Fim da hegemonia financeira?
A política industrial implementada pelo neoliberalismo está sendo modificada nos países centrais, mas o próprio neoliberalismo não está sendo descartado
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(Publicado no site A Terra é Redonda)
Bem, esse é o título, traduzido para o português, de um artigo de Cédric Durand publicado no número 138 (nov./dez. de 2022) na New Left Review. Por que copiá-lo sem qualquer dissimulação? Ora, para assim iniciar uma contestação à tese de acento regulacionista que veicula – com base, portanto, em uma teoria nascida em meados dos anos 1970 e que foi construída numa perspectiva crítica tanto das teorias neoclássica e keynesiana quanto do marxismo de Louis Althusser – mas se valendo dessas duas últimas. Eis que, desse modo, tenta pensar a atual conjuntura macroeconômica crispada nos países do centro do sistema capitalista – ainda globalizado, mas fraturado doravante por um conflito imperialista.
Para isso, em primeiro lugar, é preciso apresentar resumidamente os seus argumentos, os quais pretendem sustentar essa previsão momentosa que, aliás, não é dada como certa, mas como possível e mesmo bem provável. Segundo esse autor “há sinais inconfundíveis de que um novo regime macroeconômico está tomando forma”. Mas o que de fato sinaliza à política econômica dominante que ela tem de mudar?
Eis o que ele diz sobre a conjuntura: “Estamos entrando [ou seja, o capitalismo nos países ricos] num momento de alto risco em que se tornou importante identificar a lógica dos atuais movimentos tectônicos. Crises geopolíticas, ecológicas e financeiras rastejantes, exacerbadas pela pandemia do novo coronavírus e pela guerra da Ucrânia, estão alimentando a presente instabilidade”.
Ora, assim, segundo ele, é criada uma situação de fundo em que o retorno da inflação, que tem a sua lógica própria – eis que advém das interrupções nas cadeias de suprimentos, das lutas de classes emergentes e da superacumulação de capital fictício – atua para realimentar essa instabilidade. Mas por que essa conjuntura incerta ameaça a hegemonia das finanças?
Ora, para responder essa pergunta, segundo ele ainda, é preciso examinar a causa do advento histórico dessa supremacia, que ocorreu após 1971, quando o governo norte-americano optou pelo fim do acordo de Breton Woods e, assim, pela flutuação das taxas de câmbio e pela desregulação do sistema financeiro. Para Cédric Durand, a liberação das finanças ocorreu naquele decênio para dinamizar um capitalismo em que a hegemonia da produção de mercadorias, até então incontestada, enfrentava um impasse: “As bases para a ascensão do setor financeiro (…) foi o esgotamento da dinâmica produtiva nas economias avançadas e a reorientação do capital para longe do investimento produtivo doméstico e em busca de maiores retornos por meio de lucros financeiros, assim como nas cadeias produtivas globalizadas, por meio da exploração da mão de obra mais barata da periferia [especialmente da Ásia]. O crédito alavancado concedeu um alívio às economias lentas, impulsionando deste modo o consumo para além do que os salários reais estagnados poderiam comprar”.
Ao argumentar desse modo, é bem evidente que Cédric Durand compreende o capital financeiro como secundário em relação ao capital industrial. E, por isso mesmo, não deveria falar em hegemonia das finanças ou, alternativamente, deveria ter enfatizado logo de início que essa hegemonia é aparente.
Veja como completa o argumento anterior confirmando essa compreensão: “Mas as finanças são apenas relativamente autônomas; eis que não conseguem se libertar inteiramente da realidade econômica subjacente; avançam por meio de choques e estouros que requerem uma intervenção pública cada vez maior. Desde o crash das empresas ponto.com, em 2001, têm contado com um apoio governamental contínuo. Com exceção parcial do setor digital, as finanças hipertrofiadas deixaram de ser um fator dinâmico da acumulação e se tornaram um peso morto na reprodução social como um todo”.
Ou seja, o capital financeiro tem como função servir o capital industrial e, assim, a acumulação efetiva de capital por meio da criação de mais-valor. Se ele, depois de ganhar bastante autonomia, torna-se disfuncional e não cumpre mais essa tarefa, precisa necessariamente ser destronado pelo governo com base nos instrumentos que lhe fornece o Estado. Em consequência, um “novo regime de acumulação” tem de ser criado pela política econômica lato sensu.
