – Urso, de Werner Herzog. O cineasta alemão usa cenas de um ambientalista americano que viveu, durante anos, perto de ursos selvagens do Alasca, amando-os e achando que eles também o respeitavam. Até que um dia, os ursos se impacientaram com aquele humano que fingia ser urso e foram lá e o devoraram vivo, ele e sua namorada.]

A abordagem destes três grupos de comunicação – Globo, Folha e Abril – em relação à minha administração oscilou da indiferença à tentativa de desconstrução das políticas públicas em curso. Era o melhor que se podia esperar: as críticas não eram pessoais; eram, em geral, políticas. À exceção do Bom Dia SP, da Globo, e sua destoante cobertura em comparação ao Bom Dia de qualquer outra capital do país, no que diz respeito a esses três grupos de comunicação as coisas andavam dentro do previsto, com uma ou outra exceção.

[É incrível como os intelectuais brasileiros, e Haddad apenas repete esse vício, “normalizaram” o ambiente bizarro da mídia brasileira. Não existe nada parecido em lugar algum do mundo. Como prefeito da maior cidade da América Latina, intelectual, acadêmico e quadro partidário, Haddad tinha obrigação de estudar isso e esclarecer a população. Mas não. Ele prefere achar que as coisas “andavam como previsto”. ]

Houve casos insólitos, no entanto. A CBN certa vez publicou em seu portal reportagem cuja manchete anunciava: “Irmão de secretário de Haddad é denunciado por envolvimento na máfia do ISS.” Informada de que o denunciado era na verdade irmão de Rodrigo Garcia, secretário de Geraldo Alckmin, a emissora retificou a reportagem por meio de um duplo carpado hermenêutico para não mencionar o nome do governador.

A revista Veja São Paulo, por sua vez, alardeou, em matéria de 6 de fevereiro de 2015, que as ciclovias da prefeitura eram as mais caras na comparação com outras nove cidades estrangeiras. Misturaram alhos com bugalhos, desconsiderando projetos especiais que implicavam enterramento de fiação, readequação urbanística de canteiros etc. Mais de um ano de trabalho para desmentir o fato.

Em agosto de 2016, o Tribunal de Contas do Estado divulgou estudo denunciando que uma ciclovia provisória do Metrô de São Paulo havia custado “seis vezes mais que as ciclovias da prefeitura”, teoricamente uma das mais caras do mundo. A informação foi publicada na Exame. A gravidade das denúncias era inversamente proporcional à tiragem das revistas em que foram veiculadas.

Eu poderia citar dezenas de casos semelhantes. Mas problemas desse tipo não me incomodavam. O que de fato me deixava contrariado era a matéria jornalística que, para além de afetar a minha imagem ou a imagem do governo, afetava negativamente a vida dos beneficiários de políticas públicas. Mais ainda quando isso fazia crescer o preconceito e a intolerância em relação aos mais vulneráveis.

[Enquanto esses casos se davam, a blogosfera e as redes sociais lutavam diariamente, arduamente, para denunciar a quantidade imensa de “factoides” e “pós-verdades” da grande imprensa brasileira, Haddad jamais pensou em nenhuma política pública para combater esse tipo de coisa. Como todo político tradicional, Haddad acha que a manipulação da imprensa é um problema para si mesmo, para sua imagem pessoal ou para seu governo. Nunca vê o problema da mídia como um problema social de altíssima gravidade, que prejudica a população mais vulnerável, que atinge diretamente a democracia e se torna um obstáculo ao próprio desenvolvimento econômico. Encerrada a campanha eleitoral, onde Haddad, como todos os candidatos da esquerda, dão inúmeras entrevistas a blogueiros, o então prefeito, que eu me lembre, quase não deu entrevistas a blogueiros ou jornalistas da imprensa não-oligárquica. Fechou-se, qual Dilma, no mundinho encantado da burocracia. ]

Não exagero em afirmar que o fim do programa De Braços Abertos é, em grande parte, resultado do tipo de cobertura da Folha. Até então, nenhum prefeito havia ousado atuar na Cracolândia, ao longo de vinte anos. O governo do estado, por sua vez, pouco êxito obteve na solução do problema ao longo dos mesmos vinte anos. Em apenas um ano o De Braços Abertos foi criado e o fluxo de moradores em situação de rua na Luz se reduziu em dois terços, de 1 500 para cerca de 500 pessoas. A situação dos acolhidos pelo programa foi atestada por uma pesquisa independente da Open Society Foundations, que reconheceu os méritos da política de redução de danos.

[Haddad faz uma longa lista de casos em que a mídia lhe tratou com injustiça. Não faz nenhuma autocrítica, no entanto. A mídia agiu como sempre agiu no Brasil, desde o início da imprensa no país. Outro livro que indico ao ex-prefeito: Recordações do Escrivão Isaías Caminha, de Lima Barreto. Nele, Haddad verá que desde o início do século XX, a linha editorial da imprensa brasileira é pautada exclusivamente por seus mesquinhos interesses políticos, invariavelmente unidos aos interesses das parcelas mais retrógradas da elite brasileira.]

A publicação dos dados dessa avaliação externa só ocorreu na Folha após semanas de negociação – e foi seguida por reportagens que, na prática, isentavam completamente o governo do estado de responsabilidade pela ausência da polícia e consequente intensificação do tráfico na região. Do Recomeço, programa de internação do governo do estado, não eram exigidos resultados e muito menos avaliação externa. A cada eleição presidencial, o governo federal era cobrado pela vigilância de 17 mil quilômetros de fronteira seca, sem que o governo de São Paulo conseguisse vigiar um quarteirão da principal cidade do país.

Outros artifícios frequentes dos meios de comunicação são a omissão da autoria, o desvirtuamento da motivação ou a desigualdade de tratamento das políticas públicas. Existe uma diferença tênue entre capricho pessoal e construção de reputação. O primeiro caso atende pelo nome de vaidade; o segundo é uma exigência da democracia. O tratamento dado à informação pode impedir a construção da reputação de uns, enquanto alimenta a vaidade de outros. A inauguração do Hospital Vila Santa Catarina, na minha gestão, teve menos destaque que a recente reforma dos banheiros do parque Ibirapuera pela gestão de Doria.

O Fantástico chegou a fazer uma série de matérias sobre um programa municipal chamado FabLab – laboratórios de impressoras 3D que se espalham pelo mundo fomentando o empreendedorismo. Não me lembro de que tenham feito menção à Prefeitura de São Paulo. O programa Transcidadania, de assistência socioeducacional a travestis, foi, segundo a revista Veja, motivado pelos menos nobres sentimentos decorrentes da disputa entre mim e a senadora Marta Suplicy, quando a verdadeira motivação era a vontade de retomar a agenda contra a homofobia.

O que se percebe muito rapidamente é que a esfera pública está contida na mídia em vez de envolvê-la. O Brasil tem pouco mais de cinquenta cidades com mais de 400 mil habitantes, número que corresponde, na média, ao de moradores de cada uma das 32 subprefeituras da cidade. Numa escala tão grande como essa, um político não consegue ser avaliado pela forma como se apresenta, mas pela forma como é apresentado. Isso confere à mídia um poder enorme: ela tanto pode impedir que boas iniciativas se colem à imagem de um gestor, condenando-o à invisibilidade, como obrigá-lo a compartilhar responsabilidades que recaem sobre outra esfera de governo, superexpondo-o indevidamente.

Não bastassem os problemas estruturais de relacionamento da grande imprensa com qualquer governante de centro-esquerda, eu ainda tive problemas conjunturais com a segunda divisão dos meios de comunicação. Na minha percepção, foram muito mais danosos à imagem do governo do que os episódios até aqui narrados, porque impactaram diretamente a periferia da cidade. Nesses casos, a política transbordou para o pessoal.

Refiro-me, para ficar nos casos mais conhecidos, à atitude de desrespeito e escárnio do Estadão, da Record e da Bandeirantes perante a minha administração.

O Estadão recebeu bem minha indicação para o Ministério da Educação, chegando a fazer referências elogiosas à minha trajetória acadêmica interdisciplinar na Universidade de São Paulo. Quando meu nome começou a ser ventilado para concorrer a cargos majoritários, o comportamento do jornal mudou radicalmente. Contei 413 editoriais do Estadão – eu os coleciono – contra minha gestão à frente do MEC e da Prefeitura de São Paulo. Um par deles é particularmente significativo. No início de 2016, o jornal apostou que, sendo eu um “demagogo”, jamais reajustaria a tarifa de ônibus em ano eleitoral, mesmo que isso fragilizasse as finanças municipais num momento de crise econômica. Eu jamais me renderia à demagogia, mesmo sabendo que o último reajuste em ano eleitoral acontecera vinte anos antes, em 1996. Após o inevitável aumento, o Estadão critica a decisão num duro editorial intitulado “Cada vez mais caro e ruim”.

[O Estadão “recebeu bem” minha indicação… “Chegando a fazer referências elogiosas à minha trajetória acadêmica interdisciplinar…” Esse trecho revela não apenas o provincianismo dos petistas de São Paulo, como evidencia uma das mais poderosas armas da mídia: a vaidade dos políticos. Bastam algumas “referências elogiosas” para dobrar um político. ]

Com a Record, o contencioso envolvia a construção do Templo de Salomão. Quem licenciou a obra na gestão Kassab foi Hussain Aref Saab – então diretor do departamento de aprovação de edificações da prefeitura, acusado em 2012 de liberar obras irregulares em troca de propina. Entre outras coisas, a edificação invadia parte de uma zona especial de interesse social, destinada à moradia popular. A lei mandava demolir e esse argumento foi usado pela minha gestão para propor uma modalidade de acordo de leniência, aprovado por lei. A forma encontrada para indenizar a cidade previa a doação de um terreno com as mesmas dimensões e na mesma região, o que exigiria um dispêndio por parte da Igreja Universal do Reino de Deus de cerca de 40 milhões de reais. Essas negociações, que duraram anos, gerariam muito estresse em qualquer circunstância, mas o fato de a Record ter dentro de casa um candidato a prefeito, Celso Russomanno, agravava o quadro ainda mais.

Situação, aliás, muito semelhante à do Grupo Bandeirantes. Eu achava estranho o apresentador José Luiz Datena se recusar a conversar comigo. Dois almoços cancelados e uma animosidade incomum. Não imaginava que ele tivesse pretensões políticas, como mais tarde se revelou. O acesso à tela altera completamente as condições do jogo e os programas de tevê, nessas circunstâncias, se transformavam, um a um, em programas eleitorais. Foi difícil ter como potenciais adversários apresentadores de programas populares que dialogavam com a periferia diariamente.

