Greve contra Lula e a lição de Jorge Maravilha
"Sim, é preciso cobrar o governo Lula em favor da classe trabalhadora. Entretanto, não adianta apenas lutar. É preciso vencer a luta", diz Miguel do Rosário
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Esse debate conhecemos bem, e para isso valerá a experiência anterior, de termos já vivido, por três mandatos e meio, sob administrações petistas. Mas não só. Também temos hoje, à nossa disposição, alguns séculos de história, devidamente catalogados, interpretados, discutidos, analisados.
Uma conhecida liderança do movimento de entregadores de aplicativo veio às redes anunciar uma greve, reinvindicando melhores condições de trabalho para 1,5 milhão de brasileiros (segundo pesquisa da Universidade Federal do Paraná) que hoje vendem seu tempo para grandes empresas do setor.
Sim, é preciso cobrar, pressionar, o governo Lula, para que se movimente em favor da classe trabalhadora. Sem luta, não se conquista nada nesse mundo, e isso vale sobretudo para as camadas mais humildes, que são historicamente desorganizadas, divididas, manipuláveis, e que, por isso mesmo tem sido exploradas por grupos oportunistas há milhares de anos.
Entretanto, não adianta apenas lutar. É preciso sobretudo vencer a luta. Política é diferente de esporte. A ética do esporte se fundamenta no lema “o importante é competir”. Política está mais próxima da ética da guerra, onde o que está em jogo é a vida e a morte de seus participantes.
Como ficou mais do que claro durante a pandemia, a má política pode matar. A boa política, por outro lado, salva vidas, oferece oportunidades, traz crescimento econômico e felicidade.
O primeiro grande adversário de Marx, aquele contra o qual ele dedicou o seu primeiro livro, Miséria da Filosofia, não foi nenhum intelectual burguês, e sim o bravo e generoso Proudhon. E por que Marx atacou Proudhon de maneira tão dura, até mesmo com requintes de crueldade?
Marx inaugurava o que depois veio a ser conhecido como “socialismo científico”, ou seja, o socialismo que se levava a sério, que acreditava realmente nas possibilidades de vitória. Marx detona a ingenuidade de Proudhon como resultado de uma interpretação pobre, irrealista, pouco científica, dos problemas econômicos e sociais do mundo de então.
E o que é o socialismo científico hoje? Certamente não é nenhum teatro de “greve” ou rebeldia em rede social.
O governo Lula acaba de tomar posse, derrotando a mais terrível e desonesta campanha jamais vista na história de nossa democracia. Em todas as suas manifestações, o presidente Lula e seus apoiadores deixaram sempre claro que será um governo democrático, preocupado em melhorar a renda dos mais pobres, elevar a massa salarial, oferecer, em suma, melhores condições de trabalho para todos, incluindo aqueles que trabalham em aplicativos.
Planejar uma greve de trabalhadores de aplicativo contra o governo seria apenas um ingênuo e irresponsável tiro no pé, e por tantas razões que seria até cansativo enumerá-las. Mas vamos lá. A análise não vale apenas para entregadores de aplicativo, mas para todos os trabalhadores.
A primeira razão é de ordem prática. Não se faz greve para posar nas redes sociais que se fez greve. Quando Lula organizava as graves no ABC paulista, era uma ação organizada por sindicatos altamente profissionais e experientes, e num setor essencial para as finanças da ditadura. A greve também oferecia um significado político, de enfraquecer um governo militar que, desde 1964, vinha reduzindo o poder de compra da maioria dos trabalhadores.
O setor de aplicativos emprega muita gente, mas não é essencial para a economia do país. As últimas greves de entregadores de aplicativo quase não foram sentidas pelo conjunto da sociedade.
O que fazer, porém?
A resposta mais direta e mais simples é: organizar-se. A luta dos trabalhadores é a luta mais importante da humanidade, e por isso tem de ser aquela conduzida com mais inteligência, estratégia e responsabilidade. É preciso antes de tudo acreditar na política e na democracia, porque foram os trabalhadores pobres que inventaram a democracia.
Os trabalhadores de aplicativo precisam, antes de tudo, criar organizações próprias, que sejam respeitadas pela própria categoria. Essa me parece a primeira demanda a ser feita para o governo, que lhes ajude a construir um novo sindicalismo, que lhes dê instrumentos adequados à sua luta.
