Exclusivo: Novas informações reforçam necessidade de reabrir inquérito da fakeada
Joaquim de Carvalho publica documentos do inquérito e revela bastidores do documentário que escancarou as inverdades da narrativa oficial sobre o episódio que levou Bolsonaro à Presidência da República
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Em julho deste ano, após conversarmos sobre um projeto de reportagem, disse a Leonardo Attuch, do 247, que a ideia de investigar o episódio da facada em Juiz de Fora não daria em nada, já que todas as evidências divulgadas levavam à conclusão de que houve, sim, um atentado contra Jair Bolsonaro. Dois meses depois e após dezenas de entrevistas e análise de peças do processo, não tenho receio de dizer que o inquérito sobre a facada precisa ser reaberto, já que há indícios fortíssimos de que houve fraude. A Polícia Federal não considerou a hipótese plausível de que ocorreu em Juiz de Fora um auto atentado, uma armação para interferir na campanha eleitoral
Com a compromisso de que o 247 publicaria o resultado da minha apuração, mesmo que ela confirmasse a versão oficial, fui a Juiz de Fora, Montes Claros, onde Adélio Bispo de Oliveira nasceu e se criou, e Florianópolis, onde ele morava até dez dias antes da facada ou suposta facada. Em Juiz de Fora, ao conversar com pessoas envolvidas na investigação, minha primeira surpresa foi descobrir que a faca apresentada como o instrumento do crime tinha percorrido um caminho tortuoso naquele 6 de setembro de 2018 antes de chegar à mesa do delegado Rodrigo Morais, e de ser encaminhada para a perícia.
Ela não foi apreendida com Adélio, mas entregue à Polícia Federal por um PM do serviço reservado e por um paramédico vinculado a uma rede de militares e de seguranças que compunham uma espécie de célula bolsonarista na cidade, um troço bem esquisito. Renato Júlio dos Santos é o nome do paramédico. Ele deu depoimento à Polícia Federal e, quase três anos depois, eu o localizei por telefone. Depois de atender à minha ligação e ser informado do assunto, pediu dez minutos para estacionar o carro e não atendeu mais às minhas ligações nem respondeu às minhas mensagens por WhatsApp.
Mas eu consegui entrevistá-lo, depois de ficar três horas de plantão em frente à sua casa, em um condomínio para pessoas de baixa renda no Jardim de Alá, periferia de Juiz de Fora. Uma seguidora da TV 247 me reconheceu e comentou que ali perto um jovem tinha sido assassinado por traficantes alguns dias antes. Era, portanto, um lugar perigoso, mas, depois de interfonar para a casa dele, sem sucesso, e também para vizinhos, ele acabou me retornando, para uma conversa gravada de quase uma hora, que fiz no próprio carro.
Renato fez um relato que, mais tarde, eu descobriria ter inconsistências.
Ele disse ter pisado em cima de uma faca no calçadão da rua Halfeld, local do crime, depois que Adélio tinha sido levado por seguranças voluntários de Bolsonaro para o segundo andar de um prédio onde funcionavam (e funcionam) um chaveiro e uma escola profissionalizante. Em vez de entregar o objeto para a polícia — havia muitos ali, tanto federais quanto militares e civis, alguns à paisana, outros não —, ele deixou com um vendedor de frutas que trabalha num carrinho instalado na esquina.
“Guarda isso”, teria dito a Luiz Perensin, o vendedor de frutas, um homem já idoso, segundo me relatou o dono do carrinho, patrão de Perensin na época. Algum tempo depois — Luciano, o patrão, não soube precisar quanto, mas disse que foi no mesmo dia —, Renato voltou com outro homem e pediu a faca, que foi colocada em uma sacola plástica e levada para a Polícia Federal, onde foi periciada.
Os peritos não encontraram as digitais de Adélio na faca — nem nenhuma outra; a conclusão dos investigadores é que ela tinha sido tocada por muita gente e, portanto, havia digitais sobrepostas, o que não permitiu identificar nenhuma delas.