O entrevero com a Band na verdade começou com o fim da Fórmula Indy. Cada edição custava 35 milhões de reais aos cofres paulistanos, piorava as condições do trânsito na Marginal Tietê e não trazia um centavo de retorno turístico para a cidade. Decidimos cancelar o evento. Plantamos vento e colhemos tempestade. A emissora promoveu uma campanha sistemática contra a atualização da planta de valores do IPTU e contra o plano municipal de mobilidade urbana. Premiado internacionalmente, o plano recebeu das emissoras de rádio do grupo o tratamento mais desqualificado que se poderia imaginar. Grande proprietário de terras na cidade, Johnny Saad chegou a me dar um telefonema dizendo: “Vamos para cima de você.”

Deixo a Jovem Pan para o final porque o comportamento da emissora em relação ao meu governo talvez seja a expressão mais transparente do déficit de republicanismo que há no Brasil.

Meus anos de universidade foram marcados pelo convívio com a nata da intelectualidade uspiana. Discutia filosofia com Paulo Arantes e Ruy Fausto, crítica literária com Roberto Schwarz, economia política com José Luís Fiori, história com Luiz Felipe de Alencastro, sociologia com Gabriel Cohn, direito com Dalmo Dallari e Fabio Comparato – e assim por diante. Estamos falando de grandes intelectuais a quem os jovens professores submetiam nossa produção acadêmica. Ver, de repente, e por imposição da atividade política, a minha produção acadêmica avaliada por comentaristas como Marco Antonio Villa e Reinaldo Azevedo foi um dos ossos mais duros de meu novo ofício. Em 1989, escrevi um livro intitulado O Sistema Soviético, uma crítica muito mais ácida àquele modelo do que, por exemplo, a elaborada por Bresser-Pereira no seu A Sociedade Estatal e a Tecnoburocracia, de 1981. Na verdade, minha tese antecipava o diagnóstico feito pelo pensador alemão Robert Kurz em O Colapso da Modernização. Não obstante, nossos dois comentaristas leram e não entenderam, considerando o livro, para meu espanto, uma defesa do comunismo.

[Esse é o trecho que chamei de caricatural: “discutia filosofia, crítica literária, economia política, sociologia, direito, e assim por diante”. Imagino que esse assim por diante deva incluir todo o universo do conhecimento humano. Ao final do parágrafo, Haddad procura defender sua obra da forma mais vil possível: cedendo moralmente aos ataques da Jovem Pan: “nossos dois comentaristas leram e não entenderam, considerando o livro, para meu espanto, uma defesa do comunismo”. Que significa isso? É um tanto decepcionante que Haddad tenha esperado receber elogios de Marco Antonio Villa e Reinaldo Azevedo. Entretanto, mais que decepcionante, é alarmante, é indigno, que Haddad se junte à ralé anticomunista para criticar… o comunismo! Ora, a esquerda nasceu criticando a esquerda e o comunismo. Um dos primeiros livros de Marx, a Miséria da Filosofia é uma crítica cruel, devastadora, a um outro livro, a Filosofia da Miséria, de Proudhon, um adorável e ingênuo socialista. Lenin construiu sua reputação destruindo e criticando os comunistas que não pertenciam à sua escola. A moderna social-democracia europeia, que tem uma historia de incríveis conquistas sociais e trabalhistas, seduziu um assustado centro político com sua moderação política e suas críticas ao comunismo soviético. Críticas ao comunismo são bem-vindas, à esquerda e à direita, desde que o crítico não as faça cedendo moralmente à baixeza intelectual, à mediocridade, à desonestidade acadêmica, como são as críticas oriundas da Jovem Pan… Deu até medo de ler esse livro do Haddad.]

Em relação a mim, a Jovem Pan não fazia propriamente jornalismo, mas algo como uma campanha persecutória. Basta ir aos arquivos da emissora para constatar. Villa resolveu utilizar seu tempo para me difamar diariamente a partir de uma análise pedestre da agenda institucional do prefeito. Diante da recusa da jp em considerar os dados oficiais sobre minha jornada de trabalho, adotamos um procedimento didático que desmoralizou nosso acusador. Por poucas horas mantivemos no portal da prefeitura uma agenda no padrão da cumprida por políticos que esse pseudointelectual gosta de bajular. Ele mordeu a isca e fez os comentários raivosos de praxe para me desqualificar. Então informei o trote pelo Facebook. Até aí, só bom humor. Inconformado, entretanto, o comentarista cobrou no ar, ensandecido, providências do Ministério Público. E elas chegaram na forma de uma ação de improbidade, da qual já fui absolvido, e de um inquérito criminal, em curso.

[Não entendi. Haddad fez uma “pegadinha”, um “trote”, no portal da prefeitura? Ora, porque não usou os espaços institucionais para defender suas próprias políticas públicas? Por que não criou novos canais? ]

Li praticamente todos os clássicos sobre a formação do Brasil. Conhecia teoricamente o nosso país. Mas a experiência prática é insubstituível. Vivi na pele o que li nos livros.

[Me desculpe, mas a afirmação de que “conhecia teoricamente o nosso país” ultrapassa a arrogância comum: é positivamente estúpido. Relevemos, porém, porque se trata, evidentemente, de um deslize inofensivo de vaidade acadêmica. O pior vem a seguir. A experiência política, ao invés de inspirar em Haddad uma interpretação criativa, inovadora, dos textos que leu sobre o Brasil, fá-lo-á (com perdão da mesóclise temeriana) agarrar-se ainda mais dogmaticamente a eles, ao ponto de sua análise carecer completamente de sentido e consequência. ]

O Brasil conheceu períodos democráticos em sua história, mas nunca um período republicano, ou essencialmente republicano, em que as instituições não se envolvem no mérito das disputas partidárias. A discussão sobre as contradições entre república e democracia foi exposta com perspicácia pelos federalistas norte-americanos, há mais de 200 anos. Os Pais Fundadores observavam que a democracia podia facilmente degradar-se em tirania da maioria. Pensaram então numa série de contrapesos, em instituições que pudessem impedir a tirania sobre minorias e preservar o país da ação de facções.

O Brasil deixaria Madison, Jay e Hamilton de cabelos em pé. Quando se olha para as instituições do país, vê-se logo que são tomadas por uma espécie de luta interna entre seus propósitos mais nobres e uma encarniçada disputa político-partidária, que obedece à lógica das facções. As instituições que deveriam apenas “garantir o jogo” democrático têm apetite por “jogar o jogo”, o que o torna menos democrático.

[Peço perdão pela agressividade, mas poucas vezes li uma análise tão rasa e equivocada sobre o The Federalist Papers, os EUA e os ideais republicanos. Haddad insulta os federalistas, a história e o bom senso. Se há motivos para Madison, Jay e Hamilton ficarem de cabelo em pé, certamente não seria com as instituições brasileiras, mas sim com a imperdoável ingenuidade (para usar um termo delicado) de um político metido a intelectual como Haddad. Não há nada mais falso, mais idiota, do que pintar os Estados Unidos dos pais fundadores, desde sua independência até o final do século XIX, como uma nação dotada de instituições serenas, tranquilas, imunes às disputas partidárias e de suas facções.  É uma estupidez contaminada de vira-latismo! Ora, Haddad, as instituições americanas era tão partidárias que levaram o país a uma guerra civil que destruiu, segundo estimativas atualizadas, mais de 750 mil vidas humanas!

A ignorância de Haddad é ilustrativa, porque evidencia, com clareza solar, a ilusão petista sobre o que seja a filosofia republicana. Esse erro é a base de muitos problemas que vivemos hoje, incluindo o golpe. Haddad, portanto, é um dos artífices da ignorância política profunda que nos levou até aqui. O ex-prefeito entende a república de uma maneira totalmente invertida. Para ele, as instituições não deveriam se envolver nas disputas partidárias. Sim! Mas os federalistas jamais foram tão idiotas como Haddad e demais petistas. Eles entendiam que essa partidarização das instituições era inevitável e, portanto, era necessário criar um sistema de freios e contrapesos, de maneira que o eventual partidarismo de uma das instituições, do judiciário, por exemplo, fosse contido por outro braço do Estado. O Federalist Papers, por isso mesmo, prevê que juízes da suprema corte podem e devem ser derrubados e substituídos, sem nenhuma dificuldade, pelo legislativo. Entretanto, os federalistas não confundem os poderes da república com o povo. O povo é um poder à parte. O povo elege representantes, mas o seu poder não é transferido. O seu poder continua lá, no povo, não no legislativo. Mesmo assim, e por isso mesmo, o valor maior da república é o sufrágio universal, que o judiciário, o legislativo e a mídia vem desrespeitando seguidamente. O federalista americano, justamente por entender a necessidade de “check and balances” para o equilíbrio do sistema, jamais fará como petistas da escola Haddad, que dominaram os governos Lula e Dilma: indicar, para o STF, nomes de fora do círculo da estrita confiança do partido, ou aceitar, para a presidência da Procuradoria Geral da República, o nome imposto pela própria instituição. Cadê o freio, cadê o contrapeso, se o Executivo permite que o Judiciário, a PGR, a PF, ganhem autonomia exagerada e antidemocrática?]

Costuma-se dizer que é complicado administrar uma cidade como São Paulo, mas a mim isso sempre foi extremamente estimulante. O problema é que instituições que deveriam funcionar para, na forma da lei, dar respaldo a quem ganha as eleições para executar seu plano de governo agem, muitas vezes, de forma facciosa. Hoje a bandeira a empunhar talvez fosse a da “justiça sem partido”.

[Sim, tem absoluta razão. Mas Haddad, um quadro partidário que supúnhamos importante, bem que poderia ter denunciado isso antes, visto que estamos sendo vítimas de conspirações midiático-judiciais desde o mensalão. Não. Haddad se calou e quem cala consente. O monstrou cresceu na esteira do silêncio covarde e oportunista dos quadros políticos mais respeitados do país.]

No primeiro ano de mandato, além do impacto do represamento da tarifa de ônibus no orçamento municipal, outro evento – na verdade, uma decisão do presidente do Supremo Tribunal Federal (STF) – fez com que, em dezembro, eu rebaixasse ainda mais as expectativas sobre minhas possibilidades de êxito.

