Agressão a Lula mostra que o fascismo bolsonarista é indissolúvel do antipetismo e do ultraneoliberalismo
O colunista Marcelo Zero expõe os motivos que levaram a mídia brasileira, que hoje tenta se livrar do monstro que criou, a também atacar o ex-presidente Lula, distorcendo uma declaração tirada de contexto. "Lula nunca diria que a ditadura deveria ter matado uns 30 mil, nunca elogiaria torturadores, nunca seria insensível ao sofrimento do povo brasileiro", diz ele
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Bastou uma frase mal-formulada e tirada de seu contexto para que a imprensa conservadora recaísse no seu esporte preferido: o antipetismo.
Qualquer pessoa de QI médio e que entenda o mínimo sobre interpretação de textos sabe muito bem Lula não acha bom a epidemia de coronavírus. Ao contrário de Bolsonaro et caterva, ele nunca menosprezou o Covid-19 e está autenticamente preocupado com seus efeitos desastrosos, especialmente entre os mais pobres. Lula nunca disse ou diria “e daí?”.
Lula nunca diria que a ditadura deveria ter matado uns 30 mil, nunca elogiaria torturadores, nunca seria insensível ao sofrimento do povo brasileiro. Mais do que declarações, sua longa biografia atesta isso de forma absoluta.
O que Lula evidentemente quis dizer é que a epidemia do Covid-19 está mostrando as mazelas e insuficiências do neoliberalismo e a necessidade de que o Estado venha a ter um papel preponderante num cenário pós-pandemia.
E não é só ele. Mesmo economistas antes conservadores começam agora a rever suas posições sobre o papel Estado e as políticas neoliberais.
Evidentemente que a imprensa conservadora sabe disso muito bem. Mas se aproveitam do episódio para atacar Lula de forma insana, exibindo um ódio aparentemente inexplicável.
Não obstante, a motivação parece clara. Parte das oligarquias e da nossa mídia que apostou em Bolsonaro contra o candidato do PT, agora vê o desastre de ter elegido um miliciano neofascista completamente despreparado para o cargo. Pensavam, não sei o porquê, que ele seria controlável e domesticável, como as classes conservadoras alemãs pensaram sobre Hitler. Erro estúpido.
Porém, esses setores oligárquicos e midiáticos, embora hoje sejam críticos a Bolsonaro, como quase todo o resto do mundo, diga-se de passagem, continuam a defender a agenda ultraneoliberal, que motivou o golpe de 2016, a prisão injusta de Lula e a eleição de um protofascista para dirigir o Brasil.
Assim, quando Lula ataca o neoliberalismo, a imprensa fica melindrada. Admite a crítica a Bolsonaro, mas não admite ataques à agenda que os beneficia.
Sobretudo, morrem de medo da volta de um modelo político e econômico distributivo, no qual o Estado tenha um papel central na condução das políticas. Querem o ultraneoliberalismo sem o bolsonarismo.
Entretanto, no Brasil esses fenômenos parecem indissoluvelmente entrelaçados.
Num país como o nosso, extremamente desigual, com altos níveis de exclusão social e submetido a uma grave crise há vários anos, intensificada agora pela epidemia do Covid-19, é altamente improvável que a implantação da agenda ultraneoliberal possa ser obtida sem um profundo comprometimento da democracia.
O surgimento do bolsonarismo é justamente o resultado de um longo processo de comprometimento da democracia, impulsionado pelas mesmas oligarquias que hoje querem se livrar do monstro inconveniente por elas criado.
Primeiro, cuidaram de criar, de forma meticulosa e sistemática, o ódio ao PT e às agendas de esquerda de um modo geral. Depois, romperam acintosamente com o pacto democrático criado pela Constituição se 1988 e promoveram um golpe de Estado, um impeachment sem crime de responsabilidade.
Um pouco mais tarde, promoveram escandalosa lawfare contra a principal liderança popular do país e a atiraram na cadeia para impedi-la de disputar as eleições.