Na época, alguma autoridade vazou à imprensa que a faca era de uso comum na pensão onde Adélio morava e talvez isso justificasse a ausência de digitais rastreáveis. No inquérito, entretanto, está registrada a informação de que a faca teria sido comprada por Adélio em Florianópolis, e fazia parte de um conjunto com outra, nunca apresentada. Portanto, se verdadeira a informação, a faca não tinha sido manipulada por muitas pessoas, já que não era de uso comum. Mas vá lá, as digitais sobrepostas poderiam ser do próprio Renato, do policial que o acompanhou, do empregado e do dono do carrinho de frutas
Mas aí surge outra contradição. “Quando peguei a faca, ela tinha sangue na lâmina”, me disse o Renato. “Não tinha sangue nenhum, eu mesmo entreguei a faca para os homens que vieram buscar”, declarou o dono do carrinho. Luiz Perensin, que tem 74 anos de idade, já não trabalha mais como vendedor de frutas. Ele teve um bar no bairro Fábrica, perto de sua residência, um sobrado num conjunto de moradias precárias que parece uma favela, a que se tem acesso por uma viela.
Localizei Perensin e travei com ele um diálogo tenso, eu na viela, ele no segundo andar da casa. “Você não levou facada nem eu, então não vou falar nada”, disse. Quando insistia para conversar com ele, apareceu a filha, muito nervosa, e tentou nos expulsar da viela (eu e o cinegrafista), um local público. Logo depois, ela desceu correndo, passou por mim e pelo cinegrafista e trancou o portão da viela. Quando tentei abrir, ela me agrediu com vários golpes com o celular na minha mão, ela do lado de fora do portão. Com esforço e, mesmo com a mão machucada, eu afinal consegui abrir aquele portão.
Por que ela queria me prender ali? Era para chamar a polícia? Se não tinha invadido o local — a viela é um acesso público —, a presença da polícia era desnecessária. Se fosse esse o caso, seria muito fácil me localizar, já que, mesmo de longe, eu me identifiquei como repórter do 247 e mostrei minha carteira de identidade, expedida pela Federação Nacional dos Jornalistas, que por lei tem o mesmo valor do RG. Dias depois, eu recebi o telefonema de uma pessoa que se dizia amiga dela e com uma ameaça velada para que não publicasse nada sobre Luiz Perensin.
Renato Júlio dos Santos, o homem que teria entregue a faca para Perensin, disse ainda na entrevista gravada que estava no ato de Bolsonaro como segurança dos vereadores bolsonaristas Charles Evangelista e Delegada Sheila, que acabariam se elegendo respectivamente deputado federal e deputada estadual. Charles confirmou que estava no ato, mas garantiu que a Delegada Sheila, hoje sua namorada, nem estava ali.
Vi centenas de fotos tiradas pelo jornalista Felipe Couri, do jornal A Tribuna, o único fotógrafo profissional que registrou toda a caminhada de Bolsonaro e apoiadores, do início, na Câmara Municipal, até o cruzamento da Halfeld com a Batista de Oliveira, onde ocorreu o episódio da facada ou suposta facada. E não localizei Renato nas fotos, em que é possível ver Charles Evangelista.
Procurado, o hoje deputado federal desmentiu Renato. “Eu não tinha nenhum segurança, nem conheço essa pessoa”, disse, na troca de mensagens por WhatsApp. Depois da entrevista gravada, Renato voltou ignorar minhas chamadas e minhas mensagens.
Procurei também outro integrante dessa rede de militares e paramilitares em Juiz de Fora que estava no ato como segurança voluntário, Hugo Alexandro Ribeiro. Foi ele quem protegeu Adélio logo depois do facada ou suposta facada, juntamente com um jovem musculoso, que estava de camiseta regata de bloco carnavalesco.
Os dois levaram golpes de apoiadores de Bolsonaro, mas preservaram a integridade física de Adélio. Hugo prestou depoimento à polícia, mas o jovem musculoso não —uma pessoa a quem mostrei a foto disse que ele é policial militar de um município vizinho, mas não soube dizer o nome, e ele não aparece no inquérito.
Também não aparece um jovem de cabelos cortados no estilo modernoso, como um DJ, que nas fotografias aparece o tempo todo ao lado de Adélio e, depois da facada ou suposta facada, em vez de procurar socorrer Bolsonaro, como outros fizeram, ou de agredir o autor do atentado, se aglomera ao lado dos seguranças, apenas para observar Adélio, sem agressividade.
