Fascismo em recuo: Queiroz nos destroços da República

"O preço elevado, agora explode expondo as vísceras do pacto de poder. Elas mostram o cotidiano político do país como dias deteriorados pelo milicianismo cercado", escreve o ex-governador do Rio Grande do Sul Tarso Genro



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Por Tarso Genro - Alguns fatos do cotidiano da política são capazes de marcar o fim de um ciclo ou o início de um novo período, dentro de um mesmo ciclo de lutas e dominações. Estes fatos podem destacar-se, tanto pelo poder destrutivo das relações articuladas para que o presente tivesse um certo significado, como pela sua capacidade de ensejar novos embates -entre forças em confronto- redesenhando os dias subsequentes e colocando-os numa nova perspectiva histórica: o tiro contra Lacerda no caso de Getúlio Vargas, a fala de Roberto Jefferson sobre o “mensalão”, a caminhoneta Elba localizada a serviço privado de Collor, a prisão de Queiroz, se inscrevem nesta perspectiva. Depois destes fatos a política deixa de ser a “mesma” e passa ser “outra”: corrói, reconstitui, reabre expectativas e altera a postura dos sujeitos em colisão.

No seu poderoso “Filho do Século” (Ed. Intrínseca Ltda, 2019, 374 e segs.), o autor A. Scurati relata que em 23 de abril de 1921 -nas colunas do “Corriere della Sera”- o Senador e diretor do jornal Luigi Albertini” escreveu que era preciso “tapar o nariz diante da malcheirosa aliança entre liberais e fascistas”. Esta aliança já estava aceita por Benito Mussolini, que preparava o “salto do fascismo”, do terreno instável e violento das ruas (…) “para o Plenário parlamentar”. Dois dias antes, Albertini afirmara ser contra essa aliança, que era rejeitada pelos liberais abrigados no “Lá Stampa” de Turim, que viam nela um suicídio do liberalismo democrático.

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A rede liberal-conservadora que acordou com o fascismo miliciano no Brasil foi composta de maneira informal. Ela não tinha como propósito colocar um protofascista no poder, pois -para ela- Bolsonaro seria apenas a excrescência de uma aventura autoritária. Dela se serviriam para iludir as classes médias que um programa mínimo necrófilo -como matar bandidos e metralhar a esquerda- resolveria os problemas da nação. As classes dominantes, na verdade, só se serviram de Bolsonaro depois de uma complexa operação de desmoralização da política liberal-democrática, pela qual devastaram também as suas lideranças cativas: elas se mostravam incapazes de conduzir um projeto reformista ultraliberal para “depenar” o Estado Social em crise, o que permitiu Bolsonaro tornar-se o cotidiano taquipsíquico das classes dominantes. Já sem lideranças capazes de liderar.

O grupo de lideranças que defende a subordinação irrestrita do país ao capital financeiro e ao jogo rentista, tinha como objetivo cravar um resultado eleitoral que definisse um Governo comprometido com eliminar as políticas sociais “gastadoras”. Seu objetivo seria acabar com a proteção social e previdenciária humanista, que combatia a miséria absoluta e colocava os pobres na mesa democrática, bem como fortalecia o papel do Estado nas áreas da saúde e da educação. O jogo burguês-rentista, portanto, não enfrentava uma revolução, mas antes buscava ressecar a democracia social, reinaugurada depois de Vargas, já numa ordem internacional adversa ao legado das políticas da social democracia no pós-guerra.

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Na Itália assediada pelo fascismo rondava -é verdade- o “perigo” da revolução socialista. Este projeto enchia de temor grande parte da sociedade, diferentemente da emergência fascista no Brasil, cujo destino ainda está em disputa. No Brasil, a possibilidade do ascenso da ideia totalitária remeteu diretamente contra a democracia política e a social democracia moderada, distantes -em qualquer hipótese- de uma iminência socialista. Como se livrar de Bolsonaro, que joga o país na desordem, sem base social que sustente um fascismo miliciano, é o dilema em curso do poderoso sistema de alianças que jogou o país na indeterminação e na loucura.

Na história da adesão do fascismo ao bloco de Governo do Primeiro Ministro Giolitti, que abriu os caminhos do poder para Mussolini nos anos 20, há o registro histórico de uma dupla interpretação: a de Mussolini, preparando-se para assumir o poder, certo que Giolitti não poderia “governar infinitamente” por ser “velho e ultrapassado”; e a dos eleitores “moderados”, que ficaram ao mesmo tempo “tranquilizados e horrorizados com a violência dos fascistas”. No cotidiano daquela parte da história italiana estavam em disputa quais as forças políticas que iriam responder à insegurança das pessoas do povo e iriam curar as suas feridas de Guerra.

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Naquele momento, o antiparlamentarismo fascista foi contido pelas suas direções, que já entendiam ser possível corroer o sistema liberal “por dentro”, participando deste só como movimento tático. O fracassado plano de Giolitti era conter as ilegalidades fascistas, considerando-as um fenômeno passageiro, e submetendo-as aos marcos constitucionais. O plano de Mussolini, todavia, era instaurar a “desordem absoluta para mostrar que só ele poderia “restabelecer a ordem”. O plano fracassado das classes dominantes brasileiras -uma rápida visita ao fascismo para fazer as reformas- está sendo derrotado não só pelo medievalismo anticientífico do Presidente perante a Pandemia, mas também pela forma miliciana e familiar pela qual ele exerce a magistratura presidencial.

Mussolini venceu Giolitti e assumiu o poder. Com Bolsonaro, no Brasil, processou-se a cooptação de FHC e do centrão, pelo partido da mídia tradicional, para emplacarem na sociedade o falso dilema entre os “dois extremos”. Este dilema -o bilhete de entrada dos “liberais” para uma aliança com o fascismo- não surgiu então como resposta a ameaças de uma revolução socialista, mas como um acordo para implementar as “reformas” ultraliberais. Para isso, o moderado professor em ascenso eleitoral deveria ser bloqueado pelo capitão acusados de terrorismo. Não foi, portanto, um embate clássico entre “esquerda” e “direita”, mas uma contenda eleitoral falsificada e intensa, entre dois extremismos, onde somente um deles era real.

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O preço elevado, agora explode expondo as vísceras do pacto de poder. Elas mostram o cotidiano político do país como dias deteriorados pelo milicianismo cercado. Queiroz está preso num cárcere que guarda também os destinos da democracia judicializada: “as grandes ações não cotidianas que são contadas nos livros de história -diz Agnes Heller- partem da vida cotidiana e a ela retornam. Toda a grande façanha histórica torna-se particular e histórica, precisamente graças ao seu posterior efeito na cotidianidade. ”

Neste momento Cotidiano e História estão retidos numa cela prisional, no Rio, onde Queiroz pensa em sua vida inteira de dependências, fidelidades, poderes aparentes e reais, crimes e generosidades mafiosas, expandidas pela política. A crise da democracia brasileira tornou-se tragédia quando as classes dominantes do país apostaram no seu aprofundamento pela via do fascismo, para realizar as reformas ultraliberais. O futuro imediato da democracia arruinada, agora, está encarcerado na mente da sua criatura mais exemplar que, quando rumina sobre a sua trajetória, também decide sobre o destino dos amigos fiéis que lhe abandonarão nos cárceres da República em destroços.

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