A decisão judicial inexplicável, que trouxe graves prejuízos à administração, foi a que barrou a atualização da chamada Planta Genérica de Valores do IPTU, o Imposto Predial e Territorial Urbano, em dezembro de 2013, a partir de uma liminar pedida pelo PSDB e pela Fiesp, a Federação das Indústrias do Estado de São Paulo. Não havia na jurisprudência precedente de um tribunal suspender a revisão da base de cálculo de um tributo. Mas aconteceu. Um erro que a Justiça só reconheceu um ano mais tarde, depois de termos perdido o equivalente na época a 850 milhões de reais de arrecadação, valor suficiente para a construção de vinte CEUs, o Centro Educacional Unificado. Além de estar prevista em lei municipal e na venerada Lei de Responsabilidade Fiscal, a revisão implicava uma redução significativa do imposto nas periferias e seu aumento no centro expandido, onde os imóveis experimentaram uma brutal valorização. Era, portanto, uma medida que promovia justiça social.

Tenho gravada na memória a audiência que tivemos com o ministro Joaquim Barbosa no dia 19 de dezembro de 2013 para tentar revogar a liminar. Primeiro ele atendeu o presidente da Fiesp, Paulo Skaf, e seu advogado Ives Gandra Martins. Só depois a mim e ao procurador do município. Era nítida a diferença de tratamento, de postura, de tom, a nosso desfavor. Na audiência discutimos a situação política do país, a elevada carga tributária, e até o valor do IPTU do imóvel do ministro no Rio de Janeiro, na opinião dele muito alto. Questões eminentemente jurídicas não receberam nenhuma atenção. O pedido de cassação da liminar nos foi negado, fato só revertido no âmbito do Tribunal de Justiça de São Paulo, com larga margem de votos a nosso favor, um ano depois – leite já derramado. Infelizmente, na política, quando a Justiça tarda, ela falha.

[Importante informação sobre Joaquim Barbosa: outra inacreditável indicação do PT. Essa história vem bem a calhar, porque ultimamente JB vem querendo tirar uma onda de progressista, de crítico ao impeachment, etc. Quando ministro do Supremo, porém, foi um vil capacho dos setores mais retrógrados e golpistas da elite brasileira. Um texto tão imenso de Haddad, com tantas críticas a Dilma, ficaria mais interessante se contivesse uma autocrítica, enquanto partido, ao método de escolha de ministros do Supremo.]

Se o primeiro ano de governo foi marcado pelo dissabor dessa decisão, no quarto ano vivi um episódio lastimável envolvendo um membro do Ministério Público Estadual. O caso gira em torno da Arena Corinthians, construída pela Odebrecht. Como se sabe, quando prefeito, Kassab aprovou uma lei que permitia ao Executivo emitir 420 milhões de reais em títulos, em nome do clube, que poderiam ser usados para pagamentos de tributos municipais. Com isso, viabilizava-se a construção do estádio para a abertura da Copa do Mundo. Um promotor de Justiça entrou com uma ação contra essa lei. E os títulos viraram um mico nas mãos do clube e da empreiteira. Alegando que haviam sido prejudicados pela ação, Corinthians e Odebrecht reivindicaram que a prefeitura, diante do imbróglio, recomprasse os papéis, invendáveis dada a insegurança jurídica provocada pela atuação do Ministério Público.

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Obviamente recusei a proposta, que seria lesiva ao município. Foi quando fiquei sabendo de um suposto incidente gravíssimo envolvendo o promotor de Justiça Marcelo Milani. Fui informado de que, para não ingressar com a ação judicial, o promotor teria pedido propina de 1 milhão de reais. Eu respondi que essa informação não mudava o teor da minha decisão, contra a recompra, e que não me restava alternativa como agente público senão levar o fato relatado ao conhecimento da Corregedoria-Geral do Ministério Público, para que fosse devidamente apurado.

[Haddad faz, nesse texto, uma denúncia gravíssima contra o promotor Marcelo Milani. A julgar pelo texto, que traz informações bastante volumosas para respaldar a acusação, Milani é mais um – entre tantos – caso de banditismo institucional.]

Por recomendação do meu secretário de Segurança Urbana, Roberto Porto, ele mesmo membro do Ministério Público, chamei em meu gabinete um assessor do corregedor do órgão, Nelson Gonzaga de Oliveira, e repassamos a informação do suposto pedido de propina. Fizemos isso com a maior discrição. Sem uma ampla investigação, não haveria como atestar a veracidade da informação contra o promotor, que eu sequer conhecia. Minha denúncia, contudo, chegou aos ouvidos do próprio Marcelo Milani. E desde então ele adotou uma atitude persecutória contra mim.

Dou exemplos. A Controladoria Geral do Município, que criamos, foi responsável por flagrar atos de corrupção no Theatro Municipal. Assim que a irregularidade foi detectada, nomeamos um interventor e estabelecemos uma parceria com o Ministério Público, bloqueando os bens comprados com o dinheiro da corrupção pelos envolvidos, que confessaram o crime. Uma CPI, de maioria oposicionista, criada pela Câmara Municipal decidiu excluir por unanimidade qualquer menção ao meu nome do relatório final, por entender que nada havia contra o prefeito neste caso. O promotor Marcelo Milani, ainda assim, encontrou uma maneira de propor uma ação de improbidade contra mim.

Mas talvez seja em outra ação de improbidade, relativa ao destino dos recursos de multas de trânsito, que o comportamento impróprio do promotor tenha ficado mais patente. Milani moveu duas ações semelhantes com o mesmo fundamento, uma contra a prefeitura, outra contra o estado. No primeiro caso, convocou-se uma coletiva de imprensa e o chefe do Executivo, o prefeito, figurava como réu por improbidade; no segundo, uma breve nota substituiu a coletiva de imprensa, o governador não figurava como réu e o processo acabou arquivado por perda de prazo pelo promotor. A isso eu chamo de comportamento faccioso. Fatos como esse são muito mais corriqueiros no Brasil do que se imagina.

[Repito: denúncia importantíssima de Haddad, muito emblemática do Brasil de hoje, refém da bandidagem do Ministério Público e do Judiciário, que são ainda piores do que os políticos, porque não podemos substituí-los pelo voto, e tem o poder de prisão sobre seus adversários.

***

Volto a 2013, de onde parti, para enfrentar a pergunta fundamental se quisermos entender os últimos anos e a situação atual do país: como explicar a explosão de descontentamento ocorrida em junho daquele ano, expressa na maior onda de protestos desde a redemocratização? O desemprego estava num patamar ainda baixo; a inflação, embora pressionada, encontrava-se em nível suportável e corria abaixo dos reajustes salariais; os serviços públicos continuavam em expansão, e os direitos previstos na Constituição seguiam se ampliando.

[Haddad inicia aqui uma interessante reflexão sobre 2013, a qual, por partir do prefeito da cidade que deu origem a tudo que veio, tem um valor histórico e sociológico imenso. Leiamos as reflexões de Haddad sem interrupção. Só ao final delas, voltamos a comentar. ]

Cabem, ao menos, três reflexões a respeito de 2013: sobre as classes médias, sobre a polícia e sobre as redes sociais.

O Marx da maturidade foi obrigado a ceder a um argumento que só seria apresentado formalmente décadas depois pelo economista Joseph Schumpeter. Foi quando a tese marxista da pauperização da classe trabalhadora deu lugar a um raciocínio mais sofisticado. Como decorrência do incrível progresso tecnológico próprio do capitalismo, os salários poderiam, segundo seus textos mais tardios, aumentar continuamente – o que significava dizer que a situação da classe operária poderia melhorar em termos absolutos.

Ainda assim, o velho Marx não se viu obrigado a rever, por força dessa inflexão, seus prognósticos sobre a evolução da luta de classes. Isso porque ele avaliou que o relevante para a dinâmica de classe era a posição relativa das classes, e não sua posição absoluta. Importava mais a distância que separa as classes entre si, num dado momento, do que a comparação de uma classe com ela mesma ao longo do tempo.

O advento da social-democracia representou para o marxismo um desafio adicional. Nos chamados anos dourados do capitalismo, que se seguiram à Segunda Guerra Mundial, não só a posição absoluta dos trabalhadores nos países desenvolvidos – o núcleo duro do sistema – melhorou continuamente, como a classe trabalhadora desses países viu sua posição relativa se alterar favoravelmente. O fenômeno, expresso nos indicadores de desigualdade social, é reconhecido pela economia política em geral – seja ele consequência das guerras mundiais, do desafio soviético ou da lei de ferro que estratifica as economias nacionais, concentrando riqueza oligárquica no núcleo duro do sistema.

O Brasil, por sua vez, é um país fortemente estratificado: a desigualdade sempre foi a marca da nossa sociedade. Somos um misto de sociedade de “castas” com meritocracia. O indivíduo pode, por esforço e talento próprios, mudar de casta sem reencarnar – mas a posição relativa das “castas” há de ser mantida.

Durante o governo Lula essa estrutura começou a se alterar e, aparentemente, gerou grande mal-estar: os ricos estavam se tornando mais ricos e os pobres, menos pobres. Por seu turno, as camadas médias tradicionais olhavam para a frente e viam os ricos se distanciarem; olhavam para trás e viam os pobres se aproximarem. Sua posição relativa se alterou desfavoravelmente. Se os rendimentos dessas camadas médias não perderam poder de compra medido em bens materiais, perderam-no quando medido em serviços.

O verdadeiro shopping center das camadas médias brasileiras sempre foi o mercado de trabalho. A abundância de mão de obra barata lhes garantia privilégios inexistentes no núcleo duro do sistema. A empregada barata, a babá barata, o motorista barato. Serviços domésticos em quantidade eram a grande compensação pela falta de serviços públicos de qualidade.

A princípio, o desconforto não tinha como se expressar politicamente, pelo menos não da forma tradicional. Num dos países mais desiguais do mundo, defender a desigualdade não traria à oposição a projeção necessária nos embates no plano socioeconômico. Esse desconforto encontrou sua expressão possível pelo discurso da intolerância – contra pobres (Bolsa Família), pretos (cotas), mulheres (aborto), gays (kit) ou jovens (maioridade penal) –, que flertou com o fundamentalismo, violento ou religioso.

A panela de pressão estava ali, acumulando energia, e só não explodia porque o palpável sucesso econômico do governo a impedia. E, ao contrário do que já vinha acontecendo no restante da América Latina, na Venezuela, na Argentina, no Peru, no Equador e na Bolívia, a direita no Brasil ainda não tinha saído às ruas. A partir de 2006, em particular com a reeleição de Lula, apesar do aumento contínuo da aprovação ao governo, já se podia perceber um sentimento crescente de desalento por parte de setores mais tradicionais.