Quando cheguei à casa do Hugo, o único entre eles que prestou depoimento, soube que havia falecido em fevereiro deste ano. A viúva, muito nervosa, falou por telefone e me ameaçou processar se escrevesse sobre o marido. Hugo tinha 44 anos e em fevereiro foi encontrado sem vida no prédio em que trabalhava de madrugada como porteiro. Ele estava sentado e, de acordo com médicos, teve um ataque cardíaco, me revelou um dos dois amigos que entrevistei, um bolsonarista fanático, outro apoiador hoje sem muito entusiasmo. Este, que sucedeu Hugo na presidência da associação de moradores do bairro de Costa Carvalho, contou que dias antes de falecer ouviu dele uma queixa sobre Bolsonaro.
“Ele me disse que estava magoado porque Bolsonaro nunca o procurou para agradecer pelo que fez naquele dia”, afirmou. Em 2019, Hugo chegou a registrar um boletim de ocorrência contra uma mulher que publicou no Twitter post em que levantava a hipótese da facada ter sido armação. Ele também foi atacado por bolsonaristas, por ter sido presidente do PSOL em Juiz de Fora antes da guinada para a extrema direita e de aderir a um grupo que se intitula Direita de Minas Gerais. Foi aí que acendeu a luz amarela. Adélio também foi do PSOL.
Se Hugo foi capaz de mudar radicalmente, o que garante que Adélio fosse mesmo um militante de esquerda quando, segundo depoimento dele, ouviu Deus lhe ordenar que esfaqueasse Bolsonaro. A apuração revelaria a hipótese de que uma ordem nesse sentido poderia ter sido mesmo dada a ele, mas não de Deus, mas de uma voz bem humana, a de Carlos Bolsonaro, mas esta é uma história que será relatada mais adiante. Fiquemos, por enquanto, com o perfil de Adélio.
Em seu primeiro depoimento ao delegado Rodrigo Morais, Adélio disse que atentou contra Bolsonaro por ter uma "ideologia diametralmente oposta” à do então candidato. Na sentença sobre o caso, o juiz destacou esse ponto, a partir da denúncia do Ministério Público Federal. “A motivação declarada pelo denunciado, com a ressalva da ilegitimidade da conduta que perpetrou, é compatível com seu histórico de militância”, afirmou o magistrado, para em seguida, com base na denúncia do MPF e o inquérito policial, lembrar que Adélio foi filiado ao PSOL, entre 2007 e 2014.
Mas o que a sentença não destaca é que Adélio, depois de sua desfiliação ao PSOL, procurou abrigo no PSD, que nunca foi um partido para brasileiros com “ideologia de esquerda”. Em 2016, Adélio enviou uma carta à justiça eleitoral em Uberaba, onde morava, para pedir desfiliação do partido de Gilberto Kassab e, em seus pertences, foi encontrado um cartão do então deputado Marcos Montes, do PSD, e um dos mais atuantes parlamentares da bancada ruralista até o fim de 2018.
Montes foi o autor de um projeto de lei que altera o processo de demarcação de terras indígenas e outro que pretendia criar uma CPI para investigar a atuação da Funai e do Incra durante o governo de Dilma Rousseff. Em 2018, ele perdeu a eleição, mas foi contemplado em 2019 por Jair Bolsonaro com um cargo importante no Ministério da Agricultura. Foi nomeado secretário-executivo, o número 2 da pasta.
A referência ao PSD e a Marcos Montes nunca foi destacada pela imprensa, talvez em razão de não haver autoridade que vazasse essa informação. Com a luz amarela acionada, minha atenção se concentrou para esclarecer a dúvida. E se Adélio, assim como o segurança que o protegeu, não fosse mais um militante de esquerda?
Numa noite de insônia, no hotel em Juiz de Fora, voltei a assistir aos vídeos de um enigmático canal do YouTube, o True or not, e encontrei a resposta. O autor fez um vídeo com postagens de Adélio no Facebook que o aproximavam da ideologia de Jair Bolsonaro.
Em 8 de setembro de 2013, quando já estava afastado do PSOL, mas ainda não formalmente desligado, ele defendeu pedágios militares nas fronteiras do Brasil, inclusive com a Venezuela, na época já uma obsessão dos bolsonaristas, para impedir a entrada de armas e drogas, ao mesmo tempo em que as instituições religiosas assumissem o trabalho de recuperação de dependentes químicos.
