Filmes Negros e a cosmogonia iorubá

O premiado documentário "Exu e o Universo" é uma das atrações da mostra Filmes Negros Importam, em cartaz no Rio de Janeiro

(Foto: Reprodução)


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Com a comédia Na Rédea Curta, novo filme da dupla Glenda Nicácio e Ary Rosa (Café com Canela, Ilha, Voltei!), o Estação Net Rio abre amanhã (17/11) a Mostra Filmes Negros Importam. Será uma semana de cinema para celebrar o Dia da Consciência Negra. 

Entre os 19 filmes nacionais e estrangeiros, há clássicos e outros inéditos comercialmente. São obras que "discutem as questões afrodiaspóricas em sua amplitude, a potência da cultura e a importância histórica no mundo contemporâneo", como situa a curadoria.

Na programação constam os inéditos e premiados 7 Cortes de Cabelo no Congo, de Luciana Bezerra, Gustavo Melo e Pedro Rossi, vencedor da competição brasileira no Olhar de Cinema (leia aqui minha resenha); Exu e o Universo, de Thiago Zanato, eleito melhor documentário da Première Brasil do Festival do Rio e da Mostra de São Paulo (leia meu comentário mais abaixo); Mato Seco em Chamas, de Joana Pimentel e Adirley Queirós; e A Troco de Nada, de Patrick Granja, documentário sobre a violência de Estado nas comunidades do Rio. 

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A seleção inclui os clássicos brasileiros Na Boca do Mundo, único filme dirigido por Antônio Pitanga, Compasso de Espera, idem de Antunes Filho, Bróder, de Jeferson De, e As Filhas do Vento, de Joel Zito Araújo.

Entre os internacionais, destaca-se a pré-estreia de Mali Twist, do engajadíssimo francês Robert Guédiguian. Quem Matou o Capitão Alex?, de Nabwana I.G.G., com sua história envolvendo a máfia dos tigres na África, é considerado o primeiro filme de ação de Wakaliwood, a "Hollywood" de Uganda.

Da África vêm também O Mandato, de Ousmane Sembène, tido como o pai do cinema africano,  Chateau-Paris, de Modi Barry e Cédric Ido, Timbuktu, de Abderramane Sissako, o documentário Zinder, de Aicha Macky, sobre gangues da Nigéria, e Sweet Seetback’s Baadassssss Song, de Melvin Van Peebles, classicaço da blaxploitation.

Como Spike Lee não poderia faltar numa seleção dessas, lá estão os essenciais Faça a Coisa Certa e Febre na Selva.

A programação inclui ainda encontros e debates acerca das temáticas dos filmes da mostra. No dia 21, segunda-feira, haverá uma exibição especial de Marte Um pela manhã, com a presença do ator Cícero Lucas, que faz o garoto Deivinho.

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Cosmogonia iorubá

EXU E O UNIVERSO

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Cientista social, administrador de empresas, professor universitário e babalorixá, Adesiná Síkírù Sàlámì é conhecido como Babá King, ou simplesmente Professor King. Esse nigeriano radicado no Brasil há quase 40 anos é o narrador principal do documentário Exu e o Universo, vencedor da categoria no Festival do Rio e na Mostra de SP. 

Homem racionalista e universalista, King é mentor da comunidade Oduduwa brasileira, de tradição iorubá, e fundador do Templo dos Orixás na cidade de Abéòkúta, na Nigéria. Dedica sua vida a descolonizar o pensamento ocidental sobre a cultura e a religiosidade iorubás. O diretor Thiago Zanato o ouviu na ocasião em que ele finalizava um dicionário iorubá-portugês-iorubá descolonizado. O termo "Exu", por exemplo, não era mais definido como entidade demoníaca, associada ao Mal, ao contrário do que consta em antigas traduções feitas para evangelizar o povo irorubá. 

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O filme ouve também um funcionário do Google na Nigéria que se empenha em corrigir a tradução da plataforma, que insistia em equivaler "Exu" a "Devil". Afinal, o conceito de diabo inexiste na tradição africana. Exu (Èsù em iorubá) é uma divindade ambígua, identificada com a esperteza, mas fundamentalmente um guardião, um protetor.

A incompreensão do universo africano leva a equívocos como as tentativas de condenação legal de sacrifícios rituais com animais no Brasil, tema contestado com brilhantismo pelo jurista Hédio Silva. A destruição de templos de umbanda é outra face da intolerância, tão bem documentada em Fé e Fúria.

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Exu e o Universo transita continuamente entre o Brasil e a Nigéria, guiado pelas palavras de King e de outros pensadores iorubás. Nos dois países, assistimos a rituais, cerimônias e festivais, assim como conhecemos locais de culto bastante diferentes entre si. O alcance do documentário se estende até a Galícia (Espanha), onde, além do Caminho de Santiago, existe um Caminho de Exu que termina numa Casa do Mato. E a uma comunidade da Eslovênia que cultua religião de matriz africana mesclada com paganismo, e onde um croata incorpora Exu. 

Para além da diáspora africana, é interessante ver pessoas legitimamente ocidentais convertidas a religiões afro, a ponto de buscarem ali o que entendem como suas raízes. Professor King defende esses fluxos interraciais e interreligiosos, ao mesmo tempo em que propõe a perspectiva africana como uma forma de os negros enxergarem a realidade de maneira mais afirmativa. 

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Talvez o roteiro de Exu e o Universo fosse ainda mais eficaz se criasse nexos mais claros entre o que é dito e o que é mostrado. A viagem de um grupo de mulheres da Nigéria para o Brasil também poderia ter sido melhor explorada no filme. De qualquer maneira, está ali um conjunto de imagens vigorosas – destaquem-se a arquitetura e a estatuária oduduwa de Abéòkúta – e considerações importantes para uma visão descolonizada da nossa herança africana. A certa altura, um personagem sustenta: "O que a história não me contou eu consegui ver". Não é difícil compreender o que ele viu: um modo de viver e de pensar que não se extinguiu com a diáspora e a escravização.

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