Estados Unidos/OTAN versus Rússia-China em uma guerra híbrida ‘vencer ou morrer’

O que ocorreu nos últimos dias entre Anchorage e Guilin continua a reverberar. Ao enfatizar que Bruxelas "destruiu" a relação entre a Rússia e a União Europeia, o chanceler russo Sergey Lavrov ressaltou que a parceria estratégica ampla Rússia-China fica mais forte a cada dia que passa

Sergei Lavrov e Wang Yi
Sergei Lavrov e Wang Yi


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Por Pepe Escobar, para o Asia Times

Tradução de Patricia Zimbres, para o 247

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Comecemos com um alívio cômico: o "líder do mundo livre" prometeu evitar que a China venha a se tornar a "principal" nação do planeta. E, para cumprir uma missão tão excepcional, ele "espera" concorrer novamente à presidência em 2024. Não como um holograma. E com a mesma companheira de chapa.

Agora que o "mundo livre" deu um suspiro de alívio, voltemos a assuntos sérios - nos moldes da Chocada e Aterrorizada  Geopolítica do Século XXI.  

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O que ocorreu nos últimos dias entre Anchorage e Guilin continua a reverberar. Ao enfatizar que Bruxelas "destruiu" a relação entre a Rússia e a União Europeia, o chanceler russo Sergey Lavrov ressaltou que a parceria estratégica ampla Rússia-China fica mais forte a cada dia que passa.

Uma sincronicidade não tão ocasional revelou que, enquanto Lavrov  estava sendo recebido da maneira correta pelo anfitrião, o Ministro das Relações Exteriores Wang Yi, em Guilin – com um almoço na bela paisagem do rio Li -, o Secretário de Estado dos Estados Unidos Tony Blinken visitava a sede à la James Bond da OTAN, nos arredores de Bruxelas.

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Lavrov deixou bem claro que o cerne da questão Rússia-China gira em torno do estabelecimento de um eixo econômico e financeiro que se contraponha  ao acerto Bretton Woods. O que implica proteger Moscou e Pequim de "ameaças de sanções por outros estados", a progressiva desdolarização e o avanço da criptomoeda.  

Essa "tripla ameaça" é o que vem desencadeando a fúria desenfreada do Hegêmona.    

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Em um espectro mais amplo, a estratégia Rússia-China também implica que a interação progressiva entre a Iniciativa Cinturão e Rota (ICR) e a União Econômica Eurasiana (UEEA) irá acelerar por toda a Ásia Central, Sudeste Asiático, partes do Sul da Ásia e Sudoeste Asiático os passos necessários em direção ao um futuro mercado eurasiático unificado sob um tipo estratégico de direção sino-russa. 

No Alasca, a equipe Blinken-Sullivan aprendeu, a um alto preço, que não se brinca impunemente com um Yoda como Yang Jiechi. Agora, eles estão prestes a aprender o que significa brincar com Nikolai Patrushev, dirigente do Conselho de Segurança Russo. 

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Patrushev, tão Yoda quanto Yang Jiechi e um mestre do understatement, passou uma mensagem muito pouco críptica: se os Estados Unidos resolverem criar "dias difíceis" para a Rússia, do tipo "eles estão planejando isso, eles podem implementar aquilo", Washington será responsável pelas medidas que eles tomariam".

O que a OTAN realmente planeja fazer 

Enquanto isso, em Bruxelas, Blinken encenava um diálogo  de Casal Perfeito  com a espetacularmente ineficiente diretora da Comissão Européia (CE) Ursula von der Leyen. O script era mais ou menos assim. "O Nordstream 2 é muito ruim para você. Um acordo de comércio e investimentos com a  China é muito ruim para você. Agora, sentada! Muito bem, garota!"

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Então veio a OTAN, que montou o show  completo, tendo até foto de todos os chanceleres posando de valentões em frente à sede. Isso foi parte de uma cúpula que, como era de se prever, não "celebrou" o décimo aniversário da destruição da Líbia pela OTAN, nem o grande chute na bunda que a OTAN "sofreu" no Afeganistão.

Em junho de 2020, o secretário-geral de papelão da OTAN, Jens Stoltenberg – na verdade, os militares americanos que o controlam - apresentou o que é conhecido como a estratégia OTAN 2030, que se resume a um mandato político-militar Robocop Global. O Sul Global não foi avisado.

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No Afeganistão, segundo um Stoltenberg impermeável à ironia, a OTAN apóia infundir "nova energia no processo de paz". Nessa cúpula, os ministros da OTAN também discutiram o Oriente Médio e o Norte da África e - de cara dura -  examinaram "o que mais a OTAN poderia fazer para construir estabilidade na região". Sírios, iraquianos, libaneses, líbios e malis gostariam de ter maiores informações.  

Após a cúpula, Stoltenberg deu uma proverbialmente sonolenta entrevista coletiva, cujo principal foco foi - o que mais seria - a Rússia e seu padrão de "comportamento repressivo internamente e agressivo externamente".
Toda a retórica tratando da "construção de estabilidade" pela OTAN se desfaz quando se examina o que realmente está por trás do OTAN 2030, lendo o carnudo relatório de "recomendações" escrito por um bando de "especialistas". 