Em 2014, ano em que Bolsonaro já iniciava suas andanças pelo Brasil com vistas à eleição presidencial em 2018, Adélio defende que a Engenharia do Exército assuma a construção e a manutenção das rodovias federais. No mesmo ano, ele propõe a construção de mais hospitais militares, para que 50% dos seus leitos sejam destinados ao SUS. “Até a sociedade comum estaria usufruindo de seus serviços”, escreveu.
Em 18 de agosto, ele fez um post que poderia ser escrito por Bolsonaro ou um de seus filhos. Chamou Renan Calheiros, então presidente do Senado, de canalha, por supostamente ter escolhido o “melhor momento” para colocar em votação o projeto de emenda constitucional que reduzia a maioridade penal para 16 anos.
Para Adélio, foi "um tiro contra o cidadão de bem deste país”. Pouco antes, deputado estadual no Rio de Janeiro, Flávio tinha feito um discurso muito parecido. Adélio ainda escreveu que os policiais fizessem uma greve para forçar o governo — na época, Dilma Rousseff era presidente — a realizar um referendo para aprovar a redução da maioridade penal.
“89% dos brasileiros querem esta mudança”, destacou. E registrou que a polícia teria força para “obrigar o governo federal a fazer um referendo”. No post, ele ainda diz que a polícia já “está cansada de prender hoje e a Justiça solta amanhã”. Ele conclui o texto com uma mensagem dirigida aos "policiais do Brasil”: “Que Deus vos abençoe”.
Bolsonaro também dava muitas entrevistas sobre o tema e lembrava que o autor da proposta de redução da maioridade penal era ele. Ao falar do apoio da sociedade, citou um número pouco diferente do de Adélio: 90%.
Adélio escreve seus textos num português ruim, mas curiosamente suas postagens tem ilustrações que parecem sair de banco de imagens. “Um servente de pedreiro como ele não saberia usar esses recursos”, diz Fábio Morato, formado em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Santa Catarina, hoje morador da Nova Zelândia.
Ele pesquisou as redes sociais de Adélio e fez uma descoberta alarmante. Em 18 de julho deste ano, mesmo trancado num presídio de segurança máxima e proibido de usar a internet, o perfil de Adélio foi desativado no Facebook.
“Nesse mesmo dia, você e o Leonardo Attuch anunciaram numa live do 247 que fariam um documentário sobre o caso da facada”, disse-me ele, depois encaminhar dois prints. Um do horário em que fez a pesquisa, no dia da live, outro de algumas horas depois, quando retornou da academia e não encontrou mais as postagens de Adélio.
Uma postagem que já tinha sido salva pelo canal True or not mostra outra obsessão de Adélio ligada à ideologia de Bolsonaro, o projeto que criminaliza a homofobia. Ele publicou uma ilustração, falsamente atribuída a movimentos LGBTs, em que aparecem duas crianças se beijando e a frase “Ninguém nasce homofóbico”. Em texto próprio, Adélio rebateu.“Ninguém nasce gay, mas pode ser induzido a ser, inclusive nas escolas públicas”.
Um militante de esquerda escreveria algo desse tipo? Fábio Morato suspeita que o Facebook de Adélio poderia já estar sendo usado naquela época como parte de uma rede favorável a Bolsonaro, uma espécie de embrião do gabinete do ódio. Mas não há dúvida de que o próprio Adélio concordava com o ideário, como diz um sobrinho dele, Jéfferson Ramos de Souza.
Jéfferson me contou que acompanhou o tio em várias pregações dele em igrejas evangélicas de Montes Claros e ouviu Adélio falar sobre o kit gat (fake news muito difundida pelos bolsonaristas) e também atacar projeto que tramitava no Senado para criminalizar a homofobia.
"Ele falava muito sobre a liberdade religiosa e alertava para a ameaça dos pastores serem obrigados a realizar casamento homossexual”, disse. “As bandeiras do meu tio eram bolsonaristas. Ele só poderia ser chamado de esquerda por ser pobre e por defender maiores salários para os trabalhadores. Só nisso havia identificação alguma bandeira que poderia ser chamada de esquerda”, acrescentou.
Mesmo assim, minutos depois da facada ou suposta facada em Juiz de Fora, Adélio Bispo de Oliveira já era apresentado em rede nacional como o militante-de-esquerda-que-tentou-matar-Bolsonaro e pipocou a pergunta ainda hoje frequente entre os bolsonaristas: “Quem mandou matar Bolsonaro?”