E veio a fagulha, acesa num protesto organizado pelo MPL, o Movimento Passe Livre, contra o aumento da tarifa de ônibus – um reajuste, é bom lembrar, de apenas 6% diante de uma inflação acumulada de 17%. Eu sabia que a situação exigia cuidado, que teria repercussão, ainda mais sendo eu o prefeito, mas imaginava que conseguiria estabelecer um diálogo com os manifestantes que, a princípio, recusaram o aceno.

Eis que entra em cena o “comando da polícia”, uma entidade desde sempre mais preocupada com a ordem pública do que com a segurança pública, mais preocupada com os deveres do cidadão do que com seus direitos.

Na ocasião, a administração municipal se desgastava com a cúpula da Polícia Militar em função da readequação das regras de remuneração da chamada Operação Delegada, programa criado por Kassab mediante o qual o município repassava mais de 100 milhões de reais para a corporação por serviços de combate aos ambulantes ilegais. Atrito, aliás, que já havia se manifestado na primeira Virada Cultural sob nossa administração, quando arrastões aconteceram diante de olhos displicentes de alguns policiais, segundo diversos relatos da época. E se agravaria com o boicote explícito ao programa De Braços Abertos, com a transferência dos excelentes policiais militares que inibiam a ação do tráfico na região da Cracolândia.

Em 13 de junho de 2013, a foto de um policial com o rosto coberto de sangue estampou a capa dos jornais. Ele havia sido agredido pelos manifestantes. Naquele dia eu voltava de uma viagem de trabalho com o governador Geraldo Alckmin e, até aquele momento, a situação nem de longe parecia fora de controle. Aquela foto, entretanto, me impeliu a dar um telefonema ao secretário de Segurança Pública do estado: era imprescindível um esforço para que não houvesse um revide da polícia. Mas ele veio. E então o país explodiu.

Para os padrões da classe média, a violência foi grande. Ainda tentando manter a situação sob controle, fiz uma crítica à atuação policial abaixo do tom, na esperança de criar algum espaço para a interlocução. Em vão. O MPL passou a me corresponsabilizar pela truculência da polícia, e a polícia, por seu turno, reprimia o movimento – a não ser quando os alvos da fúria eram prédios municipais, como o Edifício Matarazzo ou o Theatro Municipal. Nesses casos, a Polícia Militar simplesmente cruzava os braços. Apesar de um pedido que na ocasião fiz em audiência, Alckmin só viria a substituir o comandante-geral da PM ao final do seu mandato, em dezembro de 2014.

Alguém dirá, com razão, que nem o MPL nem a PM explicam a eclosão da crise. Aqui, é necessário introduzir um elemento sem o qual os eventos de 2013 não encontram explicação: a forma assumida pelas manifestações.

Tradicionalmente, todas as modernas organizações contestatórias no Brasil, do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (mst) ao Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (mtst), passando pela Central Única dos Trabalhadores (cut), pela União Nacional dos Estudantes (une) e demais movimentos sociais, sempre foram adeptas de alguma mediação político-institucional. Mesmo durante a fase mais aguda do neoliberalismo, essas organizações faziam atos, exerciam seu direito de protesto, mas buscavam a negociação com as instituições. Diante de governos de centro-esquerda, essa tendência se acentuava e trazia ganhos efetivos para os grupos representados.

Nos países do núcleo orgânico do sistema, onde essa mediação era menos provável, ganhou corpo desde os eventos de Seattle, em 1999, uma certa esquerda antiestatal, neoanarquista charmosa, que mantém distância dos governos e das instâncias de representação política em geral. Os protestos nessas circunstâncias ocorrem de forma inteiramente nova. Sem vínculos partidários nem pretensões eleitorais, a partir de uma agenda bastante específica e de difícil contestação, esses movimentos começaram a fazer sucesso mundo afora. E eles foram bastante críticos em relação à política e às formas tradicionais de negociação, que viriam inspirar os movimentos mais contemporâneos que se desenvolveram no Brasil, dentre os quais o MPL.

Traduzida para as condições locais, porém, a novidade provocou um curto-circuito. A forma dos protestos, muito mais do que o conteúdo de suas reivindicações, oferecia uma chave de contestação que se prestava à defesa de tantas outras bandeiras. Logo ficou claro que ela, a forma, poderia ser sequestrada e servir de embalagem para uma miríade de novas demandas. E a panela de pressão de que falávamos pareceu ter encontrado a válvula para dar vazão à energia que havia se acumulado por anos.

No intervalo de uma semana as ruas estavam cheias, com uma pluralidade de reivindicações desconexas e às vezes contraditórias entre si. Quando o sequestro da forma se consumou, o MPL se retirou das ruas, bem como a esquerda tradicional caudatária do movimento. E grupos de direita, apartidários, se organizaram para emparedar o governo federal, apropriando-se sintomaticamente da própria linguagem dos protestos originais, que ganhavam simpatia popular: MBL (Movimento Brasil Livre) é uma corruptela de MPL; Vem Pra Rua era um dos gritos mais ouvidos nos protestos; Revoltados On Line evoca diretamente a natureza daqueles eventos convocados via rede social.

Sem tratar das redes sociais não se entende 2013 em sua totalidade. Criou-se uma ilusão nas esquerdas em relação ao potencial emancipatório da internet. Acho que as redes sociais estão mais para Luhmann do que para Habermas. Quero dizer com isso que a ênfase dada pelo filósofo alemão Jürgen Habermas às possibilidades de participação política proporcionadas pela modernidade talvez tenha sido exagerada. E que a visão mais pessimista de seu conterrâneo, o sociólogo Niklas Luhmann, seja mais adequada ao mundo de hoje.

De acordo com Luhmann, o advento da rede social representa uma ruptura radical entre a emissão e a recepção da mensagem. É uma ideia contraintuitiva numa época em que tudo se tornou instantâneo e tudo parece interligado. O ponto, segundo ele, é que hoje a reputação do emissor, a origem da informação, perdeu relevância. A técnica, diz Luhmann, “anula a autoridade da fonte e a substitui pelo irreconhecível da fonte”.

Imaginou-se inicialmente, sobretudo em ambientes de esquerda, que essa ruptura e o enfraquecimento da autoridade de quem fala reduziriam o poder de manipulação da indústria cultural. Entretanto, o que ocupou seu lugar parece tão ou mais perigoso que a força da tradição, com a difusão deliberada e em grande escala de informações com viés, sem o anteparo das instâncias costumeiras de validação. É nesse ambiente que prospera a chamada “pós-verdade”.

Há de se considerar ainda a dimensão econômica, o modelo de negócio da internet. Na verdade, as redes digitais são menos sociais do que se pensa. Por trás do black mirror há menos o desejo de promover a interação do que, por meio da interação, conhecer o feixe de relações do usuário para compor tanto quanto possível a “identidade” desse sujeito.

Somos decodificados a partir das nossas manifestações digitais e convertidos numa sequência binária de curtidas/não curtidas que revela nossas preferências e gostos, com um grau acurado de precisão. São essas preciosas informações que garantem o patrocínio às megacorporações como o Facebook e o Google. E, se essas informações podem ser usadas não somente para promover a venda de mercadorias, mas também a “venda” de ideias e ideais, estamos diante de um desafio considerável para a democracia.

A decorrência lógica desse processo é a formação de múltiplos nichos que exacerbam o individualismo e reforçam as “identidades digitais”. O indivíduo, nesse universo paralelo caracterizado pelo feixe de relações virtuais que estabelece, tende a adotar uma atitude francamente reativa e reacionária em relação ao contraditório.

Durante os protestos de 2013 no Brasil, a percepção de alguns estudiosos da rede social já era de que as ações virtuais poderiam estar sendo patrocinadas. Não se falava ainda da Cambridge Analytica, empresa que, segundo relatos, atuou na eleição de Donald Trump, na votação do Brexit, entre outras, usando sofisticados modelos de data mining e data analysis. Mas já naquela ocasião vi um estudo gráfico mostrando uma série de nós na teia de comunicação virtual, representativos de centros nervosos emissores de convocações para os atos. O que se percebia era uma movimentação na rede social com um padrão e um alcance que por geração espontânea dificilmente teria tido o êxito obtido. Bem mais tarde, eu soube que Putin e Erdogan haviam telefonado pessoalmente para Dilma e Lula com o propósito de alertá-los sobre essa possibilidade.

[Importante revelação de Haddad! Esse telefonema de Putin e Erdogan a Dilma e Lula é uma informação nova! ]

Eu estava decidido a manter posição diante dos protestos, apesar das pressões. Eis que recebo um telefonema do Eduardo Paes, a quem o Planalto também tinha pedido o adiamento do reajuste da tarifa, dizendo que era melhor ceder. “Não vou segurar, você vai ficar sozinho”, me disse o prefeito do Rio. A pressão interna sobre nós já atingia patamares insuportáveis e o telefonema era a gota d’água. Foi então que resolvi ir ao Palácio dos Bandeirantes e propor ao governador Alckmin que fizéssemos juntos o anúncio da revogação do aumento. Contrariado, certo de que aquilo nada tinha a ver com tarifa de ônibus, tentei com o gesto despartidarizar a questão e iniciar um processo de construção de uma política tarifária metropolitana.

Na chegada, quando apertamos as mãos, pouco antes da coletiva em que faríamos o anúncio, eu disse ao governador o que pressentia: “Podemos estar às vésperas de uma crise institucional.”

Tenho para mim que o impeachment de Dilma não ocorreria não fossem as Jornadas de Junho.

A crise internacional do neoliberalismo se desenrola desde 2008. Já no final dos anos 90, muitos economistas, dentre os quais me incluo, previam que a desregulamentação financeira provocaria uma crise de proporções consideráveis, cuja debelação não poderia contar com as clássicas políticas keynesianas que pressupõem, justamente, governança financeira global. Agregava-se a isso a chamada acumulação flexível, que, pelo incrível barateamento dos custos de transporte, comunicação e tecnologia da informação, desnacionalizou a produção, minando a base territorial dos sindicatos e demais organizações de trabalhadores, sobretudo no núcleo do sistema.