Aqui, ficamos sabendo dos três pontos essenciais: 

1. "A Aliança tem que responder às ameaças e ações hostis russas (…) sem uma volta à normalidade, salvo se houver alterações no comportamento agressivo da Rússia e sua volta ao pleno cumprimento do direito internacional. 

2. A China é retratada como um tsunami de "ameaças de segurança": "A Aliança deve infundir a ameaça chinesa por todas as estruturas existentes e examinar a possibilidade de criar um órgão consultivo para discutir todos os aspectos dos interesses de segurança dos Aliados face à China". A ênfase recai sobre "a defesa contra qualquer atividade chinesa que possa impactar a defesa coletiva, a prontidão militar ou a resiliência na Área de Responsabilidade do Comando Aliado Supremo da Europa (SACEUR)". 

3. "A OTAN deve traçar o esboco de um projeto global (itálicos meus) buscando o melhor uso de suas parcerias no sentido de fomentar os interesses estratégicos da OTAN. Ela deve abandonar seu atual enfoque movido a demandas em favor de um enfoque movido a interesses (itálicos meus), e examinar a possibilidade de fornecer fluxos de recursos mais estáveis e previsíveis para as atividades da parceria. A Política de Portas Abertas da OTAN deve ser mantida e fortalecida. A OTAN deve expandir e fortalecer as parcerias com a Ucrânia e a Geórgia".

Um brinde à Tripla Ameaça. Mas o Grande Sucesso da Parada - quer dizer, os gordos e suculentos contratos do complexo industrial-militar - na verdade, está aqui: 

O desafio geopolítico mais profundo é colocado pela Rússia. Embora a Rússia com base em mensurações econômicas e sociais seja uma potência em declínio, ela se mostrou capaz de agressão territorial e tende a permanecer uma grande ameaça para a OTAN ao longo da próxima década.  

A redação pode ser da OTAN, mas o script vem direto do Deep State - contendo a Rússia "buscando hegemonia", ampliando a Guerra Híbrida (o conceito, na verdade, foi inventado pelo Deep State) e manipulando assassinatos e envenenamentos cibernéticos sancionados pelo estado - usando de armas químicas, coesão política e outros métodos para violar a soberania dos Aliados". 

Pequim, de sua parte, vem usando de força contra seus vizinhos, bem como coesão econômica e diplomacia de intimidação que vai bem além da região do Indo-Pacífico. Ao longo da próxima década, a China provavelmente irá desafiar a capacidade da OTAN de construir resiliência coletiva". 

O Sul Global deveria ter pleno conhecimento do compromisso da OTAN em salvar o "mundo livre" desses males autocráticos.

A interpretação que a OTAN faz de "Sul" abrange o Norte da África e o Oriente Médio, na verdade qualquer lugar entre a África Subsaariana e o Afeganistão. Qualquer semelhança com o supostamente finado conceito de "Grande Oriente Médio"  da era Bush filho não é acidental. 

A OTAN insiste em que essa vasta região é caracterizada por "fragilidade, instabilidade e insegurança" - recusando-se, é claro, a revelar seu papel de perpetradora serial de instabilidade na Líbia, no Iraque, em partes da Síria e no Afeganistão. 

Porque, em última análise... é tudo culpa da Rússia: "Para o Sul, os desafios incluem a presença da Rússia e, em menor medida, da China, que exploram as fragilidades regionais. A Rússia reinseriu-se no Oriente Médio e no Leste do Mediterrâneo. Em 2015, ela interveio na Guerra Civil da Síria e lá continua. A política russa para o Oriente Médio provavelmente irá exacerbar as tensões e as lutas políticas por toda a região, uma vez que ela encaminha um volume cada vez maior de recursos políticos, financeiros, operacionais e logísticos a seus parceiros. A influência da China por todo o Oriente Médio também vem crescendo. Ela assinou uma parceria estratégica com o Irã, é o maior importador de petróleo cru do Iraque, intrometeu-se no processo de paz do Afeganistão  e é o maior investidor estrangeiro na região. 

Aqui, em resumo e não exatamente em linguagem código, está o mapa de percurso da OTAN até 2030 para  hostilizar e desmontar  todo e qualquer nicho de integração eurasiana, em especial os mais diretamente ligados aos projetos de infraestrutura/conectividade das Novas Rotas da Seda (Investimentos no Irã, reconstrução da Síria, reconstrução do Iraque, reconstrução do Afeganistão). 

A narrativa é a de "um enfoque de 360 graus na segurança" que "tornar-se-á um imperativo". Tradução: A OTAN vai tentar abocanhar vastas regiões do Sul Global, com força total, sob o pretexto de "tratar tanto das ameaças tradicionais originárias dessa região, como o terrorismo, e os novos riscos, entre eles a crescente presença da Rússia e, em menor grau, da China". 