Para a teoria da regulação, que embasa essa argumentação, o Estado é o sujeito – e não o capital como tal (um sujeito automático, segundo Marx) – do processo capitalista de acumulação. Como se sabe, a teoria da regulação é um desenvolvimento – ainda que crítico – da aplicação do estruturalismo francês à economia política. Nele faltava uma fonte autônoma da decisão e esta parecia necessária para explicar as mudanças no capitalismo. Atribui ao Estado esse papel já que ele responde sempre, por meio da política econômica, aos desafios postos pela evolução própria do sistema econômico – uma estrutura social objetiva que se caracteriza por uma dinamicidade própria e que está sujeita a crises periódicas e a ciclos de expansão e contração.
Como se sabe, assim, a dialética do capital exposta por Marx principalmente em O capital é de fato abandonada. É troca por uma teoria que contempla tanto uma estrutura quanto uma agência.
Por meio de uma linguagem moralista, Cédric Durand condena o capital fictício. Em sua visada, afirma, então, que “a finança é um mestre chantagista”, que ela cria um regime de valorização de capital “completamente fora da realidade”, que o curso desabalado desse processo gera crises financeiras, as quais exigem, uma forte intervenção do Estado, por meio da função de emprestador em última instância, que é exercida pelo banco central: diante da quebra iminente do sistema, este passa a fazer compras volumosas de ativos privados e públicos, os quais estavam em poder dos agentes do setor financeiro, com a finalidade de lhes garantir a liquidez, evitando, assim, uma quebra em cadeia que atingiria até mesmo o setor produtor de mercadorias.
Após esse tipo de análise, o economista francês em ascensão na constelação da esquerda chega à seguinte conclusão: “Entretanto, no novo contexto inflacionário, essa garantia monetária está finalmente chegando ao limite de sua eficácia. Se os bancos centrais continuassem a insistir no aperto do crédito, seguir-se-ia uma crise financeira total. Um resultado mais provável, portanto, é uma desvalorização real dos ativos financeiros por meio de um “rallentando”, uma crise em câmera lenta, na forma de inflação permanente de nível médio. O ritmo da mudança pode ser relativamente moderado, mas as implicações estruturais são inevitáveis. Se a hegemonia das finanças está em declínio, quem subirá ao trono vago?”.
Mas qual o papel, segundo Marx, do setor financeiro na economia capitalista? Para responder a essa pergunta sem recorrer à tradição keynesiana, é preciso voltar à exposição dialética de O capital. Para esse autor, em primeiro lugar, o sistema de crédito gera, produz e efetiva o movimento da equalização da taxa de lucro “sobre a qual repousa toda a produção capitalista”. Para tanto, exerce uma supervisão constante sobre os capitais industriais fornecendo créditos para os capitais lucrativos e os recusando para os capitais “incompetentes”. Nesse sentido, mesmo se o mais-valor é gerado exclusivamente no âmbito dos capitais industriais, é papel intrínseco do setor financeiro exercer, sim, uma espécie de controle permanente dos investimentos feitos na esfera dos primeiros.
Marx menciona ainda (no capítulo 27 do Livro III) que o crédito reduz os custos de circulação, acelerando também as diferentes fases da circulação das mercadorias – algo que não tem relevância para a argumentação aqui desenvolvida. Importante mesmo é notar agora que o sistema de crédito é responsável pelo nascimento e prosperidade das sociedades por ações, o que vem criar “empresas sociais em oposição a empresas privadas”.
Ora, essa forma de propriedade consiste na “suprassunção do capital como propriedade privada dentro dos limites do próprio modo de produção capitalista”, fase necessária para a “reconversão do capital em propriedade dos produtores, não mais como propriedade privada de produtores isolados, mas sim como propriedade dos produtores associados, como propriedade diretamente social”. É o que Marx escreveu, mesmo se assim ele reduziu aqui (erroneamente, pensa esse divulgador) – mas não em outros textos – o socialismo a um mero industrialismo comandado pelos representantes dos trabalhadores.
Portanto, aquilo que é chamado, numa visada tipicamente superficial, como financeirização (outro nome para a suposta hegemonia do capital financeiro) não consiste simplesmente numa resposta do próprio modo de produção à queda das taxas de lucro e à estagflação, fenômenos que pontuaram no andamento da década nos anos 70 do século passado. E que marcaram também a substituição, necessária para o envolver do sistema baseado na relação de capital, do keynesianismo pelo neoliberalismo nas economias capitalistas ocidentais – e até certo ponto com um todo.