Os países periféricos, em particular os que se acoplaram como fornecedores de matéria-prima à locomotiva chinesa, beneficiaram-se do processo, impulsionados inclusive pelo overshooting do preço das commodities. Foi o caso do Brasil. Há muitas diferenças na forma como o país é visto por FHC e Lula, mas há um ponto em comum entre eles: ambos imaginaram, cada um à sua maneira, que o país poderia ter um lugar diferenciado no concerto das nações. Pressentiam que as especificidades brasileiras – o tamanho de sua população, a extensão do território, seus amplos recursos naturais, a terra agricultável e uma ciência ainda incipiente mas líder na América Latina – configuravam potencial suficiente para uma melhor inserção no mercado internacional. Para eles, o Brasil estava aquém da posição que poderia ocupar.

A diferença é que FHC e Lula definiram estratégias distintas para alcançar esse objetivo. O tucano dava mais ênfase ao capital estrangeiro e ao mercado externo. O petista priorizou o capital nacional e o mercado interno. Esses pontos de vista distintos determinaram políticas públicas muito discrepantes. Distribuir renda, por exemplo, pode representar uma ameaça, num caso, ou uma necessidade, no outro. Desnacionalizar as empresas pode ser uma exigência para o primeiro e um atentado ao desenvolvimento nacional para o segundo. E assim por diante.

[A simplificação de Haddad neste ponto foi tão excessiva que se torna uma inverdade. Se Lula priorizou o mercado nacional e o mercado interno, foi no governo dele que as exportações registraram o maior crescimento de nossa história, com um esforço deliberado do governo para ampliar e desconcentrar os mercados compradores. O volume de investimentos externos diretos, sob Lula e Dilma, também bateram recorde. A preocupação de Lula em equilibrar as contas externas nacionais, pagar nossas dívidas e ampliar nossas exportações, mostram que o petista jamais descuidou do fator global. ]

Essas opções se refletem, às vezes, no alcance das políticas públicas. Um caso paradigmático é o Plano Nacional de Educação (PNE) de 2001. Aprovado pelo Congresso Nacional, o plano previa a universalização, em seis anos, do primeiro programa federal de transferência de renda. FHC vetou o dispositivo, alegando falta de fonte orçamentária. Lula percebeu que com ação semelhante poderia acabar com a fome na mesma medida em que dinamizava o mercado interno. Outros aspectos do PNE foram observados por Lula, que expandiu como nunca o acesso à educação superior, profissional e infantil das famílias de baixa renda. Transformou-se no “barão da ralé”.

No plano externo, Lula concebia a internacionalização da economia a partir do capital nacional. Toda a política externa de seu governo teve essa premissa: abrir mercados para as empresas brasileiras, agronegócio e construção pesada à frente, como vetores de um movimento mais amplo. As visitas que o ex-presidente fez a quase todos os países da África e do Oriente Médio, o desejo de fortalecer o Mercosul e a Unasul, o papel desempenhado pelo G20, a articulação dos Brics, todo o esforço da diplomacia Lula caminhava nessa direção. Ele realmente desejava que as empresas brasileiras crescessem e se internacionalizassem, imaginando que o Brasil também poderia engendrar, ainda que em escala menor, seus keiretsus e chaebols, os grandes conglomerados empresariais de Japão e Coreia, países de desenvolvimento tardio.

[No ambiente midiaticamente envenenado que vivemos hoje, em que a imprensa abraçou uma ideologia esquizofrênica (e sumamente idiota) de “neoliberalismo soviético”, contra empresas e contra o Estado,  a declaração de que Lula buscou abrir mercados para as empresas brasileiras soa como algo de errado. Mas devemos lembrar que, se um país busca abrir mercados para seus produtos, é evidente que será para suas empresas, já que não há outra forma de vender produtos e serviços a não ser mediante suas empresas. ]

O mundo acompanhava tudo com atenção.

Fernando Henrique fazia uma outra leitura do papel que o Brasil poderia reivindicar no cenário internacional. Usando terminologia dos anos 60, eu diria que ele considerava que o país não tinha pernas para exercer uma posição de tipo subimperialista. O destino nos reservava um papel de tipo subcapitalista. O “príncipe da sociologia” nunca confiou na capacidade da burguesia nacional de empreender em escala internacional. Ao contrário, sempre a considerou limitada e condenada à submissão, cabendo ao país – mais com a ajuda do capital estrangeiro do que com a do capital nacional, estatal ou privado – promover o mero acoplamento à ordem internacional, deixando às nossas geográficas vantagens comparativas a função de nos situar numa posição mais favorável. O “entreguismo” de que foi acusado era apenas a tradução de sua visão sobre a baixa pretensão das nossas classes dirigentes.

[A leitura de FHC, se ele pensava isso mesmo, cometeu dois erros: subestimou a burguesia brasileira, a qual tem capacidade como qualquer outra burguesia (como a coreana, por exemplo), de conquistar o mundo, mas ignorou o problema da burocracia antinacional, conforme vamos discutir mais adiante.]

No contexto brasileiro, a estratégia de Lula, por seu turno, se deparava com um enorme risco: o patrimonialismo brasileiro ou a versão beta do crony capitalism, o capitalismo clientelista ou de compadrio.

O patrimonialismo é, antes de mais nada, uma antítese da república. O despotismo é outra antítese da república. Entre nós, brasileiros, nenhuma obra do pensamento social e político descreve melhor o patrimonialismo, hoje com suas entranhas expostas no noticiário do país, do que Os Donos do Poder, de Raymundo Faoro. O texto, publicado em 1958, deveria ser relido, cum grano salis, como veremos.

[Haddad, previsivelmente, faz uma leitura pouco original, de Raymondo Faoro. Os Donos do Poder se tornou uma clichê dos pseudo-intelectuais midiáticos. Roberto Gurgel, então procurador-geral da república, iniciou a denúncia do mensalão com longas citações de Faoro. Ora, eu li os Donos do Poder duas vezes e o que eu entendi do livro não foi exatamente uma crítica ao capitalismo clientelista brasileiro, e sim uma denúncia à ocupação, pela burguesia decadente economicamente, de cargos públicos, em especial no judiciário. Ou seja, Faoro é o primeiro grande pensador brasileiro a observar que o judiciário estava sendo aparelhado politicamente, e por razões triplamente egoístas: pelos altos salários, de maneira a manter o padrão de vida luxuoso que as elites brasileiras sempre mantiveram; para controlar as políticas públicas, de maneira a vetar, via justiça, qualquer iniciativa popular implementada por eventuais eleitos pelo povo; e por fim, para proteger o latifúndio, ameaçado pela queda da produtividade e pela concorrência das pequenas e médias propriedades familiares. Para mim, esse é o patrimonialismo denunciado por Faoro: a ocupação política, pela classe rica, do judiciário e do Ministério Público.] 

“Na peculiaridade histórica brasileira”, escreve Faoro, “a camada dirigente atua em nome próprio, servida dos instrumentos políticos derivados de sua posse do aparelhamento estatal.” Não há sutileza aqui: ele afirma que o Estado no Brasil é objeto de posse, tomado pela camada dirigente como seu. E prossegue: a comunidade política comanda e supervisiona todos os negócios relevantes, “concentrando no corpo estatal os mecanismos de intermediação, com suas manipulações financeiras, monopolistas, de concessão pública de atividade, de controle de crédito, de consumo, de produção privilegiada, numa gama que vai da gestão direta à regulamentação material da economia”. E conclui: “A comunidade política conduz, comanda, supervisiona os negócios como negócios privados seus, na origem como negócios públicos, depois em linhas que se demarcam gradualmente.”

A essa forma acabada de poder, institucionalizada num certo tipo de domínio, Faoro chama de patrimonialismo. E nota que, ao contrário do mundo feudal, que é “fechado por essência, não resiste ao impacto com o capitalismo, quebrando-se internamente”, o patrimonialismo se amolda “às transições, às mudanças, em caráter flexivelmente estabilizador do mundo externo”. Ou seja, Faoro já percebia que o patrimonialismo brasileiro – que segundo sua tese remonta à dinastia portuguesa de Avis (1385–1580) durante a expansão comercial lusitana para a África, Índia e Brasil – adaptou-se à chegada do capitalismo. Ou seja, ele o concebia como um modelo arcaico que sobreviveu à modernização.

Em um artigo publicado na revista Reportagem em janeiro de 2003, logo após a primeira eleição de Lula, eu alertava que o PT ainda não havia feito o diagnóstico adequado sobre a natureza do que chamei de “patrimonialismo moderno”.

Argumentei que, dada a natureza patrimonialista do Estado brasileiro, “a mera chegada ao poder de um partido de esquerda, por si só, ainda que prometesse respeitar todos os direitos constituídos e os contratos celebrados, seria percebida como um ato em si mesmo expropriatório”. E, portanto, passível de forte reação contrária. Mas que o nó da questão era, como o próprio Faoro apontava em sua obra, a possibilidade histórica de um patrimonialismo social-democrata, que empreendesse “uma política de bem-estar para assegurar a adesão das massas”.

[Faoro era um liberal conservador. A observação sobre um “patrimonialismo social-democrata que empreende uma política de bem-estar para as massas” degenera, por exemplo, numa visão conspiratória sem sentido, paranoica, exagerada, talvez envenenada por esse sectarismo incrivelmente hipócrita,  tão típico dos países ibéricos, fundamento de todas as campanhas “contra a corrupção”. Ora, é evidente que sempre haverá algum tipo de “patrimonialismo” no Estado brasileiro enquanto o país for capitalista. Imaginar um país totalmente livre do patrimonialismo e ao mesmo tempo capitalista é uma aberração e um perigo, porque pode gerar, como gerou, uma cultura corporativa antiempresa. Ou seja, a alergia antipatrimonialista, que vemos com a Lava Jato e outras operações, gerou um sectarismo idiota, muito mais nocivo que o patrimonialismo tradicional: o Estado inimigo das empresas. A grande mídia aceita essa situação com um friozinho na barriga, porque fareja a oportunidade de vender muito caro, como está vendendo, o serviço de proteção às empresas contra as agressões dos aparelhos fanáticos do Estado. ]

Obviamente, quando escreveu essas linhas Raymundo Faoro pensava em Getúlio Vargas. Mas o PT, que em certa medida retomava o projeto trabalhista tantas vezes abortado, não poderia ter desconsiderado esse risco. Hoje, se eu pudesse apontar um grande equívoco do PT, seria esse: o de subestimar o caráter patrimonialista do Estado brasileiro.

