Guerra legítima? Iludidos, opiniáticos têm de rever às pressas posições pró-Putin eivadas de ingenuidade, má-fé e desinformação

Não há legitimidade em guerras. Nelas, alguém sempre busca subjugar a verdade. É melhor assumir as dúvidas do que expor certezas gasosas. Tudo muda

(Foto: Reuters)


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Por Luís Costa Pinto, do 247 – Para seguir adiante, é necessário que os adeptos e advogados do que viam ser “a insurgência avassaladora de um mundo multipolar” a partir daquilo que imaginavam “uma jogada de mestre” de “um gênio” da diplomacia linha-dura façam autocrítica. Assim eles se referiam à invasão e aos ataques russos à Ucrânia liderados por Vladimir Putin, daí as aspas.

Espantado, surpreendi-me quando identifiquei boas cabeças, detentoras de ideias interessantes em outros momentos, a esse viés ingênuo e apressado de tirar conclusões sobre a dinâmica dos fatos. A História passava ante os olhos deles, e estavam despreparados para opinar. Em socorro da própria ignorância, passaram a atacar, então, os adversários de suas teses: seriam os “desinformados” ou forjados pelo “imperialismo”. Eu estava incluído entre eles, medido pelo sarrafo de tais opiniáticos de esquerda. Exibiam contra mim, em alguns casos, até o olhar parvo dos que têm certezas absolutas e instantâneas ante qualquer coisa.

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A expressão “imperialismo”, ou ver alguém acusando outro de “imperialista” em debates sérios – como alguns que foram travados nos curso dessa guerra que já dura quase seis dias –, causa-me um misto de enfado, urticária e vergonha alheia. Como carrego já alguma experiência de mais de três décadas comprando brigas por ideias, resignei-me ao rol de dúvidas que a gente aprende a ter com o tempo, fazendo-as sufocar as certezas rasteiras.

Será impossível avançar sem responder às perguntas básicas que seguem:

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  1. Usar força militar exógena para fazer uma Nação livre “regressar ao arranjo político pré-2014, com governos pró-Moscou”, é ato defensável por democratas?
  2. Imaginando que o delírio russo de “vim, vi e venci” fosse completado em 48 a 72 horas, como Putin ambicionava, o que seria feito de uma Ucrânia derrotada? Anexada ao território russo, tornar-se-ia um apêndice no mapa-múndi? Volodymyr Zelensky, o comediante despreparado que venceu as últimas eleições presidenciais com 73% dos votos embalado numa retórica anti-russa, entregaria o cargo a um governo militarizado pró-Moscou desenhado por Vladimir Putin e isso seria aceitável?
  3. Especulando agora sobre um desastre total do Exército do autocrata moscovita, como fazer as fronteiras ucranianas regressarem ao padrão de tensão sob controle anterior à invasão e aos ataques ordenados em Moscou? Será possível fazê-lo sem estabelecer uma nova "cortina de ferro”, desta feita assentada em armas blindadas e munição pesada que lhe darão contornos reais e dramáticos?
  4. A liderança e a admiração interna da qual Vladimir Putin supunha desfrutar na Rússia, ou impõe com a força dos autocratas que não piscam antes de reprimir e assassinar adversários e críticos de seu regime, chancelaria bovinamente os avanços bélicos sobre território ucraniano? Ou a demora em anunciar uma “vitória” que era pretendida com rapidez tão impossível quanto irresponsável, mina por dentro a sociedade russa? O movimento das placas tectônicas internas da sociedade russa pode levar a uma implosão do Estado sob Putin?
  5. Vladimir Putin tem controle total e absoluto do Exército russo? 

Não tenho respostas para essas questões – e duvido de quem diga que as tem. A começar pela de número 5, que poderia ser simples. Tem?

Às vésperas da queda do muro, a Berlim dividida era uma realidade concreta. Tudo se desmanchou no ar, numa noite

Estive em Berlim em maio de 1989, meses antes da queda do muro que dividia a cidade e o mundo em dois lados. O “ocidental”, controlado por comandos militarizados de Estados Unidos, França, Reino Unido e República Federal da Alemanha (FDR). E o “oriental”, sob o comando da União Soviética como mediadora das ações da República Democrática da Alemanha (DDR). Tudo soava falso ao jornalista de 19 anos, em formação ainda, que se sentia privilegiado por transitar in loco pelos dois lados da propaganda ideológica.

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A iluminação feérica da Kurfürstendamm já não escondia a decadência de uma avenida que pretendia ser a vitrine do capitalismo. Mas, a imponência de uma KDW cintilante e exibindo coloridos e marcas jamais permitidos aos “orientais”, os cruzamentos pujantes de linhas de U-bahn com S-bahn, os metrôs de subsolo e de superfície da cidade-Estado, corriam para esconder a sensação. O olhar perturbadoramente triste dos berlinenses do oeste dizia muito.

O vazio de concreto da Alexandreplatz, pontuado por alguns escombros de bombardeios da 2ª Guerra Mundial, e a imponência da torre da TV estatal da Alemanha Oriental, marcada pela esfera metálica ornada com poliedros, reafirmava a sinistrude do ar no leste europeu. 

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Cruzar o checkpoint Charlie, o Portão de Brandemburgo, era como atravessar o portal entre dois sistemas – e ambos eram arrogantes em perseverar nos seus erros. Determinada noite, uma amiga insistiu para irmos à estação Zoo do metrô, do lado ocidental. Queria conhecer o local descrito por Christiane F., a protagonista de uma biografia blockbuster que seguia fazendo sucesso planetário. 

Terminei a excursão urbana às 6h, escutando um saxofonista solitário tocar Charlie Parker num dos corredores do subsolo da Siegessaüle, a Coluna da Vitória encimada por uma deusa alada. Os acordes nostálgicos daquele começo de manhã de maio consolidaria a forma como eu iria compreender no futuro o que já se passava. Deixei a Alemanha por Bonn, a pacata e linda capital barroca de uma Alemanha Ocidental que, tinha certeza, perduraria distante por décadas de sua contra-face separada pela guerra. 

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Em 9 de novembro daquele 1989, depois de uma notícia mal interpretada pelos difusores oficiais de informações de Berlim Oriental, espalhou-se o comunicado de que passava a ser imediata a concessão de vistos para berlinenses que desejassem transitar livremente pelos dois lados da antiga capital alemã. O muro caiu numa noite. Administrada até então pelos vitoriosos da 2ª Guerra e símbolo da impotência e do subjugo dos derrotados, Berlim se reunificou antes da própria Alemanha.

Voltei a Berlim em 1993, comprei um “‘pedaço do muro” sabendo que muito provavelmente era apenas um naco de concreto sujo de tinta. Decidi guardar a lembrança como alerta constante de que as dúvidas ensinam mais, e contam mais fielmente os fatos, do que as certezas imediatas assentadas na arrogância ingênua. 

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Espero que os advogados da tese de “guerra legítima” na Ucrânia encontrem rapidamente o Muro de Berlim de suas convicções, derrubem-no e abracem as dúvidas. Elas são mais sábias.  

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