Eurásia: a Vingança do Heartland
A cúpula comemorando o 20º aniversário da Organização de Cooperação de Xangai (OCX), em Dushanbe, no Tajiquistão, codificou nada menos que um novo paradigma geopolítico
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Por Pepe Escobar, no Asia Times
Tradução de Patricia Zimbres, para o 247
A cúpula comemorando o 20º aniversário da Organização de Cooperação de Xangai (OCX), realizada em Dushanbe, no Tajiquistão, codificou nada menos que um novo paradigma geopolítico.
O Irã, agora membro pleno da OCX, recuperou seu tradicional papel de proeminência na Eurásia, após o acordo de comércio e desenvolvimento no valor de 400 bilhões de dólares firmado com a China. O Afeganistão foi o principal tópico – e todos os atores concordaram quanto ao caminho a ser tomado daqui em diante, tal como detalhado na Declaração de Dushanbe. E todos os caminhos para a integração eurasiana agora convergem unanimemente no sentido de um novo paradigma geopolítico - e geoeconômico.
Chamemos esse paradigma de uma dinâmica de desenvolvimento multipolar em sinergia com a Iniciativa Cinturão e Rota (ICR).
A Declaração de Dushanbe menciona explicitamente o objetivo dos atores eurasianos: "uma ordem mundial mais representativa, democrática, justa e multipolar, embasada nos princípios universalmente reconhecidos do direito internacional, da diversidade cultural e civilizacional, da cooperação igualitária e mutuamente benéfica entre estados sob a coordenação central das Nações Unidas".
Apesar de todos os imensos desafios inerentes ao quebra-cabeça afegão, surgiram, nessa terça-feira, sinais esperançosos, quando Hamid Karzai e Abdullah Abdullah se encontraram em Cabul com o enviado do presidente russo Zamir Kabulov, com o enviado especial da China Yue Xiaoyong e com o enviado especial paquistanês Mohammad Sadiq Khan.
Essa troika – Rússia, China e Paquistão – ocupa a linha de frente diplomática. A OCX chegou ao consenso de que Islamabad irá coordenar, juntamente com o Talibã, a formação de um governo que também inclua tajiques, uzbeques e hazaras.
A consequência mais imediata e gritante de a OCX ter não apenas incorporado o Irã mas também agarrado o touro afegão pelos chifres, com o pleno apoio dos "istãos" da Ásia Central, é que agora o Império do Caos foi marginalizado por completo.
Do Sudoeste Asiático à Ásia Central, esse verdadeiro reset tem como protagonistas a OCX, a União Econômica da Eurásia (UEEA), a ICR e a parceria estratégica Rússia-China. Os elos que, por razões diferentes, ainda faltavam - o Irã e o Afeganistão - foram agora plenamente incorporados ao tabuleiro.
Em minhas frequentes conversas com Alastair Crooke, um dos principais analistas políticos do mundo, ele novamente evocou O Leopardo, de Lampedusa: tudo tem que mudar para que tudo permaneça o mesmo. Neste caso, a hegemonia imperial, tal como interpretada por Washington: "Em sua crescente confrontação com a China, Washington, impiedosamente, demonstrou que o que lhe interessa agora não é a Europa, e sim a região do Indo-Pacífico". Que é, por excelência, o terreno da Guerra Fria 2.0.
Com pouquíssimo potencial para conter a China, agora que foi praticamente expulsa do Heartland eurasiano, só resta a Washington recuar para a clássica posição de potência marítima: "o Indo-Pacífico livre e aberto", contando agora também com o Quad e o AUKUS, todo o esquema inventado na "tentativa" de preservar a decadente supremacia americana.
O gritante contraste entre o impulso de integração continental da OCX e a pantomima do "todos nós vivemos num submarino australiano" (com minhas desculpas a Lennon-McCartney) fala por si mesmo. Uma mistura tóxica de hubris e exasperação paira no ar, sem um mínimo de pathos para amortecer a queda.
O Sul Global não se deixou impressionar. Dirigindo-se ao fórum de Dushanbe, o Presidente Putin observou que a lista de países batendo às portas da OCX era imensa, o que não surpreendia a ninguém. Egito, Qatar e Arábia Saudita são agora parceiros que dialogam no âmbito da OCX, no mesmo nível do Afeganistão e da Turquia. É perfeitamente possível que no próximo ano Líbano, Síria, Iraque, Sérvia e mais uma dúzia de países venham se juntar a eles.
E não pára na Eurásia. Em uma fala à CELAC com timing meticulosamente programado, Xi Jinping simplesmente convidou 33 países da América Latina para participarem das Novas Rotas da Seda Eurasio-Afro-Americanas.