[Haddad, como se vê, ao fazer uma interpretação sem originalidade de um texto escrito há décadas, não enxergou que a crítica rasteira ao patrimonialismo se tornou uma farsa, porque degenerou numa guerra hipócrita entre grupos patrimonialistas. Os vencedores nunca foram os empresários, talvez pelo vício ibérico-cristão da cultura brasileira de jamais ver com bons olhos os empresários independentes, e ao mesmo tempo idolatrar os burocratas, os quais representam a verdadeira essência do patrimonialismo. Um empresário pode pagar a campanha de deputados, suborná-los, mas nunca terá controle absoluto sobre suas ações. Aliás, o próprio fato de ser obrigado a correr tantos riscos para influenciá-los, demonstra que ele não tem controle sobre os deputados e senadores. Já as corporações judiciais, elas não precisam comprar a si mesmas. Elas são um poder autônomo, com fonte de financiamento quase ilimitado, salários milionários (se o considerarmos anualmente, como fazem os americanos), além do mais importante: o poder de prisão. O judiciário (e incluo o MP e a PF no judiciário) pode prender, pode cassar candidatos e eleitos, pode suspender licitações e obras públicas. Haddad, sem criatividade, está repetindo a crítica dos próprios patrimonialistas do judiciário, que são os piores, os mais nocivos, porque dispostos a destruir empresas em nome de um suposto (e sumamente hipócrita, visto que os verdadeiros patrimonialistas são eles)  “combate ao patrimonialismo e à corrupção”.]

O PT que chegou ao poder naquele ano de 2003 podia ser dividido em três grupos internos: uma esquerda socialista, uma direita republicana e um centro social-desenvolvimentista, hegemônico no partido. No artigo, eu sugeria que poderíamos cometer um erro histórico se o centro social-desenvolvimentista, ignorando as percepções das duas outras alas, entendesse que nosso projeto era realizável sem reformar profundamente as estruturas do estado patrimonialista.

[É a primeira vez que eu vejo essa divisão do PT nas três alas mencionadas.  A sua referência a uma necessária reforma profunda das estruturas do estado patrimonialista, no entanto, revelam também uma arrogância meio biruta. É evidente que uma transformação tão radical nunca será feita pela facção de um partido. O que um partido deveria fazer é estimular o debate necessário para a sociedade entender a necessidade dessas mudanças e se engajar em seu favor. O PT, no entanto, e Haddad, como prefeito, foi na mesma linha, ainda não percebeu que sua função, como partido, é estimular um debate aberto. Esses debates não precisam ser ocupados por enormes bandeiras do PT na própria mesa dos palestrantes, tirando a atenção do tema. O PT pode organizar os debates, mas aparecer de maneira discreta, quase subliminar, e o resultado será muito mais positivo, para o debate e para o próprio partido. ]

A minha esperança, à época, era a inserção social do PT. Que, de fora para dentro do governo, o partido e sua militância poderiam oxigenar a máquina pública. O que de fato ocorreu, mas só até determinado ponto. Prova disso é que na administração direta, nas autarquias e fundações, o governo avançou muitíssimo, por exemplo, pela criação da Controladoria-Geral da União, pelo fortalecimento da Polícia Federal, pelo grau de autonomia do Ministério Público Federal etc. As práticas patrimonialistas se fixaram justamente onde esses órgãos tinham um espaço muito menor de atuação, o local privilegiado em que o poder político encontra o poder econômico: as estatais, federais e estaduais, as agências reguladoras, o Banco Central etc. E na Petrobras, que ocupa o imaginário brasileiro desde Getúlio Vargas e administra, de fato, um ativo estratégico para o desenvolvimento nacional.

[Por aí se vê como Haddad se enrola todo e vê as coisas pelo avesso. Ele ecoa o preconceito midiático contra a classe política e trata as instituições que tem demonstrado o mais perigoso patrimonialismo de todos, o Ministério Público e a Polícia Federal, como menos expostos às “práticas patrimonialistas”. Ora, não há nada mais odiosamente patrimonialista hoje, no Brasil, do que o Ministério Público! Há muita promiscuidade entre empresas e estatais, federais, estaduais, agências reguladores, Petrobrás, etc, e muita corrupção, mas não podemos mergulhar na insanidade dos burocratas de confundir o desejo de eliminar a corrupção, com a tara de pretender eliminar as empresas. As empresas existem, e fazem obras públicas, e tem relação com estatais, agências e governos. Haddad já disse que não gosta do modelo soviético, então deveria defender a importância das empresas para o desenvolvimento econômico e social do país, ao invés de repetir teorias de botequim sobre o patrimonialismo brasileiro, que os procuradores, como Dallagnol, também adoram repetir, e que não tem  outro resultado a não ser substituir empresas nacionais por estrangeiras. O preconceito ibérico-católico contra empresas se mistura ao viralatismo antinacional, daí ficamos muito satisfeitos quando nossos aeroportos, ao invés de serem construídos e geridos por uma Odebrecht, que patrocina a campanha de políticos, o são por uma empresa alemã. Dá a sensação que exterminamos com o patrimonialismo! Só que não! ]

Aliás, há um equívoco ao se falar de corrupção sistêmica ou de lobby no Brasil. A corrupção no país é mais do que sistêmica, ela é o corolário de nosso patrimonialismo. Afirmar que a corrupção, aqui, é sistêmica pode passar a impressão de que seria possível um patrimonialismo incorrupto. Da mesma forma com o lobby. Não há lobby no patrimonialismo. Na verdade, o lobby devidamente regulamentado seria até um avanço diante do que temos. O lobby pressupõe pelo menos dois lados, se não uma mesa quadrada, pelo menos um balcão. No patrimonialismo, o poder político e o poder econômico – “os donos do poder”, na definição de Faoro – sentam-se a uma mesa redonda. Não se distinguem os lados. Em um contexto como esse, não há vítimas, a não ser os que não estão à mesa; há negócios.

[Depois de enveredar pelo pântano de viralatismo, Haddad vai se afundando cada vez mais. Criou-se uma competição, entre os vira-latas, para saber quem usa os piores adjetivos para o Brasil. Haddad diz que a corrupção é “mais do que sistêmica, ela é o corolário do nosso patrimonialismo”. Ao dizer que não é possível um patrimonialismo incorrupto, Haddad dá a entender que é possível um regime capitalista não patrimonialista. Mas é pior, porque ele ainda associa o patrimonialismo às empresas brasileiras do setor de produção, que, apesar de não poderem ser chamadas exatamente de “vítimas”, são sim vulneráveis às chantagens de castas judiciais, políticos corruptos, banqueiros e uma mídia incrivelmente irresponsável. Os empresários não são santos. Alguns são profundamente corruptos. Mas o conceito de patrimonialismo remete ao domínio do Estado. E quem domina o Estado, no Brasil de hoje, não são empresários, e sim uma casta judicial.] 

A pergunta que se coloca nesses tempos em que a Operação Lava Jato expõe parte do funcionamento de nosso patrimonialismo é: pode uma revolução ser conduzida pelo Poder Judiciário?

[A operação Lava Jato expõe o nosso patrimonialismo, a meu ver, num sentido contrário àquele que Haddad pensa ser. A relação entre empresários e classe política, no Brasil, não é tão diferente da de outras democracias. Quanto ao caixa 2, não é sequer crime, é infração eleitoral.  O caixa 2 eleitoral existe em todos os países democráticos. Os únicos países onde não existe caixa 2 são aqueles onde não há eleições.  A mídia brasileira e as instituições patrimonialistas produziram, com finalidade política, uma imagem satânica do caixa 2.

Em relação às empreiteiras, a Petrobrás precisa delas para levar adiante suas obras de infra-estrutura. O governo precisa construir hidrelétricas, estradas e aeroportos, e daí contrata as empresas de engenharia. Não vejo, necessariamente, patrimonialismo nisso. Há, no meio de tudo isso, corrupção, não patrimonialismo. Caixa 2 não é patrimonialismo. Contratação de empreiteiras para obras de construção pesada não é patrimonialismo. A acusação de cartel, pela Lava Jato, é uma farsa, a meu ver. Cartel de 16 empresas? Cartel seria ser fossem 3 ou 4 empresas. Todas as informações até agora sugerem que as propinas saíam do lucro das próprias empresas, e as denúncias de superfaturamento, pelo menos nas obras da Petrobrás, não são conclusivas, vide que os engenheiros da Petrobrás determinavam o preço de produtos e serviços com muito detalhe.  

Patrimonialismo, segundo Faoro, é quando os fazendeiros falidos da cana de açúcar mandam seus filhos se tornarem juízes e procuradores, para compensar a perda de renda da propriedade e para ocupar o Estado. O patrimonialismo está na própria Lava Jato, que usa o seu poder de investigação para assumir o controle político do país.] 

Não é preciso consultar Montesquieu para saber que não. O Poder Judiciário não tem a faculdade de criar um mundo novo. Nas condições locais, entretanto, ele pode concorrer para destruir o antigo, criando ou não as condições de que algo novo surja no horizonte, ou simular a destruição do velho para que tudo permaneça exatamente como é.

[Aí Haddad faz uma crítica importante – mas incompleta, e tímida – ao judiciário. Ele faz uma observação lampedusiana sobre  o método, próprio da Lava Jato, de destruir tudo para continuar como é, da qual, contudo, eu discordo, porque o Brasil que está emergindo da Lava Jato é infinitamente pior do que antes. É um Brasil mais corrupto, mais violento, mais pobre, com menos soberania, menos controle sobre suas riquezas naturais, com a polícia, a justiça e o ministério público mais autoritários, truculentos e autoritários do que nunca.  O Brasil ambicionado pela Lava Jato parece ser um país devastado e apocalíptico: um país improdutivo, sem empresas nacionais, sem sindicatos, sem partidos, com uma casta de juízes e procuradores milionários e corruptos dando as ordens.]

O debate sobre corrupção no Brasil sempre foi um faz de conta, um tema de conveniência e oportunidade, não de princípios. As instituições que deveriam garantir a imparcialidade das apurações são, regra geral, arrastadas para dentro da arena da disputa política e contaminadas pelo espírito de facção. Terminada a batalha, as condições anteriores são repostas e os negócios voltam à normalidade. Business as usual.

O interesse que a Operação Lava Jato desperta deriva do fato de que ela, contra todos os prognósticos iniciais, parece fugir a esse roteiro. Quando se olha mais de perto, na verdade, é impossível não identificar a tensão no interior da operação entre uma ala facciosa tradicional, com claros interesses políticos, e uma ala republicana que quer passar o país a limpo sem aparentemente se dar conta da escala dos seus propósitos.

