Estilhaços
Não fazem por mal, o desemprego explodiu, mas as coisas vão melhorar para você, deve ter visto o camelô de bijus louvando as miçangas de nióbio, comentou sem esconder o sarcasmo.
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Encontraram-se na esquina. Nas vezes anteriores saudavam-se e cada um seguia seu caminho. Desta vez o mais bem arrumado parou, esticando a mão, carinhoso e simpático.
Quem é vivo sempre aparece. Por onde anda? Pergunta retórica, pensou. Disse qualquer coisa para encerrar logo a prosa sem devolver a amabilidade. O outro, aparentando angústia, desandou a falar.
Vou embora. Está impossível viver aqui. Voltei ontem da Europa. Portugal está bombando e o Brasil acabou. Relatou um negócio imobiliário em Lisboa, com jeitão de proposta de adesão na empreitada. Trocaram impressões sobre a estagnação da economia, com a usual superficialidade curitibana.
Estudaram juntos no tempo em que bom era o ensino público. Nos anos sessenta apenas vadios ou descontadinhos das ideias frequentavam as pepepês, papai-pagou-passou. Benário fez medicina, obteve relativo sucesso profissional e ajudou na criação do PSOL pela defesa que faz das pautas identitárias e progressistas. O outro ao voltar do kibutz casou bem com uma ruivinha jeitosa, em início de gravidez, assumindo a joalheria do sogro. Desde então tropeçam-se duas ou três vezes por ano em filas de cinema ou restaurantes, sem nunca conversarem muito. Amigos em comum os atualizavam periodicamente das respectivas trajetórias.
Jaiminho insistiu na análise de conjuntura. Tiveram acordo em tudo. Compartilharam a narrativa do que ocorreu, colocaram-se de acordo quanto ao desastre do governo atual, coincidiram nas vergonhas internacionais que temos passado e nos prognósticos pessimistas.
Os negócios estão parados. Essas porcarias de imóveis que comprei estão com rendimento mixuruca, sem falar nos atrasos nos aluguéis. Estou movendo cinco ações, gastando para despejar caloteiros. Ninguém compra jóias. E ainda falam em diminuir a taxa selic, meu dinheiro não rende nada. Melhor investir no exterior.
Não fazem por mal, o desemprego explodiu, mas as coisas vão melhorar para você, deve ter visto o camelô de bijus louvando as miçangas de nióbio, comentou sem esconder o sarcasmo.
Um cretino, nos expõem ao escárnio global. Não viu que a nota fiscal estava em ienes. Custou um punhado reais aquela correntinha vagabunda. O estúpido achou que era mil dólares e concluiu que o nióbio seria mais caro que o ouro. A nota estava em ienes. Dez gramas de nióbio vale doze reais; de ouro vale mil e setecentos. Dequeapoco os países exigirão teste psicotécnico ao conceder vistos para a entrada de brasileiros em suas fronteiras, como pudemos eleger esse demente? Se arrependimento matasse eu estaria seco e esturricado.
Irônico, provocou. Pelo menos tiramos a Dilma. Eu não votei nessa gente. Faz sentido sua conta. A anta de quichute achou que tinha custado em dólares algo por que pagou mil ienes. Uma indecência. Nem conta de câmbio consegue fazer.
Você é esquerdista, sempre foi, defensor dos frascos e comprimidos. Essa crise começou com ela, e com o Levy, exemplo de que não basta ser judeu para entender de dinheiro. Na saída da sinagoga, mês passado, comemoravam a forma da demissão dele. Mereceu. Estamos de acordo, contudo, que o país está indo para o fundo de um poço que não tem fundo, tem alçapão. O G20 virou G19, uma vergonha, desviavam do cretino que foi a uma churrascaria brasileira em Osaka por não gostar de comida japonesa. Que grosseria.
Benário, fazendo graça, ironizou mencionando o azar de terem descoberto os 39 quilos de drogas no avião presidencial, como disse aquele senil bravateiro que quer uma bola de cristal espanhola para cuidar da segurança institucional do governo. O que é errado é errado, o que é certo é certo.
Fiasco absoluto. Poderia ter sido uma bomba. E ficou muito feio o segundo avião evitar o pouso em Sevilha, alterando na última hora o plano de voo, quando avisaram ao beócio a respeito da apreensão das drogas. Lá em Lisboa fui ridicularizado, diziam que faltou um quilo, que o governo virou pó. Ser tratado como burro por portugueses é dose, de quebrar o caneco. Respondi que os traficantes brasileiros sempre preferiram confiar na competência da polícia portuguesa, mas eles não entenderam. Ainda assim vou me mudar para lá, no Brasil está tudo uma esculhambação. Esse jornalista está exibindo as vísceras do nosso sistema judicial, não temos mais segurança jurídica, ninguém vai querer investir aqui.