Guerra híbrida em duas frentes

E pensar que em um passado nem tão distante houve alguns lampejos de lucidez emanando do establishment dos Estados Unidos.

Muito poucos irão lembrar que, em 1993, James Baker, antigo Secretário de Estado de Papai Bush, propôs a ideia de ampliar a OTAN para incluir a Rússia que, naquela época, sob Yeltsin e uma gangue de livre-mercadistas à la Milton Friedman, estava devastada, mas era uma "democracia. Mas Bill Clinton já estava no poder, e a ideia foi devidamente descartada.

Seis anos mais tarde, ninguém menos que George Kennan – que, para começo de conversa, foi quem inventou a contenção da URSS - determinou que a anexação pela OTAN dos antigos satélites soviéticos era "o início de uma nova Guerra Fria" e um erro trágico. 

É imensamente esclarecedor reviver e reestudar a totalidade da década decorrida entre a queda da URSS e a eleição de Putin para a presidência no livro do venerável Yevgeny Primakov,  Russian Crossroads: Toward the New Millenium  (A Encruzilhada Russa: Rumo ao Novo Milênio), publicada nos Estados Unidos pela Yale University Press.

Primakov, a epítome do especialista em inteligência, que começou como correspondente do Pravda no Oriente Médio, foi ministro das relações exteriores e também primeiro-ministro, olhou bem fundo na alma de Putin, repetidamente, e gostou do que viu: um homem íntegro e um profissional impecável. Primakov foi um multilateralista avant la lettre, o instigador conceitual do RIC (Rússia-índia-China), que na década seguinte evoluiu para o BRICS.

Bons dias aqueles - faz exatamente 22 anos - quando Primakov voava para Washington e recebeu um telefonema do então vice-presidente Al Gore: os Estados Unidos iam começar o bombardeio da Iugoslávia, um aliado eslavo-ortodoxo da Rússia, e não havia nada que a ex-superpotência pudesse fazer. Primakov ordenou que o piloto desse meia volta e retornasse a Moscou. 

Agora a Rússia é forte o suficiente para colocar seu próprio conceito de Grande Eurásia, que, nas etapas seguintes irá equilibrar - e complementar - as Novas Rotas da Seda da China. É o poderio da Dupla Hélice – que fatalmente irá atrair setores importantes da Europa Ocidental, e é isso que está deixando estonteada e confusa a classe dominante dos Estados Unidos.

Glenn Diesen, autor de Russian Conservatism: Managing Change Under Permanent Revolution (Conservadorismo Russo: Gerenciando a Mudança sob a Revolução Permanente), que analisei em  Why Russia is Driving the West Crazy (Por que a Rússia vem enlouquecendo o Ocidente) e um dos melhores analistas globais da integração eurasiana, resumiu toda a situação: "Os Estados Unidos tiveram muita dificuldade em converter a dependência de segurança dos aliados em lealdade geoeconômica, o que fica evidente no fato de os europeus continuarem comprando tecnologias chinesas e energia russa".
Daí o permanente Dividir e Dominar,  focando uma de suas principais metas: use de lisonja, força, suborno e todas as opções acima para que o Parlamento Europeu venha a travar o acordo de comércio-investimentos China-União Europeia.
Wang Yiwei, diretor do Centro de Estudos Europeus da Universidade  Renmin e autor do melhor livro made in China sobre as Novas Rotas da Seda, percebe com clareza o que está por trás de toda a bazófia do "A América está de volta": "a China não foi isolada pelos Estados Unidos, pelo Ocidente e nem mesmo pela comunidade internacional. Quanto mais hostilidade eles mostram, maior sua ansiedade. A frequência com que os Estados Unidos viajam pelo mundo para pedir apoio, unidade e ajuda a seus aliados,   mostra o enfraquecimento da hegemonia norte-americana".

Wang chega a prever o que pode acontecer se o atual "líder do mundo livre" não conseguir cumprir sua excepcional missão: "Não se deixem enganar pelas sanções entre China e União Europeia, que são inofensivas ao comércio e aos laços econômicos. Além disso, e os líderes da União Europeia não serão estúpidos ao ponto de abandonar por completo o Acordo Amplo sobre Investimentos China-União Europeia, porque eles sabem que jamais conseguirão um acordo tão favorável quando Trump e o trumpismo voltarem à Casa Branca".

A Chocada e Aterrorizada Geopolítica do século XXI, tal como configurada nessas duas últimas e cruciais semanas, indica que o Movimento Unipolar está morto e enterrado. O Hegêmona jamais admitirá esse fato. Daí o contra-ataque da OTAN, que foi pré-programado. Em última análise, o Hegêmona decidiu não se engajar em acertos diplomáticos, e sim lançar-se a uma guerra Híbrida de duas frentes contra uma parceria estratégica implacavelmente demonizada de concorrentes de igual nível.

E, como sinal destes tristes tempos, não há um James Baker ou um George Kennan para aconselhar contra tamanha loucura.

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