O novo ministro do Trabalho, Luiz Marinho, poderia ser abordado por esses trabalhadores, para que criasse algum tipo de estrutura específica para abrigar as suas demandas. Uma secretaria dos Trabalhadores em Aplicativos, por exemplo, que seria responsável iniciamente por ações bastantes práticas, como auxiliar esses brasileiros a planejar planos próprios de previdência social, oferecer espaços de descanso e alimentação nas capitais e principais cidades, ajudar na negociação com companhias de seguro para manutenção de seus veículos, e, o mais importante, assessorá-los a abrir canais de diálogo com as grandes corporações que dominam o setor, para melhorar o pagamento por serviço.
O instrumento de greve jamais deve ser vulgarizado. Em muitas situações, todavia, se tornou um instrumento ultrapassado, que serve mais ao jogo interno e simbólico de grupos de pressão, do que a uma estratégia consequente para a conquista de mais direitos.
O governo Lula deve enfrentar todo o tipo de greves perigosas e desgastantes, especialmente em setores dominados pela direita, como na segurança pública e transporte de carga pesada.
Haverá necessidade de organizarmos, desde já, a classe trabalhadora, por isso mesmo, não para ajudar a derrubar um governo popular, progressista, de esquerda, mas com o objetivo exatamente oposto, para fortalecê-lo e prepará-lo para os embates políticos com os setores mais reacionários da burguesia nacional.
Foram os trabalhadores pobres que inventaram a democracia. Foram os trabalhadores pobres que sempre defenderam as leis.
Engels, num dos prefácios ao clássico Luta de Classes na França, parece se surpreender com essa descoberta, desse aspecto pró-legalista da classe trabalhadora, por causa de seu aspecto irônico, no ambiente sempre conturbado e revolucionário da Europa de seu tempo, em que os trabalhadores organizados viam a si mesmos e eram assim também descritos por seus inimigos da burguesia, como “subversivos”.
“A ironia da história mundial vira tudo de cabeça para baixo. Nós, os ‘revolucionários’, os ‘sublevadores’, conquistamos muitos mais direitos sob os meios legais do que sob os ilegais e a sublevação. Os partidos da ordem, como eles próprios se chamam, entram em decadência no Estado de Direito criado por eles mesmos. E choram, desesperados, sob a legalidade, valendo-se das palavras de um de seus líderes: “la legalité nos tue”, a legalidade nos mata, ao passo que, sob essa mesma legalidade, nós, os trabalhadores, ganhamos músculos rijos e faces rosadas, e temos a aparência da própria vida eterna. E se nós não formos loucos a ponto de nos deixar levar para as ruas só para agradá-los, acabará não lhes restando outra saída senão violar pessoalmente que lhes é tão fatal”.
Diante dos acampamentos golpistas na frente dos quarteis, financiados por grandes empresários, apoiados por grupos políticos de extrema-direita, como essas palavras de Engels nos parecem atuais!
Os trabalhadores de aplicativo, portanto, assim como todos os trabalhadores, devem aproveitar ao máximo o ambiente democrático proporcionado pela vitória de Lula para se organizar, se fortalecer, com vistas não a “derrubar o governo”, mas exatamente o oposto: defender a Constituição de 1988, que assegura direito a dignidade a todos os cidadãos, fortalecer um governo progressista e antifascista, ampliar o apoio social à sua luta, ajudar a si mesmos, ajudar o país a se desenvolver e se tornar um lugar mais agradável e justo para todos.
Lembrando um frase do Alcorão, que sempre achei deliciosamente dialética e profunda: “Quem luta por Alá é por si mesmo que luta!”
Ah, sobre o título do post, é apenas um alerta que existe na letra de uma linda canção de Chico Buarque, e que vale também para pretensos “revolucionários” de internet, que já afiam as garras para “combater” o governo Lula. Trata-se de um governo recém-eleito, no qual se depositam grandes esperanças, tremendamente popular junto ao mesmo público que eles querem mobilizar. Ou seja, o “webrevolucionário” pode não gostar de Lula, mas “a sua filha gosta”…
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