Estado suicidário



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Por Vladimir Safatle

(Publicado no site A Terra é Redonda)

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Reflexões sobre o fascismo e os problemas do uso político do conceito de pulsão de morte

La vie est un minotaure, elle dévore l’organisme (Buffon).

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Gozar do sacrifício de si

Na longa e dispersa tradição dos autores que se dedicaram a descrever a economia libidinal do fascismo, há ao menos um ponto surpreendente de convergência. É provável que ele tenha sido formulado pela primeira vez por Theodor Adorno, já em 1946. Voltemos à conclusão de seu texto “Antissemitismo e propaganda fascista”:

Nesse ponto, deve-se prestar atenção à destrutividade como o fundamento psicológico do espírito fascista […] Não é acidental que todos os agitadores fascistas insistam na iminência de catástrofes de alguma espécie. Enquanto advertem de perigos iminentes, eles e seus seguidores se excitam com a ideia da ruína inevitável sem sequer diferenciar claramente entre a destruição de seus inimigos e de si mesmos […] Este é o sonho do agitador: uma união do horrível e do maravilhoso, um delírio de aniquilação mascarado como salvação (Adorno, 2015, p. 152).

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Ou seja, trata-se de falar da destrutividade como “fundamento psicológico” do fascismo, e não apenas como característica de dinâmicas imanentes de lutas sociais e processos de conquista. Pois, se fosse questão apenas de descrever a violência da conquista e da perpetuação do poder, seria difícil compreender como se chega a esse ponto em que não seria sequer possível diferenciar claramente entre a destruição de seus inimigos e de si mesmos, entre a aniquilação e a salvação. Para dar conta da singularidade desse fato, Adorno falará, décadas depois, de um “desejo de catástrofe”, de “fantasias de fim de mundo” que ressoam socialmente estruturas típicas de delírios paranoicos (Adorno, 2019, p. 26).[i]

Colocações como essas de Adorno visam expor a singularidade dos padrões de violência no fascismo. Pois não se trata apenas da generalização da lógica de milícias dirigidas contra grupos vulneráveis, lógica através da qual o poder estatal se apoia em uma estrutura paraestatal controlada por grupos armados. Também não se trata apenas de levar sujeitos a acreditarem que a impotência da vida ordinária e da espoliação constante será vencida através da força individual de quem enfim tem o direito de tomar para si a produção autorizada da violência. A esse respeito, sabemos como o fascismo oferece certa forma de liberdade, ele sempre se construiu a partir da vampirização da revolta.[ii] Nem se trata de junção entre indiferença e violência extrema contra grupos historicamente violentados. Essa articulação não precisou esperar o fascismo para aparecer, mas está presente em todos os países de tradição colonial, com suas tecnologias de destruição sistemática de populações.[iii]

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No entanto, se Adorno fala de “fundamentação psicológica”, é porque se faz necessário compreender a violência, principalmente, como dispositivo de mutação psíquica. Uma mutação que teria como eixo de desenvolvimento certa generalização da destrutividade às formas de relação a si, ao outro e ao mundo. Nesse horizonte, a psicologia é chamada para quebrar a ilusão econômica dos indivíduos como agentes maximizadores de interesses. Ao contrário, seria necessário não ignorar investimentos libidinais em processos nos quais os indivíduos claramente investem contra seus interesses mais imediatos de autopreservação.

Esse diagnóstico de uma corrida em direção ao autossacrifício, em um processo no qual a figura do Estado protetor parece dar lugar a uma espécie de Estado predador que se volta inclusive contra si mesmo.[iv] Estado animado pela dinâmica irrefreável de autodestruição de si e da própria vida social, não era exclusivo dos frankfurtianos. Ele podia ser encontrado também nas análises de Hannah Arendt. Basta lembrarmos como, em 1951, Arendt (2013, p. 434) falava do fato espantoso de que aqueles que aderiam ao fascismo não vacilavam mesmo quando eles próprios se tornavam vítimas, mesmo quando o monstro começava a devorar seus próprios filhos.

