Finalmente, as ruas tomam a palavra
A crise, entre outros méritos, expõe à luz do sol o sempre escamoteado caráter de luta de classe do conflito politico
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A ambição do impedimento da presidente Dilma é mais do que reverter o resultado das eleições de 2014 – um ano que insiste em não terminar –, jogando ao lixo, com a ordem constitucional irremediavelmente corrompida, a soberania do voto, na qual se assenta a legitimidade da democracia representativa.
O argumento forjado em torno das tais ‘pedaladas’ – e outras chicanas – é simples pretexto para justificar uma petição inepta, firmada por um ancião digno, mas manipulado, um advogado cuja importância está no sobrenome herdado, e uma ‘jurista’ sem nome e sem obra, açulados os três pelos holofotes do momento, e lamentavelmente servindo, conscientemente, de biombo a uma alcateia faminta de poder.
E aí está o cerne da questão. O mérito do pedido, mesmo para seus subscritores, torna-se, no contexto, irrelevante, pois o que importa é seu papel como detonador necessário da abertura do processo de impeachment, acuando a presidente, paralisando o governo e a vida econômica, e pondo em xeque a desarticulada e infiel e cara base governista.
Para esse efeito, portanto, o expediente já cumpriu com seu papel de espoleta, ao ensejar ao correntista suíço a abertura do procedimento jurídico que visa à cassação do mandato da presidente Dilma. O fato objetivo, portanto, é que a oposição, com a contribuição indispensável e valorosa do PMDB, e seus principais líderes, logrou acuar o governo e pôr suas lideranças na defensiva. Mas logrou também acionar o STF – uma vez mais a judicialização da política por iniciativa de partidos! – e, principalmente, trazer a discussão para a sociedade, dividida, mas mobilizada.
Mas o mesmo movimento que acuou o governo e a presidente liberou as grandes massas que retornaram às ruas em todo o País em defesa de seu mandato. O pronunciamento das ruas chamado pela Frente Brasil Popular, porém, deve ser lido em todos os significados. Ele também grita um rotundo "Não" a toda e qualquer ameaça às conquistas sociais, e ainda serve de aviso sobre a disposição de resistir à eventualidade do golpe, bem como suas consequências.
A crise, entre outros méritos, tem o de expor à luz do sol o sempre escamoteado caráter de luta de classe do conflito politico. Não é por acaso que o impeachment seja reclamado por instituições como a Fiesp, e que a defesa do mandato de Dilma Rousseff seja a palavra de ordem dos trabalhadores, liderados pelas centrais sindicais e pelo MST.
A direita de hoje (é do seu DNA a incapacidade de renovar-se, pelo menos no Brasil) é a mesma que nos anos 50 não aceitava a hegemonia do trabalhismo, e que nos anos 60 rejeitava tanto a emergência das massas quanto a promessa de reformas. Reformas que, diga-se de passagem, simplesmente prometiam a construção de uma sociedade capitalista mais moderna e um pouco menos injusta. As ‘reformas de base’, ainda à espera de realização (meio século passado), detonaram João Goulart.
Esses fantasmas, com o lulismo, voltaram a assustar a Avenida Paulista. Daí a crise, daí a conspiração golpista, à plena luz do dia, da qual hoje participa, ostensivamente, o vice-presidente da República, seu primeiro beneficiário.
O que está em questão, hoje, para além das aparências, não é a maior ou menor popularidade do governo, nem seu desempenho, nem a corrupção endêmica (registre-se, entre outras, a condenação a 20 anos de cadeia de Eduardo Azeredo, ex-presidente do PSDB), nem a distonia entre o discurso da candidata e a política econômica adotada pela presidente. Tudo que se alega não passa de meros pretextos.
Nem mesmo está em jogo o futuro do reajuste, cujo combate desavisados da esquerda privilegiam em detrimento da defesa da legalidade, como princípio, porque não sabem ou fingem não saber que o prêmio em disputa é a tomada do aparelho de Estado (o controle da política, da economia e da vida social), depois da conquista ideológica, fruto da associação fática do monopólio da informação (e nele o monopólio do discurso único ditado pela direita) com a pregação de um fundamentalismo religioso assustadoramente primitivo e retrógrado.
O que seria a sociedade pós-Dilma está anunciado com todas as letras nas palavras de ordem das passeatas de Copacabana e da Avenida Paulista.
A preservação do mandato da presidente é o dique que vem contendo, no plano institucional, a onda reacionária. Rompida essa barreira, será impossível segurar o tsunami conservador que tudo varrerá: direitos dos trabalhadores, conquistas sociais, soberania nacional, desenvolvimento, distribuição de renda, combate às desigualdades sociais e regionais. Exatamente por isso, impedir o golpe é a prioridade tática.
Não é pequeno o desafio.
A ofensiva reacionária opera em todas as frentes, seja a frente ideológica, seja a frente institucional, onde, ainda hoje – e até quando? – atua, comandando a Câmara dos Deputados como senhor de baraço e cutelo, um político com o prontuário do ainda deputado Eduardo Cunha. Mas não é, ele, o personagem único dessa trama sem mocinho.
Até há pouco agindo apenas à socapa, conduzindo os cordéis dos mamelucos a partir dos camarins, hoje se destaca no proscênio desse circo de horrores a figura lamentável de político menor que é o vice-presidente da República. Figura menor – cuja ascensão é denotativa da pobreza de nossa política –, mas ainda assim perigosa, pois tem sob seu comando, travestida de partido, uma empresa de achaques, na lapidar definição de Marcos Nobre (Valor,14/12/2015): “O PMDB é uma empresa de fornecimento de apoio parlamentar, com cláusulas de permanente revisão do valor do contrato.”
Fazem-lhe coro envergonhado, companhia covarde, a liderança do PSDB que, ao tempo de Mario Covas e Franco Montoro, se apresentou como alternativa socialdemocrata.
Quando, superada a crise que hoje parece sem fim, o que sobrar de política e de partidos e de políticos tomará consciência da crise agônica da democracia representativa, da falência sem cura do ‘presidencialismo de coalizão’, e se entregará a uma reforma política estrutural? Ora, pedir essa reforma em ambiente hegemonizado por partidos como o PMDB e o PSDB, ou líderes partidários como Michel Temer e Aécio Neves (para ficarmos nos presidentes), é clamar no vazio, discursar para as pedras do deserto.
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