Estamos produzindo ciência ou reproduzindo desigualdades? - [Re]pensando o papel da Universidade pública em meio a pandemia
Temos a - nada difícil - escolha entre um ensino conteudista, cujo objetivo é dar créditos para obter o máximo de egressos possíveis, ou podemos estudar o fim do mundo como conhecemos de forma a propor um mundo novo
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Coautoria de Gercidio Valeriano
Graduando no Bacharelado Interdisciplinar em Ciências e Humanidades e pesquisador na área de Cartografia e Antropologia Urbana
Nas últimas semanas o mundo todo tem discutido sobre como lidar com a atual crise sanitária, causada pela pandemia de Covid-19. Diante das recomendações sanitárias, escolas e universidades em todo o Brasil foram, aos poucos, suspendendo suas atividades por tempo indeterminado. Mesmo sem acreditar na pandemia e até mesmo recomendando o intitulado ‘isolamento vertical’, o governo Bolsonaro rapidamente emitiu uma portaria flexibilizando as regras de Ensino à Distância para todas as instituições federais [1]. Há, inclusive, pelas falas do Ministro em sua rede social - que, convenhamos, virou o canal oficial do governo - um incentivo do MEC para que se dê continuidade ao ensino utilizando tecnologias de informação e comunicação.
As universidades privadas rapidamente instituíram planos emergenciais de continuação dos estudos na modalidade EaD, seguindo as recomendações do MEC, progredindo, então, a todo vapor com as atividades acadêmicas. O grande debate fica por conta das instituições públicas. Faculdades da USP aderiram - e já enfrentam problemas - a Unicamp deve decidir nesta primeira semana de abril e duas das federais mais importantes do país, UFRJ e UFMG, posicionaram-se contrárias ao EaD, optando pela suspensão das atividades.
Na UFABC, que tem em seu projeto pedagógico instituído o sistema quadrimestral e a formação interdisciplinar, há um grande debate que mobiliza a comunidade acadêmica. A proposta da reitoria tem como foco continuidade às aulas do quadrimestre abruptamente interrompido, por meio do intitulado Ensino Continuado Emergencial (ECE), usando ferramentas de ensino a distância, sejam síncronas ou assíncronas. A gestão da universidade faz um esforço louvável ao tentar não caracterizar o ECE como um EaD, mas, na prática, nos fazem lembrar de Geraldo Alckmin, então governador de São Paulo, no meio da crise de abastecimento de água em 2015, dizendo que não havia racionamento, mas, sim, uma ‘diminuição da pressão’ para justificar a falta d’água nas torneiras de todo estado [2].
A UFABC historicamente coloca-se como protagonista em inclusão social - um dos pilares de sua missão institucional, ratificado no Projeto Pedagógico Institucional. Foi a primeira universidade do Brasil a ter 50% de cotas para alunos oriundos de escolas públicas, instituiu cotas raciais, para refugiados e, mais recentemente, para pessoas trans. Nota-se, portanto, que há uma preocupação com políticas afirmativas.
A grande discussão em relação à implantação do tal ECE tem como cerne justamente os grupos em alguma situação de vulnerabilidade ou que não tenham as condições necessárias para prosseguir com os estudos diante do cenário de pandemia. E essas condições não são somente materiais que envolvem possuir ou não um computador de uso pessoal e internet banda larga de boa velocidade e estável. Falamos aqui de uma situação de excepcionalidade, de pandemia, questões sanitárias, crise econômica, social, política e institucional que, a cada pronunciamento das autoridades pode se agravar. Há um quadro de elevado número de desempregados e trabalhadores informais que terão inevitavelmente suas vidas alteradas e suas possibilidades ainda mais escassas. Estamos falando em, mesmo livres da doença, de sobrevivência.
Ora, em meio a tudo isso, quais grupos serão mais afetados? Sim, aqueles que com muita luta conquistaram o direito de estudar em uma universidade pública, gratuita, de qualidade e inclusiva - e que pode, inclusive, aumentar a cada dia. E o que faz o corpo diretivo - não somente da UFABC, que fique claro - diante da maior crise das últimas décadas? Exclui. A proposta do EaD sem preparo prévio, formas de minimamente prover condições equânimes ou compensatórias, é excludente. O discurso de ‘salvamos quem for possível agora, os que têm condições, e os que não têm deixamos para depois’ que, de modo geral, baliza o pensamento dos proponentes do ECE, é excludente e acentua as desigualdades já tão evidentes em nosso país.
Uma outra face do discurso é a de continuação das atividades do ensino como uma resposta ao ‘investimento feito pelo contribuinte’, fortalecendo a relação de mercado na educação - comum em instituições privadas, mas inaceitável em públicas. Em Ideias Para Adiar o Fim do Mundo, Ailton Krenak observa de forma crítica a humanidade homogênea, o tal clube da humanidade que transformou cidadania em consumo, concordando com o ex-presidente do Uruguai José Mujica [3], quando afirma ter conseguido transformar os pobres em bons consumidores, mas não em cidadãos. Ailton, em seu livro, traz alguns questionamentos importantes sobre a questão: "Para que ser cidadão? Para que ter cidadania, alteridade, estar no mundo de uma maneira crítica e consciente se você pode ser um consumidor? Essa ideia dispensa a experiência de viver numa terra cheia de sentido, numa plataforma para diferentes cosmovisões" [4].
Essas perguntas ressoam e convergem em reflexões mais que necessárias. Ora, se consumimos tudo, também consumimos ensino, a educação, o aprendizado, observamos isso facilmente, uma vez que o ensino bancário só se fortaleceu desde que Paulo Freire cunhou o termo. No meio das discussões não é difícil perceber que muitos colegas universitários ainda acreditam nesse ensino bancário e vêem a experiência numa federal reduzida a oportunidade de inserção no mercado de trabalho e ascensão social, o que é compreensível e justificável no contexto capitalista que vivemos. Mas quando falamos em defesa da educação é necessário irmos além e de forma crítica.
Outros educadores também dizem isso, como Saviani e Milton Santos. O primeiro observa a reordenação do processo educativo de modo que o torne "objetivo e operacional". E Milton fala sobre a ocupação do "saber prático" em detrimento do filosófico, como forma de inserção dos egressos no mercado de trabalho, "uma prática que, a médio prazo, ameaça a democracia, a República, a cidadania e a individualidade”.
Em tempos de um governo inapto, que quando não é o causador da crise é o agravante. Em tempos em que o Ministério da Educação é o maior responsável pelo sucateamento do ensino e negação das ciências, seja por meio do obscurantismo ou do corte de verbas, precisamos repensar o papel político e a função social das universidades públicas. Temos a - nada difícil - escolha entre um ensino conteudista, cujo objetivo é dar créditos para obter o máximo de egressos possíveis, ou podemos estudar o fim do mundo como conhecemos de forma a propor um mundo novo, fundamentado na pesquisa científica, pensamento crítico e formação cidadã.
[1] Portaria do MEC N° 345, de 19 de março de 2020. Disponível em: https://abmes.org.br/arquivos/legislacoes/Portaria-mec-345-2020-03-19.pdf
[2] Alckmin: redução de pressão só atinge quem não tem caixa d’água. Istoé, 26/02/2015. https://istoe.com.br/406526_ALCKMIN+REDUCAO+DE+PRESSAO+SO+ATINGE+QUEM+NAO+TEM+CAIXA+DAGUA/
[3] Transformamos pobres em consumidores e não em cidadãos, diz Mujica. BBC, 21/12/2018. https://www.bbc.com/portuguese/brasil-46624102
[4] KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. Companhia das Letras, 2019.
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