“Foda-se a abstração”

Um ataque a uma exposição de arte na França lembra a estratégia de ataque de artistas no Brasil em 2017



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Meu amigo, o artista e escritor, Wagner Schwartz, acaba de me enviar um texto sobre os ataques à obra de Miriam Cahn no Palais de Tokyo que está em exposição em Paris e que se assemelham aos ataques promovidos pelos agitadores fascistas do MBL contra artistas em 2017 e 2018 no Brasil. Dos artistas atacados naquela época, a maioria deles vive fora do Brasil. São protegidos por instituições internacionais de direitos humanos, incluídos os direitos dos artistas. Quem ainda acredita que o MBL é boa coisa, não conhece as estratégias de mistificação para atacar a democracia que é usada por esse grupo espalhado pelo Brasil e que foi um dos principais responsáveis pelo Golpe de 2016 e pela consequente ascensão de Bolsonaro à presidência do Brasil. 

Hoje, o grupo tenta reposicionar a marca registrada para parecer mais afeito à democracia, o que não convence. A estratégia de ataque às artes e aos artistas não foi criação desse grupo que não teria inteligência para tanto. Trata-se de um projeto de promoção dos extremismos de direita que vem de fora do Brasil e tenta tomar o poder no mundo, como era prometido por fascistas históricos desde os primeiros planos dessa ideologia política que é ao mesmo tempo, uma tecnologia política sem escrúpulos, a ponto de seus membros defenderem a existência de um partido nazista, o que não condiz com a democracia. 

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Wagner percebeu que a estratégia também está em curso na França. Ele teve que deixar o Brasil em 2017 - após um linchamento virtual a que foi submetido - depois de apresentar a sua performance "A Besta" no Museu de Arte Moderna em São Paulo. 

No episódio do quadro "Fuck abstraction!" ele assinala o fenómeno preocupante da ascensão da extrema-direita na cena política atual na França. Wagner escreveu uma carta aberta à artista, que eu penso que é muito importante publicar aqui para ser lida no Brasil, considerando que está também sendo publicada na França.

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O nome da obra é “Fuck abstraction” que deve ser traduzido literalmente por “Foda-se a abstração”. Considerando que nessa semana a imprensa golpista mistificou tanto sobre o verbo “foder” dito pelo presidente da República, creio que é importante discutirmos as estratégias de mistificação da imprensa, do MBL e de outros projetos fascistas em curso no mundo. 

Para entender o que se passa na exposição do Palais de Tokyo: 

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Na última terça-feira, 21 de março, na Assembleia Nacional Francesa, a deputada do RN (Reagrupamento Nacional — partido político francês de extrema direita), Caroline Parmentier, interpelou a Ministra da Cultura, Rima Abdul Malak, a respeito do quadro Fuck Abstraction!, da artista suíça Miriam Cahn (73 anos), em exposição desde 17 de fevereiro no Palais de Tokyo.  

“Este quadro retrata uma criança, de joelhos, amarrada com as mãos atrás das costas, forçada à felação por um adulto. Nada justifica a exposição de tal obra, nem sequer o pretexto de denunciar crimes de guerra”, disse ela. Lamentou também que o quadro tivesse sido “exibido na esfera pública sem proibição de menores desde 17 de fevereiro”. 

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A deputada pediu que a obra fosse retirada da exposição.

Até o momento, a obra segue na exposição.

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O performer e escritor Wagner Schwartz (50 anos), escreveu uma carta aberta para a artista.

Cara Miriam Cahn, eu sinto muito. 

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Sou Wagner Schwartz. Performer, escritor e brasileiro. Precisei deixar o Brasil no final de 2017, logo após a apresentação de minha performance, La Bête, no Museu de Arte Moderna de São Paulo. Ameaças surgiram quando um curto vídeo da performance viralizou nas redes sociais. Em cena, ofereço o meu corpo nu ao público para que este o dobre e desdobre, assim como fazíamos com as esculturas Bichos, de Lygia Clark nos anos 1960. A polêmica: uma menina de quatro anos se aproximou de mim com a sua mãe. Eu estava estirado no chão. Ambas tocaram meus pés. Argumento necessário para me qualificarem de pedófilo e acusar o museu de promover a pedofilia.