Cacau Menezes, jornalista conhecido por suas posições de direita em Florianópolis, publicou em sua coluna na imprensa a foto de Adélio Bispo de Oliveira ao lado do ativista Luciano Mergulhador, e o texto:
"Adélio Bispo De Oliveira, de camisa vermelha na foto, suspeito de esfaquear o candidato Jair Bolsonaro nesta quinta-feira (6) em Juiz de Fora, andou por Floripa seguindo a turma do '"Fora Temer'”.
Logo depois, o site O Antagonista, na época apoiador entusiasmado da candidatura Bolsonaro, publicou a notícia de que Adélio visitara a Câmara dos Deputados em agosto de 2013 e tinha um registro de entrada naquele mesmo dia. Logo surgiu a tese de que ele tinha contatos no parlamento e alguém teria tentado criar um álibi para ele, caso conseguisse sair com vida e sem ser notado do episódio em Juiz de Fora.
Esse registro, muito explorado pela imprensa, não faz sentido algum, pois foi criado por volta das 18 horas daquele 6 de setembro, quando Adélio já tinha sido preso. Porém cumpriu uma função na narrativa que se seguiu ao episódio em Juiz de Fora. Em live, um dos diretores do Antagonista, Cláudio Dantas, disse que poderia ser um álibi para livrar Adélio da acusação de um crime.
Radialistas e jornais menores repercutiam raciocínios estapafútdios como este. O que nenhum jornalista procurou saber é quem procurou os registros de entrada na Câmara justamente para encontrar o nome de Adélio.
O inquérito da Polícia Federal informa que foram dois policiais legislativos, que agiram por iniciativa própria, sem que houvesse uma investigação formal sobre o caso. É razoável supor que alguém tenha dado a informação a eles, que foram buscar registro para vazar a veículos alinhados a Bolsonaro.
O funcionário que fez a busca a pedido dos policiais legislativos disse à PF ter gerado um novo registro de Adélio porque era a única forma de saber se ele tinha passado antes pela portaria. Esse funcionário disse que criou um segundo registro por ter feito nova pesquisa, por “curiosidade”.
Adélio estava prestando seu primeiro depoimento ao delegado Rodrigo Morais quando a “pesquisa” foi feita. Não foi o delegado quem solicitou, mas os policiais legislativos já tinham os dados sobre Adélio.
Logo surgiu a especulação de que Adélio teria ido à Câmara para visitar Jean Wyllys, do PSOL, desafeto de Bolsonaro. Foi uma fake news que se encaixou à narrativa que já estava sendo construída, a do militante-de-esquerda-que-tentou-matar-Bolsonaro.
De novo: em agosto de 2013, Adélio já estava distante do PSOL, mas continuava muito interessado em política, se aproximando do PSD e fazendo postagens de bandeiras conservadoras no Facebook.
A imprensa também não procurou saber quem era Luciano Mergulhador, o ativista que segurava um cartaz Renuncia Temer e Políticos Inúteis quando tirou foto com Adélio, em frente à Catedral de Florianópolis.
Luciano Carvalho de Sá é de Canoas, no Rio Grande do Sul, filho de um empresário do setor de calçados e que morou na Nova Zelândia, depois de fazer um curso de Ciências Sociais no estado gaúcho.
Ele se tornou amigo do jornalista Oswaldo Eustáquio quando foi para o Paranaguá para denunciar vereadores, liderando uma campanha que forçou a renovação do Parlamento nas eleições de 2016.
Logo depois, ele foi para Brasília, numa caravana de ultradireitistas, que invadiram o Congresso Nacional. Eu o entrevistei por quase duas horas no mesmo local onde tirou foto com Adélio. Luciano contou que treinou aqueles militantes para a invasão do Parlamento e mostrou uma foto publicada na primeira página da Folha de S. Paulo, em que aparece tentando impedir o deslocamento de um ônibus da Polícia Legislativa, que tentava dispersar os invasores.
Na foto, ele aparece com pés apoiados no pára-choque e com as mãos segurando o limpador do pára-brisa. Ele e os demais manifestantes pediam intervenção militar. Era a pauta da extrema direita na época.
Bolsonaro se manifestaria mais tarde, em maio de 2018, favorável à renúncia de Temer. Uma semana depois, Luciano Mergulhador acrescentava a sua lista de cartazes a mesma mensagem, encampada por Adélio ao tirar foto com o ativista.
