Extático

Quando os colegas começavam a defender o Coiso em um tom audível apesar dos fones, levantava preguiçosamente, como se em ginástica laboral, os braços colados às orelhas, uma mão segurando no polegar da outra, lá em cima, liberando eflúvios carnicentos, estático

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Parou de assistir televisão. Não aguentava os noticiários. Deu a sua ao porteiro do prédio. O mundo ficou melhor. Tinha mais tempo para si.

O bar já não tinha tanta graça, embora, gracilianamente, sofrendo com as tradições, não podia viver ser elas. Chegava no balcão, cumprimentava os presentes com um leve aproximar do queixo ao peito. Serviam o de sempre. Pinga com amargo e logo lhe traziam o pão com bolinho. Às vezes lembrava de um sujeito ruivo que, sem ter passado no vestibular, foi seu colega na federal desde o primeiro ano. Na cantina pedia algumas fatias de presunto e um café. Tingia-as com tabasco. Pimenta com presunto. A pele da cor do cabelo, a cada garfada, água de vina. Todos sabiam que era agente do DOPS. Chamavam-no de arroto-de-fanta. Ninguém lhe dirigia a palavra. Tinha a idade dos pais da maioria dos estudantes. E, para corroborar as suspeitas, era amigo do professor de Organização Social e Política Brasileira. Um fantasma, pelos corredores. Parecia não se incomodar. Sentava-se no fundão. E escrevia sem atenção às aulas. No bar, como o acobreado da faculdade, não se incomodava com o ruidoso entorno. Na maioria, conhecidos estranhos que iam ao boteco para falar. Uma cerveja, jamais duas, anota para mim. E ia embora.

Refugiava-se na literatura, alfarrabista militante. Não tinha biblioteca. Os lidos devolvia no sebo e pegava outros, mediante pequenos valores. Era contra a acumulação. E no cinema, duas vezes por semana, noites em que não passava no botequim. Sempre sozinho. Jantava pipocas. Em casa, uma ou duas taças de vinho barato para pensar, estático, na poltrona sobre o filme. Preferia os europeus ou asiáticos. A obviedade dos enredos dos americanos o enfadava. Pequenos grandes prazeres, se repetia.

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No trabalho, ensimesmava-se. Digitava freneticamente no ritmo da música que ouvia, como se num piano. A cada hora e vinte minutos, sistemático, tirava os auriculares, pegava o elevador, e ia fumar na rua. Voltava e submergia. Uma samambaia na repartição. Desde o golpe de 2016 passou a não suportar a mediocridade dos colegas e suas futilidades. Comprou fones de ouvido maiores, estofados, e o mundo ficou melhor. No café, boca-de-pito, dois de manhã, dois à tarde, um veneno, estático, fingia interesse por futebol e pela a vida sexual dos colegas ausentes. E logo se poupava da companhia dos meritocratas, aprovados em concurso, grandes merdas, voltando ao teclado. Com a reforma da previdência todos ali teriam que trabalhar mais alguns anos. Bem-feito. Para ele tanto faz. Não há vida lá fora depois que a Lava-Jato destruiu o futuro do país. Mas eles, os cretinos que votaram no capitão, também não se aposentarão nunca. Depois desta, daqui a alguns anos, virá outra reforma da previdência como consequência da austeridade fiscal. Fizeram por merecer. O mérito é todo deles, comprazia-se.

Das redes sociais foi se afastando. O feice, muito chato, cheio de professores-de-deus, deitando regras e certezas. Récua de especialistas em generalidades, com a profundidade de um pires. No tuíter se divertiu no começo, depois cansou. No instagran dava laiques. Não sabia fotografar. Postava de vez em quando. Depois desistiu. Pérola aos porcos, concluiu. Virou voyeur. Estático.

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Quando lhe entrava, sorrateira, vontade de interferir no mundo exterior, Bartleby o escrivão, concluía ser melhor não. Melville o descrevera, cada vez mais soturno. Passou a se vingar dos colegas acometidos por injustificável soberba que opinavam sobre tudo e sobre todos. Os piores eram os crentes. Insuportáveis. Tomava banho e não lavava os sovacos. Com o passar dos meses o azedo fez-se pútrido. Uma vingança peculiar. Suas narinas se acostumaram. Quando os colegas começavam a defender o Coiso em um tom audível apesar dos fones, levantava preguiçosamente, como se em ginástica laboral, os braços colados às orelhas, uma mão segurando no polegar da outra, lá em cima, liberando eflúvios carnicentos, estático. Funcionava. Cada um para um lado. Miasma contra miasma, justificava-se. Era sua arma secreta, divertia-se prazeroso.

Agora, nem mais das redes sociais participava. Perda de tempo. Havia dias em que se rejubilava não ter falado com ninguém. Passou a contar as palavras que, por interferência alheia, era forçado a pronunciar. O objetivo era bater o recorde anterior. Falava cada vez menos. Melhor não. Saiu do tuíter e do instagram. Demorou um pouco mais para sair do feice. Agora se livrou. Eliminou o ícone que, tentação, fustigava-lhe o voioerismo e a vontade de esfregar um eu avisei na fuça dos imbecis arrependidos do voto no fascista. Estático. Sua vida melhorou.

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Um dia acordou surdo. Totalmente surdo. Nenhum ruído. Copiou a vizinha idiota e foi na janela bater com a colher de pau no fundo da panela. Nada. Mouco. Sorriu. Não lhe veio o desespero de Gregor Samsa. Experimentou o novo estado com um prazer catártico. Extático. Já pouco falava. Nada do que ouvia lhe interessava. Nem as músicas com que se defendia da burrice alheia. Uma dádiva. Sua vida imediatamente haveria de melhorar. Feliz. Tomou surda decisão. Cortaria o pão com bolinho. Fritura faz mal. Presunto com pimenta até conseguir a perfeição, tragar pimenta com presunto e, rubro, se deliciar, extático, com uma cerveja gelada. Jamais duas. Na contemporaneidade bolsonara, epifania, a vida que vale a pena ser vivida depende não dos grandes, mas dos pequenos prazeres.

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