O episódio aconteceu num ano pré-eleitoral. A extrema direita brasileira, precisando ascender, procurou por manifestações que pudessem escandalizar a massa a fim de angariar votos e seguidores para o então candidato à presidência Jair Messias Bolsonaro. 

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Pessoas que provavelmente nunca frequentaram um museu definiam, nos mundos online e offline, o que seria arte e o seu propósito. Milhares decidiram que eu deveria morrer, que o museu deveria ser fechado e que Bolsonaro deveria ser eleito. E foi. A morte se transformou em cancelamento. O museu já não era mais o mesmo.  

Acompanho o seu trabalho desde 2014, quando atravessei, assombrado, a exposição Corporel, no Centro Cultural Suíço, em Paris. Agora — depois dos ataques à pintura Fuck Abstraction!, no Palais de Tokyo — eu me pergunto quais de seus trabalhos continuarão a ser exibidos e quais partirão em exílio. 

Nesses últimos anos, compreendi que a revolta não está apenas relacionada à impossibilidade de um artista-em-risco retornar ao país de origem, mas também à possibilidade de ser obrigado a deixar o espaço expositivo e aprender a transitar entre outras disciplinas. 

Sei que você escreve, cara Miriam. Será que a partir de agora terei mais acesso aos seus livros que às suas pinturas? O meio literário tem fôlego para enfrentar o cancelamento? Seremos colegas em organizações de proteção a artistas em perigo, ou sua obra ganhou tal notoriedade que o mercado da arte não funciona mais sem ela e, portanto, estará blindada pelo modus operandi institucional? 

O que acontecerá com o Palais de Tokyo? Vai modificar a sua programação? No Brasil, muitas instituições decidiram não mais correr riscos. 

A extrema direita opera de maneira semelhante, independentemente do idioma: mistura crença com política e vê gozo onde há denúncia. É notório. O que me inquieta é como as instituições de arte (principalmente as públicas) evoluem após terem se tornado foco dos extremistas. 

Não posso esquecer de Roland Barthes em sua aula inaugural no Collège de France, definindo, sem gritar, que “fascismo não é impedir de dizer, é obrigar a dizer”. Quais serão suas obrigações a partir de agora, cara Miriam? 

Sabemos, também, que uma obra de arte se difere de um acontecimento. Segundo Walter Benjamin, uma obra contém aura, “aparição única de uma coisa distante, por mais perto que esteja”. Não podemos comparar o tempo-espaço de um acontecimento com o de uma obra de arte. Um acontecimento é um momento específico de uma época. Uma obra de arte sugere o espaço-tempo de temas não específicos que podem criar relações com temas específicos de uma época. Podem. 

Certos olhos atribuem a Fuck Abstraction! uma apologia à pedopornografia, pois não conseguem distinguir uma obra de arte de um acontecimento, uma invenção de uma ação. E ainda acreditam que a obra estimula sexualmente quem não frequenta museus. Fuck crentes.

Sinto, cara Miriam, que o não público precisa deixar de atribuir à obra de arte a representação de alguma coisa. Em uma obra de arte não há nada de representação, ela é “uma figura singular” capaz de interferir em nossos dias. Capaz.

Fuck Abstraction! não é nada além de uma obra de arte que reage emocionalmente a algum afeto — se pensarmos nas conferências “Faits d’affects”, de Georges Didi-Huberman. Você trata assuntos figurativos com uma sensibilidade abstrata. Seu trabalho pode deixar Mark Rothko de cabelos em pé e criar relações de amizade com Georg Baselitz.

Sua obra não está sujeita às mesmas leis que definem o tecido social. Por isso, é apresentada em um museu. Nela, não podemos identificar identidade, idade, muito menos os seres que a compõem. Podem se parecer com pessoas, mas talvez sejam apenas tinta fresca. Imaginamos várias narrativas com “o que vemos, o que nos olha” (título do livro de Georges Didi-Huberman) a partir das experiências que criamos com nosso entorno. Imaginamos. A obra, nesse caso, revela o que há de mais íntimo do seu público.

Parece que a arte agrada quando ela usa o belo como avatar do mundo. Caso recuse, a violência sofre violência de outros seres violentos.

Força,

W. 

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