Não bastasse, apoiaram Bolsonaro, sabendo perfeitamente quem ele era, numa eleição fortemente maculada pelo uso sistemático de fake news e pelo abuso de poder econômico.
Esse foi o processo necessário para que a agenda ultraneoliberal, intrinsicamente impopular, pudesse triunfar.
Seria extremamente ingênuo considerar, agora, que tal agenda possa continuar a ser implantada em democracia plena.
Assim, um possível afastamento de Bolsonaro, embora desejável, não significará, necessariamente, a restauração plena da democracia brasileira.
As nossas oligarquias, ou partes delas, sonham com um governo Mourão ou com governo civil tutelados pelos militares, que deem prosseguimento à agenda de Paulo Guedes e que controlem as grandes massas, em período tão delicado e difícil. Morrem de medo que aconteça aqui algo semelhante ao que aconteceu no Chile e em outros países vizinhos.
Querem um governo conservador e autoritário, embora menos constrangedor que o de Bolsonaro. Querem continuar a alijar do processo político o PT, Lula e as alternativas de esquerda de um modo geral.
Por conseguinte, a luta contra o fascismo bolsonarista e pela democracia não pode ser separada da luta contra a agenda ultraneoliberal, que motivou a ruína recente da democracia brasileira e que, se plenamente implantada, agudizará fortemente as desigualdades e a exclusão social, as quais são os principais fatores estruturais que debilitam o processo democrático no Brasil. Afinal, democracias plenas e fortes demandam igualdade social e Estado de Bem-Estar funcional.
Da mesma forma, a luta contra o fascismo miliciano não pode ser separada da luta contra o ódio antipetista e antiesquerda. Antipetismo e bolsonarismo são lados de uma mesma moeda ideológica.
O fascismo e o nazismo sempre se nutriram do ódio contra um “inimigo interno” que precisa ser “exterminado” para que a “Nação” possa ser salva. No caso da Alemanha das décadas de 1920, 1930 e 1940, os inimigos que estavam “destruindo a Nação” e seus “valores tradicionais” eram os judeus e os comunistas, que corrompiam o ideal de uma Alemanha “pura e forte”, racial e culturalmente.
No caso de Brasil de hoje. os inimigos internos a serem exterminados, e isso foi dito e repetido de forma clara e direta, são o PT, Lula e as esquerdas de um modo geral, que “corrompem” o país e os “valores tradicionais da Nação e da família”.
Antes de Bolsonaro, as nossas oligarquias tentaram exterminar o PT e Lula, em vez de derrotá-los democraticamente. Bolsonaro e bolsonaristas apenas intentam completar o trabalho de forma mais crua.
Num país democrático e sério, uma liderança popular como a de Lula seria considerado um patrimônio político a ser preservado e valorizado para o bem geral da democracia. Isso não significa concordar com ele. Democracias, por definição, são sistemas de mediação de conflitos, não de extermínio de adversários.
Infelizmente, nossas oligarquias e seus representantes midiáticos continuam a ignorar essas correlações básicas. Insistem no mesmo ódio, nos mesmos preconceitos e na mesma agenda que levou o Brasil ao desastre bolsonarista.
Pois bem, é bom que saibam que não haverá verdadeira democracia no Brasil sem o PT, sem Lula, sem o MST, sem o MTST, sem as comunidades eclesiais de base, sem a CUT, sem o PC do B, sem o Psol, e sem todos os outros partidos de esquerda e os movimentos populares e de trabalhadores que dão voz e vez às grandes massas do país.
Sem tal condição, a democracia é impossível, mesmo com o alijamento de Bolsonaro. Isso seria simplesmente um bolsonarismo sem Bolsonaro.
Não há democracia para poucos. Ou é para todos ou não é.
Se quiserem democracia de verdade, se quiserem derrotar o fascismo bolsonarista, terão de conviver com PT, com Lula e com todos os grupos progressistas do país. Sem ódio, e sobretudo, com respeito.
Terão, também, de rever essa agenda econômica sociopática que corrompe os fundamentos últimos da nossa democracia.
Lula pode ajudar. E muito.
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