Luciano diz que não conhecia Adélio, mas apresentou uma versão inconsistente ao dizer porque se encontrou com ele. O ativista disse que havia naquele dia duas manifestações, uma dos vestidos de amarelo e outra dos vestidos de vermelho. Adélio estaria entre os vestidos de vermelho e se aproximou dele, que estava no meio, para tirar a foto.
Ele não foi apenas fotografado, mas fotografou outras pessoas com Luciano Mergulhador. Uma delas é Leninha, que Luciano Mergulhador disse estar ali também participando da manifestação de esquerda. Ele próprio me passou o contato dela. Eu a procurei.
Leninha contou que não participava de manifestação alguma naquele dia.
“Eu trabalhava no centro, ali pertinho. Era horário de almoço, eu e minha colega fomos ali na Catedral comer um pastel e toar um caldo de cana. O Luciano Mergulhador estava lá, e eu já o conhecia de vista. Aí o Adélio pediu para eu tirar uma foto dele com o Luciano Mergulhador, e eu bati a foto, porque eu queria conhecer mais o Luciano. Eu bati a foto e foi só. Eu não participava de manifestação nenhuma. Eu só estava lá e o Adélio veio, bem gentil, e pediu para eu bater uma foto dele com o Luciano, e foi o que eu fiz”, disse Leninha ao 247.
Ao aparecer na foto ao lado de Adélio, Luciano Mergulhador, que tem proximidade com Luciano Hang, dono da Havan e investigado no inquérito sobre financiamento dos atos democráticos, foi alvo de ataques de bolsonaristas que não o conheciam.
“Eu tive que sair de Florianópolis e ficar escondido um tempo, porque poderia ser alvo de alguma violência”, afirmou. Mergulhador reclamou da falta de solidariedade de Bolsonaro e de seus filhos. “Eles poderiam ter se manifestado e dito que me conheciam e sabiam que eu não tinha nada a ver com a ideologia de Adélio”, disse. Em 2014, contou, ele se manifestou publicamente em defesa de Bolsonaro, quando o então deputado (e já em andanças pelo país com vistas à campanha de 2018) era criticado por ataques a mulheres.
Se Luciano fosse defendido pela família Bolsonaro — como ocorreu em relação a um dos seguranças atacados por bolsonaristas por aparecer dando um soquinho no então candidato a presidente quando este era carregado depois da suposta facada —, a narrativa de que Adélio era um militante de esquerda perderia força.
Luciano Mergulhador acha que foi abandonado à própria sorte, e foi mesmo. No entanto, continua na militância de direita — ele convocou seus seguidores para o protesto organizado por Jair Bolsonaro no dia 7 de setembro. Ele também apoiou o ato deste dia 12 organizado pelo MBL.
Em abril de 2020, Luciano Mergulhador deu entrevista a Oswaldo Eustáquio, em que falou ter ouvido de Adélio elogio a Jean Wyllys. Ele depois se retratou perante a Polícia Federal, e não fazia nenhum sentido este elogio de Adélio. Em seu Facebook, Adélio, fiel da Igreja do Evangelho Quadrangular, criticava as posições defendidas por Jean Wyllys sobre homofobia. No Facebook , ele não critica Jean Wyllys, mas uma das principais bandeiras que este defendia.
Florianópolis foi o palco de fatos que precisam ser devidamente investigados, não apenas o que está por trás daquela foto, tirada quatro meses antes do episódio em Juiz de Fora. Carlos Bolsonaro e o Clube Ponto 38 tentaram esconder que o filho de Bolsonaro dividiu o mesmo estande de tiro com Adélio. Na dinâmica normal das relações sociais, a probabilidade desse encontro seria muito pequena. Adélio era uma pessoa que vivia em condições quase miseráveis, mas muito focado em política.
Ao falar sobre o caso para a jornalista de extrema direita Leda Nagle, Carlos Bolsonaro diz que esteve em Florianópolis no último dia do curso de Adélio, 5 de julho de 2018. Ele omite que esteve no mesmo local que o autor do suposto atentado.
A porta voz do Clube de Tiro .38, Júlia Zanatta, mentiu à imprensa ao dizer que Adélio esteve uma única vez no local, e fez um cadastro e nunca mais voltou. Também declarou que Adélio não teria encontrado Carlos Bolsonaro no clube.