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Esses autores eram sensíveis, entre outros, ao fato de a guerra fascista não ter sido uma guerra de conquista e estabilização. Ela não tinha como parar, dando-nos a impressão de estarmos diante de um “movimento perpétuo, sem objeto nem alvo”, cujos impasses só levavam a uma aceleração cada vez maior. Arendt (2013, p. 434) falará da “essência dos movimentos totalitários que só podem permanecer no poder enquanto estiverem em movimento e transmitirem movimento a tudo o que os rodeia”. Há uma guerra ilimitada que significa a mobilização total do efetivo social, a militarização absoluta em direção a um conflito que se torna permanente.

Ainda durante a guerra, Franz Neumann fornecerá uma explicação funcional para tal dinâmica de guerra permanente. O chamado “Estado” nazista seria, na verdade, a composição heteróclita e instável de quatro grupos em conflito perpétuo por hegemonia: o partido, as forças armadas e seu alto comando aristocrata prussiano, a grande indústria e a burocracia estatal:

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Desprovido de toda lealdade comum e concernido apenas com a preservação de seus próprios interesses, os grupos dirigentes irão se separar tão logo o líder produtor de milagres encontre um oponente a altura. Por enquanto, cada grupo precisa do outro. As forças armadas precisam do partido porque a guerra é totalitária. As forças armadas não podem organizar a sociedade “totalmente”, o que é tarefa do partido. O partido, por sua vez, precisa das forças armadas para vencer a guerra e assim estabilizar e mesmo ampliar seu poder. Ambos precisam da indústria monopolista para garantir uma expansão contínua. E todos os três precisam da burocracia para realizar a racionalidade técnica sem a qual o sistema não poderia operar. Cada grupo é soberano e autoritário, cada um é equipado com poderes legislativo, administrativo e jurídico; cada um é capaz de realizar de forma rápida e implacável os compromissos necessários entre os quatro (Neumann, 2009, p. 397-398).

Ou seja, apenas a continuação indefinida da guerra permitia a essa composição caótica de grupos soberanos e autoritários encontrar certa unidade e estabilidade. Não se tratava assim de uma guerra de expansão e fortalecimento do Estado, mas de uma guerra pensada como estratégia de adiamento indefinido de um Estado em rota de desagregação, de adiamento indefinido de uma ordem política em regime de colapso. E, para sustentar tal mobilização contínua, com sua exigência monstruosa de esforço e perdas incessantes, faz-se necessário que a vida social se organize sob o espectro da catástrofe, do risco constante invadindo todos os poros do corpo social e da violência cada vez maior necessária para pretensamente imunizar-se de tal risco.[v] Ou seja, a única forma de adiar a desagregação da ordem política, a fragilidade tácita da ordem, consistiria em gerenciar, em um movimento de flerte contínuo com o abismo, uma junção entre chamados à autodestrutividade e reiteração sistemática de heterodestrutividade.[vi]

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Não será por acaso que encontraremos, décadas depois, alguns analistas a sugerirem a figura do Estado fascista como um corpo social marcado por uma doença autoimune: “a condição última na qual o aparelho protetor se torna tão agressivo que se volta contra seu próprio corpo (que ele deveria proteger), levando à morte” (Esposito, 2008, p. 116). A presença sistemática da tópica da proteção como imunização contra a degenerescência do corpo social seria, na verdade, expressão da consciência dos antagonismos profundos a atravessarem uma sociedade em dinâmica de radicalização de lutas de classe e de sedição revolucionária. Desde Hobbes, sabemos como o recurso à tópica da imunização contra as “doenças do corpo social” é mobilizado em situações de sublevação revolucionária.[vii] Não seria diferente em uma contrarrevolução preventiva como o fascismo. Essa imunização exigirá a aceitação, por todos os atores da ordem, da militarização da sociedade e da transformação da guerra em única situação possível de produção da unidade do corpo social.

