Foi feminicídio e racismo
'A obra representava mulheres pretas de periferia', observa a colunista Denise Assis após bolsonaristas destruírem o quadro do pintor Di Cavalcanti (1897-1976)
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Por Denise Assis, para o 247
“A guarda morre, mas não se rende”. É o lema do Batalhão da Guarda Presidencial do Planalto. Que tal inverter? “A guarda se rende, mas não morre por qualquer avanço terrorista ou coisa que o valha. Ficaria mais de acordo com o Batalhão Duque de Caxias, cujo coronel/comandante, Paulo Fernandes da Hora, na hora “H”, não estava lá. Ou se estava, (no avanço de domingo 8/01) fez que não era com ele e tampouco com a sua tropa – formada por 200 homens –, que passam a vida treinando para o dia em que tenham a oportunidade de ficar frente a frente com um inimigo invasor.
Pois acreditem. O coronel da Hora teve o seu momento herói, mas preferiu permanecer no subsolo do palácio do Planalto, longe do tropel dos terroristas que avançavam palácio adentro, para cometer barbaridades contra o patrimônio público e artístico nacional.
Pelo caminho, encontraram a magnífica tela de Di Cavalcanti, pintada no ano de 1962, um verdadeiro painel premonitório, (que apesar do nome “As mulatas”, dado antes da reformulação da linguagem), retratam (ele não poderia imaginar), as cerca de 47% mulheres pretas de periferia que, hoje, no Brasil, chefiam lares sem maridos ou companheiros, com suas atividades de “empreendedoras”, nome dado ao que antigamente se chamava “bicos”.
Tivessem as mulatas de Di, o poder de se materializarem, e desceriam direto da tela para a fila do Bolsa Família. Foi a essas mulheres do passado, do presente (e, espera-se), não do futuro, que Di Cavalcanti dedicou as suas pinceladas e o seu dom, com cores vivas e ternas. O artista as representou em suas atividades laborais, quedadas e compenetradas.
Sou do tipo ruminante. No domingo esbravejei, busquei entender e analisar as cenas dantescas que desfilavam à minha frente, numa afronta à democracia em risco. Na segunda emudeci, numa tristeza tão profunda que tinha a impressão de que foram contra o meu corpo as sete facadas desfechadas contra a tela de Di. Só chorava. Silenciosamente chorava as perdas daqueles “parentes distantes”, que me ligavam à minha gente, a um passado onde não estive, mas que me representava nos salões onde pisei profissionalmente, na correria atrás da notícia que está sempre a nos desafiar em velocidade que só nos permite olhar essas maravilhas de relance. Um pedaço a cada vez que se vai a esses ambientes. Até que se memoriza o todo, agora aviltado.
Chorei por me dar conta de ter cruzado várias vezes com essas mulheres e não me deter na inteireza dos seus traços, agora perfurados de forma tão cruel como quem comete um feminicídio. Foi isto. Aqueles brutamontes, odeiam mulheres. Foi feminicídio.
Quanto àquelas mulheres brancas, aloiradas na farmácia, com luzes nos cabelos e escuridão na alma, são racistas estruturais. Também elas tiraram as suas casquinhas, descarregando os seus sentimentos (se é que sabem o que é isto. Acho que só conhecem raiva e frustração). Cresceram acostumadas a receber as “mulatas” de Di pela porta dos fundos, a dar-lhes ordens na entrada de seus banheiros, entre uma escovada e outra no vaso da privada. Foi ódio. O desprezo pelas figuras das “mulatas” elevadas à condição de musas, (e por que não elas, que capricham tanto no visual?).
As “mulatas", de Di Cavalcanti, foram apunhaladas pela simbologia, pelo que representavam ali, entre paredes de mármores e tapetes. Uma ousadia. Tivesse aquela turba prestado a atenção ao gestual daquelas mulheres vendedoras, trabalhadoras, de joelhos, veriam que mais uma vez elas se apresentavam subservientes, embora belas, sem representar nenhum perigo aos privilégios dos que de forma ameaçadora, bruta, pura violência, se lançaram sobre elas que, placidamente, ali representadas, apenas trabalhavam, como é dos seus destinos.
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