Freud, Bobbio e os idiotas da meritocracia

Premiar o mérito, ou premiar por mérito, é louvável. Instituir a meritocracia como política de Estado é ignorar o fosso de onde a maior parcela da sociedade é lançada para a vida



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A despeito dos desvendamentos propiciados por Sigmund Freud, a mente humana ainda é misteriosa. Sabemos que o subconsciente guarda coisas do arco da velha, que se externam de formas variadas para estupefação dos que nos cercam e de nós mesmos. Remorsos, traumas e indignações trancados a sete chaves podem vir à tona quando menos se espera. Somos vulcões adormecidos, mas ainda assim passíveis de erupção.

Talvez a maneira com que reagimos aos fatos do dia a dia encontre explicação no subconsciente, nada sobrenatural, mas plenamente explicável pela psicanálise. Há relação entre Freud e a máxima sociológica de que somos fruto do meio em que fomos gerados, no qual nascemos e crescemos. 

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O preâmbulo ajuda a explicar por que a meritocracia é a maior falácia contemporânea, salvo em ambientes específicos, escolares ou corporativos, em que os atores estejam nivelados no ponto de partida.

A constatação é simples e óbvia, e o exemplo é corriqueiro porém seminal. Jovanir nasceu na favela do Quixopró Seco, pai negro e detento, mãe negra e semiescrava doméstica. Aristeu veio à luz no bairro Jardim D’Oro, pai branco e executivo de multinacional já herdeiro de família abastada, mãe branca “bem nascida”, formada em psicologia mas dedicada exclusivamente ao filho e ao marido. Jovanir e Aristeu nasceram nos mesmos ano, cidade e país. 

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O idiota pregador da meritocracia citará exemplos de Jovanires que alcançaram êxito socioeconômico, até de Jovanires que se tornaram doutores, alguns celebridades. Mas se trata de um idiota, e idiotas não percebem que fenômenos individuais apenas confirmam a regra da exclusão social – a quase totalidade dos Jovanires é apresentada ao crime como única opção de vida.

O idiota da meritocracia é também um hipócrita por passar pano em Aristeu, filhinho de papai que deu em nada. Estudou nas melhores escolas, frequentou os melhores clubes (argh!), cultivou as amizades indicadas pela mãe e, no fim, tornou-se um playboy sem coluna vertebral, consumidor da droga vendida na favela de Jovanir. De outra parte, claro está que a maioria dos Aristeus permanecerá no cume da pirâmide social, bem como seus descendentes.

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Talvez os arautos da meritocracia sofram de déficit semântico. Quando se alcança a preponderância por mérito num ambiente específico, fez-se justiça. Ao se apreogar o mérito pessoal como base de um sistema elitista - meritocracia, enfim - trabalha-se para a perpetuação da desigualdades.

Premiar o mérito, ou premiar por mérito, é louvável. Instituir a meritocracia como política de Estado é ignorar o fosso de onde a maior parcela da sociedade é lançada para a vida.

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Não por acaso a meritocracia é bandeira da direita, cujo único objetivo é o sucesso pessoal, pouco importando o desenvolvimento da sociedade como um todo. A situação é bem explicada por Norberto Bobbio em “Direita e Esquerda”, livro que descreve as diferenças entre uma e outra mediante conceitos contemporâneos, livres dos dogmas que as definiram na primeira metade do Século XX.

Assim escreveu Bobbio: “Embora reconhecendo a dificuldade de distinguir as ações pelas quais um indivíduo pode ser responsabilizado, como sabe qualquer juiz encarregado de decidir se tal ou qual indivíduo deve ser considerado culpado ou inocente, é preciso no entanto admitir que o status de uma desigualdade natural ou de uma desigualdade social derivada do nascimento em uma família e não em outra, em uma região do mundo e não em outra, é diferente do status de uma desigualdade que depende de capacidades diversas, da diversidade dos fins a serem alcançados, da diferença de empenho empreendido para alcançá-los. E a diversidade do status não pode deixar de ter uma influência sobre o tratamento dado a uns e a outros por parte dos poderes públicos”.

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Freud esclareceu em parte nossas condutas, nossos medos e atitudes, a partir daquilo que guardamos na mente. Outros estudiosos, como Bobbio, vieram depois dele para elucidar como nossos atos e aflições moldam-se por imposição social, tornando muitos indivíduos competidores em desvantagem na luta pela vida.

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