Lembrem-se dos citas
O Irã, agora protagonista da OCX e posicionado bem no centro das Novas Rotas da Seda, vê restaurado o papel histórico que lhe é de direito. Em meados do primeiro milênio A.C., os iranianos do norte dominavam o coração das estepes da Eurásia Central. Àquela época, os citas haviam migrado para a estepe ocidental, enquanto outros iranianos das estepes avançavam para o leste, às vezes até a China.
Os citas – um povo iraniano do norte (ou "leste") - não foram necessariamente apenas guerreiros ferozes. Isso não passa de um estereótipo tosco. São muito poucos os ocidentais que sabem que os citas desenvolveram um sofisticado sistema de comércio, descrito por Heródoto, entre outros, ligando a Grécia e a Pérsia à China.
E por que isso? Porque o comércio era essencial para o sustento de sua infraestrutura sociopolítica. Heródoto entendeu o que se passava porque ele chegou a visitar a cidade de Olbia e outros locais da Cítia.
Os citas eram chamados de saca pelos persas - o que nos leva a um outro território fascinante: os sacas talvez tenham sido um dos ancestrais mais antigos dos pashtuns do Afeganistão.
O que há em um nome - cita? Bem, muita coisa. A forma grega cita significava "arqueiro" do Irã do Norte. Essa, portanto, era a denominação dada a todos os povos do Norte do Irã que viviam entre a Grécia, no Ocidente, e a China, no Oriente.
Imaginem agora uma movimentadíssima rede de comércio internacional cruzando o Heartland com foco na Ásia Central, desenvolvida pelos citas, pelos sogdianos e até mesmo pelos xiongnus - que de tempos em tempos entravam em guerra contra a China, o que é narrado em detalhes por fontes históricas gregas e chinesas.
Esses centro-asiáticos mantinham relações de comércio com todos os povos que viviam ao longo de suas fronteiras, o que significava europeus e povos do Sudoeste, Sul e Leste Asiáticos. Eles foram os precursores das múltiplas Antigas Rotas da Seda.
Depois dos citas vieram os sogdianos. A Sogdiana, no terceiro século A.C., era um estado greco-báctrio independente, que incluía áreas do Norte do Afeganistão antes de ser conquistada por nômades vindos do Oriente, que acabaram por criar o império Kushan, que logo em seguida se expandiu em direção ao sul, rumo à Índia.
Zoroastro nasceu em Sogdiana e, durante séculos, o Zoroastrismo exerceu uma imensa influência na Ásia Central. Os kushans, por seu lado, adotaram o budismo, e foi assim que o budismo acabou chegando à China.
No primeiro século A.D., todos esses impérios centro-asiáticos conectavam-se - por meio de comércio de longa distância - ao Irã, à Índia e à China. Essa foi a base histórica das múltiplas Antigas Rotas da Seda que, durante vários séculos, ligaram a China ao Ocidente, até que a era das Descobertas instaurou o fatídico domínio ocidental sobre o comércio marítimo.
É possível afirmar que a denominação "Rota da Seda" funcione melhor como uma metáfora para a conectividade intercultural do que para designar uma série de fenômenos históricos interligados. É essa conectividade que está no cerne do conceito chinês de Novas Rotas da Seda. E pessoas comuns de toda a Ásia Central entendem essa ideia, porque ela está gravada no inconsciente coletivo iraniano, chinês e de todos os "istãos" da Ásia Central.
A vingança do Heartland
Glenn Diesen, Professor da Universidade do Sudeste Norueguês, e um dos editores da revista Russia in Global Affairs, está entre os principais acadêmicos que vêm analisando em profundidade o processo da integração da Eurásia.
Seu livro mais recente consegue contar praticamente a história toda no título: Europe as the Western Peninsula of Greater Eurasia: Geoeconomic Regions in a Multipolar World (A Europa como a Península Ocidental da Grande Eurásia: As Regiões Geoeconômicas em um Mundo Multipolar).
Diesen demonstra detalhadamente como uma "região da Grande Eurásia, integrando a Ásia e a Europa, vem sendo negociada e organizada em torno da parceria China-Rússia. Instrumentos eurasianos de poderio geoeconômico vêm gradualmente lançando as fundações de uma super-região dotada de novos e estratégicos setores industriais, corredores de transporte e instrumentos financeiros. Por todo o continente eurasiano, estados tão diferentes entre si como a Coreia do Sul, a Índia, o Cazaquistão e o Irã vêm criando diversos formatos para a integração eurasiana".