Chamado a depor, um dos donos da escola, Tony Eduardo de Lima e Silva Hoerhann, admitiu o encontro, e o instrutor de tiro, Rafael Machado, também depoente, narrou até o comportamento de Adélio naquele dia, o último de seu curso.
“Adélio, durante o intervalo, não permaneceu com o grupo (de que fazia parte Carlos Bolsonaro), tendo ido sentar em uma poltrona localizada a poucos metros de onde estavam os demais”, afirmou.
Procurei a escola, falei com o responsável pelo marketing e, por orientação dele, enviei e-mail. Pedi entrevista aos dois e também imagens do circuito interno do dia 5 de julho de 2018. Ninguém respondeu à minha mensagem.
O Clube de Tiro .38 surgiu depois de um escândalo que envolveu o desaparecimento de jóias que em R$ 660 mil. Em 1980, um avião da Transbrasil se chocou contra o Morro da Virgínia, em Ratones, no norte da Ilha de Santa Catarina, onde fica a maior parte de Florianópolis.
O titular da Delegacia de Homicídios da capital, Tim Omar de Lima e Silva, ficou responsável pelas jóias legais apreendidas da bagagem de um dos mortos, Manoel José do Nascimento, que estava se mudando para Florianópolis com o objetivo de abrir uma joalheria. Ele já tinha até sala alugada no Ceisa Center.
Dois anos depois, quando houve troca no comando da Secretaria de Segurança Pública do Estado, a caixa lacrada onde as jóias tinham sido guardadas foi aberta, e encontraram ali apenas pedras e dois blocos de argamassa. As jóias — guardadas sob a responsabilidade de Tim Omar de Lima e Silva — foram furtadas e jamais encontradas.
O policial José Paulo Martins Cardoso foi apontado por Tim como culpado pelo sumiço e o prendeu, mas o policial, em entrevista, disse ser inocente.
– Me sequestraram e me deixaram nove dias preso, incomunicável e sob tortura para eu confessar. Eu era o culpado perfeito, eles me odiavam porque eu era contra o sistema, era de esquerda – afirmou Matins Cardoso no documentário Transbrasil PT-TYS Voo 303, O Acidente que Florianópolis não Esqueceu, de Gilson Gihel.
O Clube de Tiro .38, dirigido hoje por dois filhos do delegado Tim Omar de Lima e Silva, é um dos dois em atividade na capital catarinense e municípios vizinhos, como São José, onde está sediado. O .38 é o maior e frequentado pela elite da região. A ligação com Carlos Bolsonaro fica evidente logo na entrada.
Na parede à esquerda, existem três quadros com homenagens que Carlos, em nome do Poder Legislativo do Rio de Janeiro, deu aos proprietários da empresa.
Depois de dividir com Adélio o mesmo espaço em 5 de julho de 2018, Carlos é visto dois meses depois a cerca de quatro metros de distância de Adélio. Foi no Parque Halfeld, Juiz de Fora, onde Bolsonaro iniciava a caminhada para, 300 metros adiante, ocorrer o episódio da facada ou suposta facada.
Uma gravação em vídeo mostra Adélio atrás do carro onde Bolsonaro, em cima do capô de uma Pajero preta, discursava. Atrás de Adélio havia policiais militares, que observavam um grupinho que protestava contra o então candidato. Adélio caminhava de um lado para o outro, com um jornal enrolado na mão. Ao ver Adélio, ele para e olha para o filho do candidato, que dá as costas e entra no carro rapidamente.
A Leda Nagle, ele diz que viu quando Adélio caminhava na sua direção. Ele diz que não saiu mais do carro. Estranho. Se suspeitou das intenções de Adélio, poderia chamar um dos muitos seguranças que o acompanham, juntamente com o pai. Além disso, como tinha dividido o mesmo espaço com Adélio no Clube de Tiro (um espaço pequeno, diga-se), ele poderia se lembrar dele.
A cena mais parece a reação de um homem preocupado em não ser visto conversando com Adélio naquele dia, 30 minutos antes da cena no cruzamento do calçadão da Halfeld com a rua Batista de Oliveira. Adélio, efetivamente, olha para ele, mas não parece ameaçador. Parece mais uma pessoa à espera de alguma orientação.
O caso, definitivamente, precisa ser reaberto, para seguir a linha de investigação que a Polícia Federal desprezou, a do auto-atentado.
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