A Lava Jato tem o mérito inquestionável de abrir a caixa-preta das relações público-privadas no Brasil – algo que Faoro intuía, mas que não havia sido exposto tão escancaradamente. Mas, se o desfecho for aquele pretendido pela ala facciosa da operação, o que teremos é uma simples troca de comando do patrimonialismo. Corremos o risco de aniquilar o velho apenas para que ele ressurja.

[Errado, Haddad. As supostas “duas” alas da Lava Jato são igualmente perigosas. Aliás, não vejo essa diferença. As duas são facciosas. É muito fácil “abrir a caixa-preta das relações público-privadas” através da tortura de empresários e de uma espionagem sem paralelo na história nacional. ] 

O que complica ainda mais a situação é a relação entre o Judiciário e a mídia. O caráter contramajoritário do Poder Judiciário é pedra angular da República. Num certo sentido ele é ademocrático, pois resiste à maioria em nome da Justiça. A espetaculosidade dos processos em andamento deixa pouca margem para o desfecho desejável de saneamento de todos os partidos políticos e gradação das penas imputadas proporcionalmente ao delito.

[O que complica ainda mais? Nada disso! A promiscuidade com a mídia não complica nada, ela é o que destrói a justiça, o direito e o judiciário. Não acho que o termo contramajoritário seja o mais adequado para definir o Poder Judiciário. Em se tratando de proteger os privilégios, por exemplo, ele continua sendo absoluta e orgulhosamente contramajoritário. O judiciário apenas deixa de ser contramajoritário quando embarca nas narrativas da grande mídia. Pior: usa essa narrativa para se purgar de todo o seu comportamento contramajoritário em outras esferas. E não esconde isso. Tanto que, para condenar ou prender políticos e empresários graúdos, um dos principais argumentos do judiciário e de seus acólitos na mídia, tem sido pérolas do populismo penal: “pela primeira vez, prende-se políticos e empresários, etc”.

Entretanto, é também verdade que, se as prisões devem obedecer a uma narrativa pré-determinada, o caos provocado e o caráter acidental da vida obriga a mídia e o próprio judiciário a estarem sempre ajustando essa narrativa: a história pode sofrer variações, mas o final já está escrito: reduzir direitos, salários, reduzir a democracia e concentrar riqueza. ]

Vivi os bastidores de um episódio que merece relato. No dia 10 de março de 2016, participei de uma reunião com o ministro da Fazenda Nelson Barbosa, à qual estavam presentes diversas lideranças sindicais, alguns economistas, assessores e o ex-presidente Lula. O tema era economia, mas o debate enveredou pela política. Muitos de nós acreditávamos que o governo Dilma agonizava e não resistiria por muito tempo. Por semanas, tentávamos convencer Lula a assumir o governo na condição de ministro-chefe da Casa Civil e ouvíamos sempre a mesma resposta dele próprio: “Não cabem dois presidentes num só palácio.” Outro argumento contrário era de que a mídia tentaria caracterizar o gesto como busca de foro privilegiado, mesmo que àquela altura Lula não fosse réu. A relutância do ex-presidente à ideia foi enorme. Apenas depois de insistentes apelos, Lula concordou em conversar com Dilma sobre as condições da uma eventual ida para o governo – aceitas apenas depois de longa negociação. Anúncio feito, história conhecida: grampo ilegal de um telefonema impróprio, vazamento ilegal de uma conversa surreal e uma liminar que impede a posse. A Justiça fazendo política.

Se junho de 2013 foi o estopim do impeachment, em março de 2016 viria a pá de cal.

[Sim, Haddad. Absurdo, né. Seria tão bom se você tivesse dito naquele momento. Ou pelo menos usado, democraticamente, o seu cargo como prefeito para patrocinar seminários e debates para discutir isso. Não. Ficamos esse tempo todo órfãos. Todos os governantes do PT, que tinham instrumentos para ajudarem na luta, se recolheram, acovardados. ]

Bem antes que se sonhasse com a Lava Jato, tão logo assumi a prefeitura tomei medidas que feriram interesses das grandes empreiteiras. Não renovamos o contrato de inspeção veicular, o que deixou a empresa responsável pelo serviço – a Controlar, do grupo CCR, formado por Camargo Corrêa e Andrade Gutierrez – bastante contrariada. Vetei também artigos de lei do Plano Diretor que facilitavam a implantação de um aeroporto em Parelheiros, de interesse da Camargo Corrêa, além de desagradar a Odebrecht no caso da Arena Corinthians, já mencionado.

[O raciocínio aqui também me parece invertido, como se o objetivo da prefeitura de São Paulo fosse “ferir” os interesses das empreiteiras, e não proteger o interesse da população. Parece besteira, mas não é. Mais uma vez, estamos cedendo ao sectarismo religioso dos dallagnois. Ao fazê-lo, chancelamos a criminalização da política e da própria administração pública. Um país forte precisa de empreiteiras fortes. Não há nada mais idiota do que a ideologia lavajatense, que destruiu as melhores empresas nacionais. Agora, é evidente que o poder público deve obedecer, rigorosamente, aos ditames do interesse público e da ética, mas isso significa também fazer obras públicas, como ciclovias, estádios, aeroportos, estradas, etc, que irão de encontro ao interesse das empreiteiras. Evidentemente, Haddad quer mostrar que ele não é da turma dos políticos comprados pelas “empresas da Lava Jato”, mas é preciso tomar cuidado para não chancelarmos o golpe antinacional representando pela operação.]  

Nenhum desses casos, no entanto, supera a polêmica em torno do túnel Roberto Marinho. Ele é representativo de quanto o interesse público pode ser desconsiderado na relação da prefeitura com as empreiteiras. A obra foi suspensa logo no início da minha administração. Odebrecht, OAS, Camargo Corrêa, UTC, Andrade Gutierrez, Queiroz Galvão, Galvão Engenharia – o clube VIP das empreiteiras – compunham, duas a duas, os consórcios vencedores da licitação, dividida em quatro lotes. Tal divisão só havia se tornado possível graças a uma mudança na extensão do túnel promovida pela gestão Kassab. Dos 400 metros do projeto original, elaborado ainda na gestão de Marta Suplicy, chegou-se a longos 2,3 quilômetros na inflacionada versão final. Esse episódio, inclusive, põe em xeque a versão, contada por Mônica Moura em sua delação, de que a Odebrecht, sem meu conhecimento, teria pago parte da dívida da minha campanha assumida pelo PT.

Tendo sido eleito durante o julgamento do mensalão, sempre tive a clareza de que minha conduta tinha que ser exemplar. E minha passagem limpa pelo Ministério da Educação me dava confiança de que disporia de algum capital político para iniciar uma gestão inovadora na cidade. Afinal, o orçamento do MEC é o dobro do da cidade de São Paulo e no tempo em que estive à sua frente jamais se levantou qualquer suspeita sobre desvios de conduta.

Então, quando irrompe a crise da tarifa, imaginei que esse histórico pudesse ajudar. Pura ilusão. Apenas um mês depois da revogação do aumento da tarifa, pesquisas indicavam que eu havia perdido metade do apoio que tinha e já se questionava se seria capaz de me reeleger. Num final de tarde melancólico, sozinho na sala do meu apartamento no Paraíso, anoiteceu sem que eu me desse conta. “Pai, o que você está fazendo aí no escuro?”, perguntou meu filho Frederico ao chegar da rua. Disse a ele que estava pensando naquela situação toda e na dor de ver doze anos de dedicação à vida pública serem liquidados em seis meses de gestão à frente da prefeitura. Ele disse: “Mas, pai, ainda faltam três anos e meio de governo.” Respondi: “Eu sei, filho, mas aconteceu uma coisa muito séria e não há como não viver o luto.”

Minha intenção de ficar oito anos à frente da prefeitura provavelmente não se viabilizaria. Se a reeleição da Dilma não estava mais assegurada mesmo depois de dez anos de prosperidade, a minha reeleição parecia ainda mais distante. Agarrei-me àquilo que se mostrava a única vantagem. Tinha esses três anos e meio de mandato e poderia governar como se não houvesse outro. Pela experiência no MEC, sabia das vantagens do ciclo de oito anos na gestão pública: muitas políticas só se estabilizam com o tempo. Mas a história dificilmente me permitiria repetir a dose. Então tive que achar graça no curto prazo.

Para minha surpresa, 2014 foi um ano extraordinário para a Prefeitura de São Paulo. As coisas efetivamente aconteceram. Ocorreram mudanças estruturais que vão beneficiar a cidade por muitos anos. A primeira delas, a obtenção do grau de investimento, a partir sobretudo da exitosa renegociação da dívida com a União. A segunda foi a aprovação do PDE, o novo Plano Diretor Estratégico, que definiu as diretrizes do desenvolvimento urbano e possibilitou que os planos setoriais fossem deflagrados nas áreas de habitação, mobilidade, saúde, educação e cultura. Registraram-se ainda recordes na criação de vagas destinadas à educação infantil, na criação de faixas e corredores de ônibus e ciclovias, na construção de hospitais-dia, na extensão da coleta seletiva e na instalação de lâmpadas LED, entre outros. A cidade começou a responder favoravelmente. Atingimos em quatro anos, apesar da brutal recessão que assolou o país, o maior montante histórico de investimentos em valores absolutos. Em 2014, era possível sentir certo frescor nas ruas, sobretudo durante a campanha presidencial. Perto do fim do ano, nosso governo tinha recuperado parte da avaliação positiva. Começamos a sentir que tínhamos alguma chance. Depois da execução sumária de 2013, era quase uma ressurreição. Fizemos uma reunião de secretariado em que as pessoas manifestaram otimismo.

Entretanto, a crise que se instalou depois da reeleição de Dilma faria o pesadelo de 2013 parecer um sonho erótico.

No final de 2013, num encontro com o presidente Lula, com a discrição que o caso requeria, perguntei se ele, passados três anos desde que tinha deixado a Presidência, conseguiria projetar a situação do país dali a cinco anos. Ele me perguntou por que cinco anos. E eu lhe disse que esse era o tempo que ainda restaria a Dilma para governar o país no caso, que me parecia muito provável, de sua reeleição. Ele me respondeu com o corpo: cotovelos colados à cintura, palmas viradas para cima e uma expressão facial que indicava “Não sei” ou, talvez, “Quem é que sabe?”.

Poucos meses depois, cruzei com João Roberto Marinho descendo as escadas do Instituto Lula. Cumprimentei-o e segui para o encontro com o presidente. Perguntei a ele o motivo daquela visita. Era uma sondagem para que Lula fosse o candidato à Presidência em 2014, no lugar de Dilma.