A Parceria da Grande Eurásia vem ocupando o centro da política externa russa desde, pelo menos, o fórum de São Petersburgo, em 2016. Diesen corretamente observa que "embora Pequim e Moscou compartilhem da ambição de construir uma grande região eurasiana, há diferenças entre os formatos propostos por cada uma delas. O denominador comum entre eles é a necessidade de uma parceria sino-russa vir a integrar a Eurásia". Esse foi o ponto que ficou bem claro na cúpula da OCX.
Não é de admirar que todo esse processo deixe o Império fortemente irritado, uma vez que uma Grande Eurásia liderada pela Rússia-China representa um ataque mortal à estrutura geoeconômica do Atlanticismo. O que nos leva ao ninho de víboras que é o debate sobre o conceito formulado pela União Europeia de "autonomia estratégica" com relação aos Estados Unidos, que seria essencial para estabelecer uma verdadeira soberania europeia - e, futuramente, uma maior integração à Eurásia.
A soberania europeia simplesmente não existirá enquanto sua política externa for submissa à dominatrix OTAN. A humilhante retirada unilateral do Afeganistão, somada à natureza exclusivamente anglo do AUKUS, ilustrou de forma mais que evidente que o Império não liga a mínima para seus vassalos europeus.
Ao longo de todo seu livro, Diesen demonstra com riqueza de detalhes que o conceito de uma Eurásia unificando Europa e Ásia "foi, através de toda a história, uma alternativa ao domínio das potências marítimas em uma economia mundial oceanocêntrica", e que "as estratégias britânicas e americanas sofreram a profunda influência" do fantasma de uma Eurásia emergente, "uma ameaça direta a sua posição de vantagem em uma ordem mundial oceânica".
Agora, o fator crucial parece ser a fragmentação do Atlanticismo. Diesen identifica três níveis nesse processo: o desacoplamento de fato da Europa e dos Estados Unidos propelido pela ascendência da China; as estarrecedoras divisões internas à União Europeia, exacerbadas pelo universo paralelo habitado pelo eurocratas de Bruxelas; e por último, mas não menos importante, "a polarização interna nos estados ocidentais" causada pelos excessos do neoliberalismo.
Bem na hora em que pensamos que havíamos conseguido escapar, Mackinder e Spykman nos puxam de volta para dentro. É sempre a mesma história: a obsessão anglo-americana em evitar a ascensão de um "par concorrente" (Brzezinski) na Eurásia, ou de uma aliança (Rússia-Alemanha, época de Mackinder, e agora a parceria estratégica Rússia-China) capaz de, nas palavras de Diesen, "arrancar o controle geoeconômico das mãos das potências oceânicas".
Por mais que os estrategistas imperiais continuem reféns de Spykman – que decretou que os Estados Unidos têm que controlar a periferia marítima da Eurásia - decididamente não é o AUKUS/Quad que conseguirá alcançar esse objetivo.
Muito poucas pessoas, no Oriente ou no Ocidente, se lembram de que Washington havia desenvolvido seu próprio conceito de Rotas da Seda durante os anos Clinton – mais tarde cooptado por Dick Cheney com um toque de Gasodutistão, e então dando uma volta completa e retornando a Hillary Clinton, que anunciou seu próprio sonho de Rota da Seda na Índia, em 2011.
Diesen nos faz lembrar que Hillary soava de forma extremamente semelhante a um proto-Xi: "Vamos trabalhar juntos para criar uma nova Rota da Seda. Não uma via única, como sua homônima, mas uma rede internacional de conexões econômicas e de transportes. O que significa construir mais ferrovias, mais rodovias e mais infraestrutura de energia, como o gasoduto proposto, indo do Turcomenistão, atravessando o Afeganistão e o Paquistão até chegar à Índia".
Hillary vai de Gasodutistão! Bem, no final das contas ela não foi. A realidade determina que a Rússia esteja conectando suas regiões europeias e do Pacífico, enquanto a China conecta seu litoral leste desenvolvido a Xinjiang, e ambos se conectam com a Ásia Central. Diesen interpreta esse movimento como a Rússia "completando sua conversão histórica de um império europeu-eslavo a um estado civilizacional eurasiano".
Então, ao final, nos vemos de volta aos ... citas. O conceito de neo-Eurásia dos dias de hoje recria a mobilidade das civilizações nômades - por meio de uma infraestrutura de transportes de primeira linha - para interligar tudo o que se localiza entre a Europa e a Ásia. Poderíamos chamar a isso de a Vingança do Heartland: são essas as potências que vêm construindo essa nova Eurásia interconectada. Digam adeus ao efêmero momento unipolar pós-Guerra Fria dominado pelos Estados Unidos.
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