Mas a explicação precisa ir adiante para incorporar o movimento de centralização e concentração do capital no longo prazo, ou seja, para além das oscilações conjunturais e mesmo cíclicas. Como bem se sabe, as formas de capital social capitalista, tal como fora previsto por Marx, expandiram-se principalmente a partir do último quartel do século XIX. E mais cresceram ainda no período que vai do fim da II Guerra Mundial até o presente. Nesse período, aumentou certamente a quantidade e o poder econômico das corporações subordinadas indiretamente aos capitais acionários.
É essa tendência – e não simplesmente uma desmedida do capital fictício chantagista – que explica o desenvolvimento nas últimas décadas das formas coletiva de propriedade do capital tais como os fundos mútuos de investimento, fechados ou abertos e os fundos de pensão. É essa tendência inerente ao modo de produção capitalista que explana também a expansão dos sistemas de seguros que distribuem os riscos dos investimentos. Tudo isso não deve ser encarado como mera consequência do “vampirismo rentista”, supostamente um atributo obsceno do capital de finanças que suga o sangue do capital industrial, mas sim como manifestação do processo adiantado de socialização do capital na contemporaneidade.
Como se sabe, a solução das crises de superacumulação do capital, que prospera tanto na esfera do capital industrial quanto na esfera do capital que vive de juros, requer o aniquilamento de parte importante tanto de um quanto do outro, seja por meio da desvalorização seja por meio do descarte. Entretanto, essa solução que, no preparar o boom, dinamizou o capitalismo por séculos, dada agora a enorme difusão do capital social no capitalismo do final do século XX e começo do século XXI, tornou-se econômica e politicamente insustentável.
É por isso que os bancos centrais atualmente impedem que esse aniquilamento ocorra, seja abruptamente seja na forma de um “rallentando” que vai durar décadas. Esse andamento, aliás, vai parecer um “affrettando” aos ouvidos ansiosos dos donos da “papelada” financeira.
A supervisão do capital industrial pelo capital financeiro, reforçada nas últimas décadas pelo amadurecimento da socialização da propriedade capitalista não, não vai acabar. Ela vai acompanhar a evolução da crise climática e ecológica, os espasmos da globalização contraditória, as desventuras da sobrecarga do Estado diante das exigências crescentes de atuação, em múltiplas dimensões, para salvar o sistema. O capitalismo entrou em seu ocaso, mas ele ainda sobrevive aos solavancos. E, por isso, continua a passar por transformações. A que está efetivamente em curso agora tem se manifestado como um fenômeno geopolítico.
O que é novo no capitalismo ocidental aparece agora sob no nome de “novo consenso de Washington”, um rearranjo da política econômica ocidental ocasionado principalmente pela ascensão da China como uma nova potência econômica que rivaliza globalmente com as do centro do sistema imperialista, formado e liderado pelos Estados Unidos, mas composto pela Europa, Japão, Canadá etc. Esse rearranjo, que não afeta significativamente a “supremacia” das finanças, surge agora também por causa da crise das políticas neoliberais na geração de crescimento e de tensões distributivas dentro dessas nações.
No cerne dessa reorientação está o que vem sendo chamado de neo-industrialismo. “O novo consenso de Washington” – sintetizou Michael Roberts num artigo em seu blog – “visa sustentar a hegemonia do capital dos EUA e de seus aliados menores mediante uma nova abordagem”, ou seja, uma nova política industrial que visa garantir principalmente para a principal potência imperialista (mas também para as menores e associadas) a manutenção da hegemonia na produção das novas tecnologias e dos produtos mercantis delas derivados, assim como na obtenção dos insumos que são requeridos para produzi-los.
Grey Anderson, em artigo recente postado no site A Terra é Redonda mencionou que uma “lógica estratégica alimenta essa campanha de investimento nacional nos EUA” e em seus aliados; eis que ela buscar “reposicionar a produção de certos bens no continente americano”, assim como procura garantir no exterior “o acesso às minas de lítio” e outros materiais importantes que possibilitam a produção de microchips, “numa tentativa militarizada de franquear a China”. É evidente que a atual guerra da Ucrânia gestada e forçada pelos Estados Unidos, mas iniciada pela Rússia, está dentro dessa estratégia.
Para finalizar é preciso dizer que a política industrial implementada até recentemente pelo neoliberalismo está sendo modificada nos países centrais, mas o próprio neoliberalismo não está sendo descartado. Enquanto uma racionalidade que visa fomentar uma sociabilidade associal (ou seja, individualista, narcisista e voltada para o empreendedorismo), ele não vai deixar de existir e prosperar. Como afirmou Alejandro Péres Polo em artigo bem atual, essa sociabilidade, assim como a ascensão da extrema direita decorrente, é expressão do declínio do Ocidente.
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