Giovanna Ewbank e o privilégio de uma branquitude que pode combater o racismo na porrada
Malcolm, Djonga ou qualquer outra mulher preta que defendesse os seus filhos como Giovanna o fez teriam a sua reação questionada
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Quando Malcolm X disse que considerava autodefesa reagir com violência contra o racismo sofrido, ele foi considerado perigoso, subversivo e foi assassinado por isso. Quando Djonga conclama o público presente no seu show a gritar “fogo nos racistas”, ele é considerado violento e a justiça condena o uso da sua frase nas redes sociais. Quando Giovanna Ewbank xinga uma racista que ofendeu os seus filhos adotivos, cospe na sua cara e ameaça agredi-la fisicamente, ela é considerada uma heroína no combate ao racismo. Malcolm, Djonga ou qualquer outra mulher preta que defendesse os seus filhos como Giovanna o fez, teriam a sua reação questionada e estariam sendo aconselhados a terem mais calma diante da situação. Afinal, não é assim que se resolve as coisas e violência só gera mais violência. Namastê!
O posicionamento de pretos “odiosos” e “raivosos” como Malcolm e Djonga não costumam despertar tanta empatia na branquitude quanto a reação, diga-se de passagem, legítima, de Giovanna Ewbank. É sobre mais esse privilégio da branquitude que pretendo provocar uma reflexão nesse artigo. O de poder tornar a violência uma forma legítima de ação e de defesa quando isso lhes convém. O caso dos filhos de Giovanna e Bruno Gagliasso, e de outros 15 cidadãos angolanos, incluindo outras crianças, que foram ofendidos por uma mulher portuguesa dentro de um restaurante de luxo na Costa de Taparica, em Portugal, é apenas mais um recorte do racismo diário e sistêmico ao qual pretos e pretas são submetidos dentro da nossa sociedade. A diferença é que nem todos nós somos filhos adotivos de um casal rico e famoso.
Titi e Bless, os filhos de Giovanna e Bruno, tendo um poder econômico e social que os defenda, são exceções a uma regra que, geralmente, é clara e costuma punir duplamente as vítimas de um crime racial. Um exemplo dessa regra, é a decisão do Tribunal de Justiça de Minas Gerais que absolveu dois torcedores do Atlético Mineiro acusados de terem praticado racismo contra um segurança do estádio do Mineirão, por ter considerado o crime cometido por eles uma reação revoltada motivada por uma “crescente e justificável ira”. Os Desembargadores responsáveis pelo caso ainda acrescentaram que “o ato de racismo foi, em alguma medida, provocado pela própria vítima". Ou seja, o judiciário brasileiro acaba de inaugurar um excludente de ilicitude para os crimes de racismo, quando este é praticado sob violenta emoção, em legítima defesa ou em estrito cumprimento do dever estrutural de ser racista. Talvez, fosse o caso de Djonga mudar a sua frase para “fogo na justiça”.
Seguindo a nossa reflexão, é importante frisar que Giovanna Ewbank, apesar de estar defendendo duas crianças negras, que são seus filhos adotivos, o fez em defesa, também, da sua honra enquanto mulher branca, rica e famosa que não admite ser tratada com inferioridade. Conforme já disse anteriormente, a sua reação é legítima, como mãe e como cidadã. Porém, isso não faz dela, como muitos já estão dizendo por aí, um exemplo na luta antirracista. É preciso lembrar que a euforia leva a debilidade. E debilidade nesse caso seria a ausência de criticidade diante dos fatos. Heróis e heroínas na luta contra o racismo são os pais e mães pretos e pobres que tentam defender os seus filhos pretos e pobres do preconceito racial nosso de cada dia, sem terem poder econômico e midiático para repercutir as suas agruras e provocar empatia coletiva para os seus sofrimentos.
Será que Giovanna Ewbank reagiria da mesma forma se as crianças vítimas de racismo não fossem os seus filhos? Quantos brancos nós já vimos reagir violentamente ao presenciarem uma criança preta sofrendo racismo? E não me diga que nunca viram isso acontecer. E aí, eu evoco o pacto narcísico da branquitude, tese de doutorado da psicóloga e ativista Cida Bento, que fala a respeito da convergência de sujeitos brancos em face da defesa dos seus privilégios e sobre o conceito de agressividade e arrogância que elas impõem sobre pessoas pretas que “ousam” a se afirmar em posição de igualdade com os brancos, não aceitando o seu devido lugar de subserviência determinado pela estrutura socia estabelecida. Isso explica o porquê de a reação de Giovanna ter sido vista como normal, e a de outra mulher preta, ainda que rica e famosa como ela, não ser encarada da mesma forma e nem gerar tanta empatia e solidariedade.
Quando Ewbank despeja a sua raiva contra a mulher que chamou os seus filhos de “pretos imundos” e dispara um “vamos passar por cima dos racistas”, ela está propondo o mesmo que Malcolm X e Djonga, só que de um lugar diferente e com um estereótipo racial que lhe garante se posicionar de maneira mais contundente, sem ser interpretada como agressiva e raivosa. Vou além. Quando se tornarem adultos, se Titi e Bless regirem como a mãe diante de uma situação semelhante acontecida com os seus filhos, eles não serão vistos como heróis e nem despertarão a mesma empatia na branquitude que está exaltando Giovanna. O racismo estrutural não permite que eles, mesmo tendo pais brancos, sejam vistos ou se posicionem como el es. Eles serão vistos como os pretos que, apesar da “educação branca” que receberam, não deixaram de ser raivosos e agressivos.
Giovanna e Bruno Gagliasso não se tornaram pretos porque adotaram crianças pretas e nem entenderão, de fato, o racismo inevitável que elas e outros pretos sofrem e sofrerão ao longo da vida. Principalmente, quando esses estão inseridos em um ambiente social que nunca os privilegiou. O dia em que todas as vítimas de racismo puderem reagir com justa violência e agressividade ao crime cometido contra elas, sem serem julgadas como selvagens e odiosas, poderá se dizer que o racismo está sendo combatido. Até lá, e enquanto tivermos Desembargadores que classifiquem a prática de um crime racial como legítima defesa do criminoso, não poderemos nos considerar uma sociedade antirracista. Haja fogo e cusparada!
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