[Essa é uma informação muito importante. Não tanto pelo desejo de João Roberto Marinho de que ele, Lula, fosse o candidato, e não Dilma, porque me parece impreciso e vago. Não sabemos o que Marinho falou para Lula, mas apenas o que Lula contou para Haddad. A informação importante é que João Roberto Marinho frequentava o Instituto Lula. Isso mostra que os Marinho são ainda mais cretinos do que imaginamos, porque eles vem chancelando toda essa satanização contra alguém que era um importante mediador entre eles, representantes máximos da elite financeira e midiática, e a base social organizada do povo brasileiro. Eles sabiam que Lula sempre foi um elemento fundamental para a estabilidade política brasileira. Eles sabem muito bem, portanto, que a perseguição a Lula e a tentativa de tirá-lo, por vias desonestas, do jogo eleitoral, apenas agregará mais um elemento de instabilidade à política nacional. ] 

Mais explícito foi o movimento feito por Marta Suplicy, que chegou a organizar um jantar de “Volta, Lula”.

O ex-presidente nunca mexeu um dedo, muito pelo contrário, nem por um terceiro mandato, nem pelo “Volta, Lula”. Dilma quis ser e foi candidata à reeleição e venceu o pleito como previsto. E, a não ser pelos dois ou três dias que antecederam a eleição, quando mídia e redes sociais ferviam com denúncias e boatos de toda ordem, e fac-símiles de uma capa da revista Veja distribuídos por toda a periferia da cidade, não imaginei que a vitória pudesse estar em risco.

O que me surpreendeu foi a pós-eleição. As principais lideranças do PSDB se dividiram: Aécio começou a trabalhar por novas eleições; Serra, pelo impeachment; e Alckmin, grande vencedor do pleito de 2014, pela normalidade institucional até 2018, cenário que mais lhe favorecia.

O movimento mais visível foi o de Aécio. Pediu recontagem dos votos, ação pela cassação da chapa Dilma–Temer por abuso de poder econômico, mobilizou todos os argumentos para que o resultado das urnas não fosse aceito. A tensão aumentava a cada dia.

Convidei FHC para um almoço na prefeitura. Dias depois, fomos juntos ao Theatro Municipal. Queria entender melhor o que ele pensava. Concordamos sobre a gravidade da crise. Mas meu diagnóstico sobre seu desenrolar se mostrou totalmente errado. A certa altura do almoço, arrisquei: “Ela não governa, mas vocês não a derrubam.”

A unidade do PSDB a favor do impeachment foi construída com a participação de FHC. Alckmin, o último que resistia à ideia, finalmente foi enquadrado e a tese de Serra saiu vitoriosa.

Ao longo do ano de 2015, Serra trabalhou intensamente pela causa. Seu papel no impeachment foi subestimado. O ex-governador tucano aproximou-se muito de Michel Temer e lhe garantiu apoio. Era Serra quem telefonava para os governadores, sobretudo do Nordeste, e depois de uma conversa política passava a ligação a Temer, que a concluía com a senha “Precisamos unir o Brasil”. A articulação de Miguel Reale Jr. e Janaina Paschoal com Hélio Bicudo, autores do pedido de impeachment contra Dilma, teve participação direta de Serra. E, no final de 2015, a ida de Marta para o PMDB foi acertada no Senado com a participação de Serra. A estratégia servia a dois propósitos: garantia o voto da senadora pelo impeachment e criava uma candidatura competitiva alternativa à minha na periferia. (A candidatura de Erundina pelo PSOL complicaria ainda mais o quadro já fragmentado e abriria uma avenida para João Doria.)

Após as eleições de 2014, diante das investidas do PSDB contra o resultado das urnas, me parecia evidente que Dilma não se sustentaria sem o PMDB. E, de fato, até certo momento, todas as declarações do PMDB eram no sentido de dar suporte ao governo Dilma, tanto por parte de Temer quanto de Eduardo Cunha. Procurei o então vice-presidente. Tinha com ele boa relação. Propus, então, em nome de uma aliança PT/PMDB para 2016, a vinda de Gabriel Chalita para a Secretaria Municipal de Educação. Conhecia Chalita havia muitos anos e reconhecia seu enorme talento para o diálogo com o magistério. Chalita, é bom lembrar, não concorreu à reeleição para deputado federal em 2014. Desde 2012, seu interesse pela política diminuiu. Entre o primeiro e o segundo turnos da eleição, a campanha de Serra, sabendo do apoio que ele me daria, forjou um dossiê com uma dezena de acusações ridículas e as encaminhou ao Ministério Público. Foram meses de transtorno até que os inquéritos fossem arquivados. Mas, diante das perspectivas que se abriram, Chalita animou-se com o acordo – celebrado na presença de Temer e de Lula.

Enquanto fazíamos esse gesto de aproximação com o PMDB no âmbito municipal, o governo federal movimentava-se na direção oposta. Com a intenção de tentar diminuir o espaço de atuação do PMDB no governo, o Planalto fortaleceu meu principal adversário em São Paulo, Gilberto Kassab, nomeando-o ministro das Cidades. Kassab depois daria o tiro de misericórdia em Dilma, pelas costas.

[É impressionante como Haddad é parecido com Dilma, e não me refiro às qualidades dela. Ao cogitar entregar a pasta de Educação a Chalita em troca do apoio do PMDB ao governo federal, Haddad demonstrou que não entendeu ainda o trem que nos atropelou. O PMDB não abandonou o governo por falta de gestos do governo. Dilma entregou tudo ao PMDB, até mesmo aos aliados de Cunha. O que faltou a Dilma, assim como a Haddad, foi apoio na sociedade. Se houvesse mais apoio na sociedade, o PMDB talvez recuaria do impeachment, ou o impeachment ficaria ainda mais caro do que já foi. ]

Como se não bastasse essa malfadada intervenção na base aliada, o governo deu uma guinada na política econômica, com a nomeação de Joaquim Levy. Era evidente que ajustes tinham que ser feitos porque, entre outras coisas, o governo tinha comprado uma agenda equivocada, elaborada em parte pela Fiesp: desonerações, redução da tarifa de energia elétrica, swap cambial, administração de preços públicos etc. Em vez do ajuste, entretanto, veio um giro de 180 graus. Ainda assim, é certo que a retração econômica jamais teria sido a maior da história não fossem os efeitos multiplicadores da crise política e sua pauta-bomba fiscal, potencializados pela Lava Jato.

[Sim, Haddad faz uma análise correta: os efeitos multiplicadores da crise política, da pauta bomba fiscal e da Lava Jato foram determinantes. Faltou apenas apontar que havia uma agenda em comum. A Lava Jato atuou, deliberadamente, em parceria com os articuladores da crise política. E Joaquim Levy foi o pior ministro da economia possível. É realmente impressionante o poder da mídia de produzir essas mistificações. Qual o resultado da atuação de Levy? Queda na arrecadação, queda no PIB, desemprego, crise política, perda de popularidade, sentimento de frustração do eleitorado, golpe… Ele apenas é pintado como heroi pela mídia porque, de certa forma, ajudou a destruir o governo. Seria muito interessante se Haddad entendesse isso.]

Crise econômica, crise política, crise ética: as maiores do gênero. Crises sobrepostas que se retroalimentavam. O impeachment foi construído por engenharia jurídica reversa. Quem se importava se havia ou não crime de responsabilidade? Sem crime de responsabilidade e, portanto, sem cassação dos seus direitos políticos, Dilma foi afastada definitivamente da Presidência pelo Senado, em 31 de agosto de 2016, numa afronta ao texto constitucional. Pouco antes, em 29 de julho, Lula se tornava réu pela primeira vez. Nas semanas seguintes ao impeachment, um de seus ex-ministros, Antonio Palocci, teve prisão decretada em 26 de setembro. Outro ex-ministro, Guido Mantega, teve a prisão decretada e relaxada no mesmo 22 de setembro. Tsunami sincrônico ao período eleitoral.

Quando jornalistas me perguntam a que atribuo minha derrota em 2 de outubro de 2016, contenho o riso e asseguro: “Faltou comunicação.”

[Sim, faltou comunicação, e não há razão para riso. Mas talvez Haddad ainda não entenda, como parece ser a maldição do PT e da esquerda em geral, que comunicação não é propaganda, não é assessoria de imprensa. Comunicação é uma via de ida e volta: o governante fala ao povo, e o povo fala ao governante. ]

Por trás do golpe parlamentar, o possível fim da Nova República. O que está em jogo é o pacto de 1988, expresso na Constituição. Por ironia, o partido que não assinou a carta constitucional, por considerá-la tímida demais, foi o único que lhe deu consequência. O governo Temer exerce um poder desconstituinte, com agenda política que jamais passaria pelo crivo do voto popular. Até a eclosão da nova crise patrocinada pela delação da JBS, o governo federal vinha promovendo contrarreformas em ritmo revolucionário. Em função do calendário, parecia editar a cada semana um Ato Institucional diante de um Congresso de joelhos, que não revela a quem presta contas.

[Esse trecho resume brilhantemente o que estamos vivendo nos dias de hoje.]

O atual emparedamento de Temer coloca o país diante de um impasse, cujo desfecho ainda não é claro no momento em que concluo este texto. Só em 2018, se tudo der certo, saberemos se o Brasil do século XXI cabe no figurino da República Velha. Saberemos se o trabalhador que sentiu pela primeira vez a brisa ainda tênue da igualdade e da tolerância saberá prezá-la e cultivá-la.

Lula terá no próximo pleito papel central. A política brasileira organiza-se em torno dele há quatro décadas. Desde o final dos anos 70, é o personagem mais importante da história brasileira. Tudo o mais é circunstancial. A própria eleição de FHC foi obra do acaso – como o próprio reconhece. Lula participará da sua oitava eleição presidencial, seu nome estando ou não na urna eletrônica. Independentemente disso, as eleições do ano que vem podem se dar na arena da grande política ou num programa de auditório. A escolha está sendo feita agora.

[Acho um erro estratégico pôr tanto peso na figura de Lula, porque isso facilita o trabalho da direita antinacional. É um absurdo dizer que, tirando Lula, “tudo mais é circunstancial”. Não devemos jamais subestimar a ação coletiva da história. Lula é o resultado dessa ação coletiva. Ele é o maior líder popular do Brasil, mas passará e o povo brasileiro irá continuar, vivendo, lutando, construindo, e esmagando os malditos golpistas!]

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