O médico entusiasmou-se. Enfim começara o inevitável processo de erosão na legitimidade em setores das elites. Uma faísca de otimismo eletrizou-o. Recitou brevemente trechos, citados de memória, das conversas de Moro com os procuradores e os comentários destes sobre o ministro da justiça. Tem muitos podres ainda para aparecer.
Seu interlocutor, com gestos exagerados, aquiesceu verberando sobre corrupção das instituições, fracasso civilizacional, conluios e inaceitáveis passapanismos.
Ambos ficaram surpresos. Em campos antagônicos por cinquenta anos os amigos de infância tinham agora a mesma percepção da realidade. Um deles lamentou, levado pela inusitada constatação dessas tardias afinidades, a ausência de reação das pessoas.
Era possível a reconciliação nacional. Também nisso estavam de acordo. Questão de tempo, soltarão o Lula, previu um; a prisão será perpétua, afirmou o outro. Uma divergência ínfima sobre o porvir. O diálogo tomou outro ritmo, polifônico. Quedelhe o senso crítico? Você, pelo que soube, nunca foi parcimonioso. Tanto faz se será solto ou se apodrecerá na cadeia. O Brasil, mais importante que qualquer pessoa, tem que virar a página, tem que produzir, criar riqueza. A prisão dele é política, vivemos um Estado de Exceção. Os ministrecos não estão à altura das exigências da história. Jamais admitirão que o golpe foi com supremo, com tudo. Devemos nos preocupar em reconstruir a nação, como no final da segunda guerra, sem ressentimentos. Concórdia.
Os fascistas inundaram as ruas em defesa do Moro. Sabem que ele e os aloprados da força-tarefa agiram fora da legalidade e os apoiam por causa disso. Meu avô veio com os pais dele, fugindo da Alemanha, logo depois da noite das vidraças quebradas no final de 1938. Os irmãos achavam que aquele horror praticado pelas falanges da juventude nazista era um episódio isolado. Morreram nos campos de concentração. Sou judeu, sei no que isso vai dar e não estarei no Brasil quando esses alucinados saírem do controle. Meu dinheiro eu já tirei daqui. Não suportaria viver em meio ao ódio.
Você está exagerando. O pior já passou. Os fascistas daqui são covardes. As metafóricas vitrines foram quebradas com o golpe. A imagem, todavia, é pertinente. Psicólogos de Chicago conceberam a teoria das janelas quebradas. Se uma vidraça de um edifício abandonado for quebrada, logo outras receberão pedradas e, em pouco tempo, será inteiramente depredado. Caso o vandalismo não seja prontamente reprimido a destruição será inevitável. A lava-jato vem lapidando - no outro sentido da palavra - a ordem jurídica há muito tempo, os justiceiros ficaram ingovernáveis. Com a morte do Teori nosso judiciário renunciou a colocar focinheira naqueles cães raivosos, como na Alemanha em 1939. Enquanto o Lula permanecer injustamente preso essa tensão continuará a crescer, retorquiu Benário. O que é justo é justo, o que é injusto é injusto. A reação virá antes do que se previa. Tudo tem limite. As contradições criarão o germe da autodestruição de tudo isso, pode escrever.
Sentindo-se seguro e também reconfortado pelas análises confluentes, Jaiminho avançou: temos que reagir, os setores lúcidos do empresariado cansaram do Guedes, esperam só a reforma da previdência para rifá-lo, parte das forças armadas conspira contra quem abandonou o pijama para passar vergonha no governo. Os fascistas foram às ruas pedindo isso e haverão de se arrepender. A única maneira de combater essa gente é a intervenção militar. Aproxima-se a hora do Mourão tomar as rédeas. Deveria ter deixado os milicianos no Japão, aproveitado os escândalos do Moro e da cocaína presidencial. O Judiciário capachildo está sob coturnos - uns frouxos -, engoliria tudo com farofa. Ninguém mais aguenta. Um desses generais tem que dar um murro na mesa e acabar com essa pouca-vergonha. Só espero que não seja da ala que homenageou o Otto von Westernhagen, o nazista condecorado por Hitler. Nas Forças Armadas nem todos estão de acordo com esse disparate, a maioria apoia Netanyahu, um verdadeiro herói de Israel.
Desfez-se a aparente concordância. Coincidiam nas narrativas, nas percepções e nos diagnósticos, mas extraíam deles consequências antitéticas.
Já não havia nada a dizer. Prometeram-se telefonemas, sem falta, continuar em contato e seguiram seus caminhos, como sempre, cada um para um lado.
Crônica DE QUINTA para o 247, por Wilson Ramos Filho (Xixo), 04/07/2019
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