Frente Ampla: quem, como, por quê?
"Uma Frente Ampla no Brasil de hoje não pode ser pensada apenas ou mesmo prioritariamente em termos de partidos. Deve ser capaz de agregar uma multiplicidade de organizações e movimentos populares", diz o cientista político Luis Felipe Miguel, da Universidade de Brasília; "O protagonismo concedido aos movimentos decorre da constatação de que não é possível pensar que essa Frente terá como principal objetivo disputar eleições – um instrumento cuja efetividade foi conspurcada pelo golpe e que, mesmo antes, sempre representou um terreno de luta particularmente adverso"
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(originalmente publicado no blog Demodé, do Grupo de Pesquisa sobre Democracia e Desigualdades)
Desde que ficou configurado o golpe no Brasil, muitos setores das esquerdas falam na formação de uma Frente Ampla. Há uma vaga inspiração uruguaia, país em que as forças políticas da centro-esquerda em diante conseguiram construir uma unidade duradoura, a despeito de suas diferenças, e em que ocupam a presidência já por três mandatos, com alguns ganhos notáveis, como a legalização do aborto (mas um registro bem mais ambíguo em outras pautas).
A conversa difusa sobre a Frente Ampla, que vemos em entrevistas de intelectuais, em artigos de imprensa e nas redes sociais, até agora parece ter rendido muito pouco, ou mesmo nada, em termos de articulação concreta. As eleições municipais mostraram os partidos à esquerda perdidos em suas brigas internas, mais preocupados em acusar uns aos outros pela ausência de unidade do que em construir as condições de uma ação em comum. Diante do desastre absoluto que as urnas trouxeram, petistas encontraram consolo nas derrotas dos psolistas e vice-versa. De maneira geral, as lideranças da esquerda brasileira se mostram muito aquém do que nosso momento histórico exigiria. Ainda assim, é com elas que temos que trabalhar, enquanto novas – espera-se – vão surgindo.
Talvez nem fosse necessário dizer, porque o nome é autoexplicativo, mas a ideia da Frente Ampla é congregar um conjunto de visões diferentes, num espectro alargado, que comunguem de um programa básico. No momento, trata-se certamente de um programa para retomar a vigência de instituições democráticas mínimas e para estancar o retrocesso nos direitos individuais e coletivos. É, a meu ver, um programa capaz de congregar diferentes matizes de socialistas, comunistas, social-democratas, autonomistas, feministas, ecologistas. E de promover também a adesão de liberais – quer dizer, liberais autênticos, preocupados com os direitos e com as possibilidade de exercício da ação autônoma, não os fascistoides ou neofeudais que hoje muitas vezes se escondem detrás de um liberalismo de fachada.
Ficam de fora aqueles que, por mais que também incorporem a expressão “Frente Ampla” em seu discurso, continuam a exigir certificados de pureza e vetam a participação de quem fez isso ou aquilo, se aliou com fulano ou beltrano ou, de maneira mais geral, “conciliou” em algum lugar do passado. É o caso do PSTU, que já se coloca mesmo à margem, mas também de certos grupos dos quais se pode dizer que saíram do PSTU, mas o PSTU não saiu deles. Frente Ampla é festa estranha, com gente esquisita, logo não serve para quem é demasiado seletivo. Se a ideia é juntar, digamos, dos trotskistas a Claudio Lembo, certamente vamos encontrar alguns espécimes que não são da nossa preferência – o que, como diria o hoje esquecido sábio Kleber Bambam, “faz parte”.
Mas também ficam de fora, certamente, aqueles que fingem não entender que a formação de uma Frente Ampla é a demarcação de uma linha divisória – no caso, entre quem apoia e quem não apoia o golpe e seus desdobramentos. Há quem fale em Frente Ampla para se cacifar nas velhas negociações de sempre com os partidos da direita, jogando o jogo da barganha política como se não tivéssemos sofrido a ruptura que sofremos em nossa democracia. Para, quem sabe, conseguir mais cargos na mesa diretora presidida por Rodrigo Maia. São aqueles que não enxergam outro mundo além da política tradicional, às vezes simples oportunistas, às vezes viciados pelos anos de acomodação aparentemente exitosa (só que não).
A primeira exclusão é necessária para que não cheguemos à verdadeira contradição em termos que seria uma Frente Ampla, porém restrita. A segunda, para que a confluência de forças com a plataforma mínima comum de combate ao retrocesso político e social não acabe por contribuir para uma conformação ao regime que se instala. Ainda assim, é possível esperar que se direcionem para a Frente parcelas significativas do PSOL, do PT e de outros partidos da esquerda e da centro-esquerda, na medida em que suas lideranças tenham maior clareza dos desafios do momento.
Mas uma Frente Ampla no Brasil de hoje não pode ser pensada apenas ou mesmo prioritariamente em termos de partidos. Deve ser capaz de agregar uma multiplicidade de organizações e movimentos populares, que formam a base sem a qual nenhuma resistência à nova ordem é possível. A Frente Ampla deve ser um instrumento para coordenar as ações destes movimentos e dotá-los de uma pauta unificada mínima – não absorvendo-os, mas dialogando com eles, o que implica ser capaz de produzir uma relação mais horizontal entre partidos e movimentos, na contramão do aparelhamento que é a marca de muito da prática das organizações de esquerda. A ideia de uma pauta unificada mínima, porém, indica a necessidade de estabelecer um projeto com alguma densidade, compreendendo que a fragmentação reivindicatória atual, que pode ser uma demonstração da vitalidade das energias contra-hegemônicas, torna-se um ponto fraco quando não há uma plataforma que as articule.
O protagonismo concedido aos movimentos decorre da constatação de que não é possível pensar que essa Frente terá como principal objetivo disputar eleições – um instrumento cuja efetividade foi conspurcada pelo golpe e que, mesmo antes, sempre representou um terreno de luta particularmente adverso. A resistência que vier das ruas há de se espelhar nas urnas – mas nessa fórmula, o polo dinâmico, que imprime a direção, está sempre nas ruas.
(5 de novembro de 2016.)
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