Faz escuro e eu só rezo?

Frei Betto escreve sobre a espiritualidade na pandemia: "Há um duplo aspecto nessa onda de misticismo. De um lado, a idolatria do capital (...) já que não se pode mudar o mundo, o negócio é ganhar dinheiro e, se possível, mudar a si mesmo. (...) O outro aspecto é altamente positivo (...) recoloca, na ordem do dia, a questão da subjetividade.



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Estamos em plena crise da racionalidade moderna. O Muro de Berlim ruiu, o determinismo histórico cedeu lugar ao princípio da indeterminação, a física geométrica de Newton foi suplantada pelo alucinado baile das partículas subatômicas de Plank e Heisenberg. As utopias volatilizaram-se, os paradigmas entraram em parafuso e a esperança exige, hoje, a lanterna de Diógenes. Neva em nossos corações e mentes.

Vitória da economia de mercado? Pirro talvez acreditasse nas propriedades nutritivas de um hambúrguer McDonald's. O fracasso do capitalismo implantado, há pelo menos um século, na África e na América Latina, é notório. O único país de nosso Continente que logrou assegurar condições mínimas de vida a sua população foi Cuba. Graças ao socialismo.

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E as estatísticas da FAO sobre a fome do mundo só não são mais gritantes porque 1 bilhão e 300 milhões de chineses comem ao menos duas vezes ao dia.

Na falta de horizontes, o céu é o limite. Na Bienal do Livro, os mais vendidos são os infantis e os esotéricos. Se Freud não explica, Jung entra em cena. No bazar das crendices, vale tudo, do tarô às religiões indígenas, do pentecostalismo à astrologia, do I Ching aos gurus indianos. Mais do que fazer a cabeça, abalada por tantas incertezas, agora as pessoas querem fazer a alma. A matemática de Descartes cede lugar às energias cósmicas.

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Há um duplo aspecto nessa onda de misticismo. De um lado, a idolatria do capital com sua ofensiva ideológica fundada no dogma nipo-americano do "fim da história". Já que não se pode mudar o mundo, o negócio é ganhar dinheiro e, se possível, mudar a si mesmo. Limitada a transa do corpo pelo risco da Aids, o jeito é soltar o espírito. Nessa, o divã dança. Muitos não querem nem saber as causas de seus bloqueios psíquicos. Chega de razão! Terapia é mergulhar no mistério, seja pela via dos aditivos químicos, como drogas, seja pela via dos modismos religiosos e esotéricos que cauterizam o buraco que trazemos no centro do peito e antecipam hoje o destino de amanhã.

O outro aspecto é altamente positivo, pois todo esse fenômeno revela a insuficiência da racionalidade moderna, confirmando a tese de meu confrade, Santo Tomás de Aquino, de que "a razão é a imperfeição da inteligência". E recoloca, na ordem do dia, a questão da subjetividade. Deus, agora, é in. Pena que as Igrejas históricas estejam tão estruturadas em seus modelos seculares, sem muitas condições de acompanhar os que mergulham rumo ao transcendente.

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Ao contrário das tendências esotéricas, em geral voltadas para o próprio umbigo, o cristianismo faz do outro uma referência divina. E proclama o amor como experiência de Deus. Nessa linha, a esperança ressurge, não em torno de teorias mecânicas ou positivistas, mas centrada no concreto: como celebrar a vitória do neoliberalismo se o Leste europeu entra em processo acelerado de latinoamericanização?

Deus sim, mas servido e contemplado lá onde Jesus se identifica ao reconhecer "tive fome e me destes de comer" (Mateus 25, 35 ): nos meninos e meninas de rua, nos desempregados, nos aposentados, nos enfermos (de Codiv-19), nos oprimidos. O amor como desafio místico e político. E a oração como estímulo da ação.

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Se lograrmos, na arqueologia das palavras, descer do patamar das abstrações e implodir as catedrais academicistas, talvez cheguemos ao pobre como referência fundamental. Então, descobriremos que a saída espiritual deve ter uma base ética e, portanto, uma ressonância política. Homens e mulheres novos como filhos do casamento de Santa Teresa de Ávila com Ernesto Che Guevara.

A porta da razão é o coração e a chave do coração a religião como expressão litúrgica da ousadia de se amar, de amar o próximo e de amar tudo que concorre para a soberania da vida, como plenitude de fé e de festa.

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