Mas, mesmo aceitando tal hipótese, há ainda ao menos um ponto não totalmente claro. Pois mesmo uma guerra infinitamente sustentada não implica necessariamente uma guinada autossacrificial. Foi para deixar ainda mais explícita essa especificidade que, décadas depois, autores como Paul Virilio (1976) cunharão o termo “Estado suicidário”. Essa era uma maneira astuta de andar na contramão do discurso liberal da igualdade entre nazismo e stalinismo ao insistir na estrutura da violência como traço diferencial entre o Estado fascista e outras formas de Estados totalitários. O termo “suicidário” se mostrará frutífero porque era a maneira de lembrar como um Estado dessa natureza não deveria ser compreendido apenas como o gestor da morte para grupos específicos. Ele era o ator contínuo de sua própria catástrofe, o cultivador de sua própria explosão, o organizador de um empuxo da sociedade para fora de sua própria autorreprodução.[viii] Segundo Virilio, um Estado dessa natureza se materializou de forma exemplar em um telegrama. Um telegrama que tinha número: Telegrama 71. Foi com ele que, em 1945, Adolf Hitler proclamou o destino de uma guerra então perdida. Ele dizia: “Se a guerra está perdida, que a nação pereça”. Com ele, Hitler exigia que o próprio exército alemão destruísse o que restava de infraestrutura na combalida nação que via a guerra perdida. Como se esse fosse o verdadeiro objetivo final: que a nação perecesse pelas suas próprias mãos, pelas mãos do que ela mesma desencadeou.

A política do suicídio e a pulsão de morte

A discussão sobre a natureza “suicidária” do Estado fascista será retomada no mesmo ano por Michel Foucault, em seu seminário Em defesa da sociedade (em uma aproximação injustificada e profundamente equivocada com a violência do socialismo real) e anos mais tarde por Gilles Deleuze e Félix Guattari, em Mil platôs. Diante do regime de destrutividade imanente ao fascismo e seu movimento permanente, Deleuze e Guattari irão sugerir a figura de uma máquina de guerra descontrolada que teria se apropriado do Estado, criando não exatamente um Estado totalitário preocupado com o extermínio de seus oponentes, mas um Estado suicidário incapaz de lutar pela sua própria preservação. Daí por que era o caso de afirmar: “Há no fascismo um niilismo realizado. É que, à diferença do Estado Totalitário que se esforça por colmatar todas as linhas de fuga possíveis, o fascismo se constrói sobre uma linha de fuga intensa, que ele transforma em linha de destruição e de abolição puras. É curioso como, desde o início, os nazis anunciaram à Alemanha o que eles trariam: ao mesmo tempo as núpcias e a morte, inclusive sua própria morte e a morte dos alemães […] Uma máquina de guerra que tinha apenas a guerra por objeto e que preferia abolir seus próprios servos a parar a destruição”. (Deleuze; Guattari, 1980, p. 281).

Como se vê, 30 anos depois e em uma tradição filosófica distinta, o tópico abordado inicialmente por Adorno retorna, inclusive com a lembrança da aliança entre aniquilação e salvação. Mas, ao aprofundar tal ponto, Guattari dará um passo a mais e não verá problemas em afirmar que a produção de uma linha de destruição e de uma “paixão de abolição” pura se relacionaria com “o diapasão da pulsão de morte coletiva que teria se liberado das valas da Primeira Guerra Mundial” (Guattari, 2012, p. 67). Isso lhe permitia afirmar que as massas teriam investido, na máquina fascista, “uma fantástica pulsão de morte coletiva” que lhes permitia abolir, em um “fantasma de catástrofe” (p. 70),[ix] uma realidade que elas detestavam e para a qual a esquerda revolucionária não soube como fornecer outra resposta.

Segundo essa leitura, a esquerda nunca teria sido capaz de fornecer às massas uma real alternativa de ruptura, que passava necessariamente pela abolição do Estado, de seus processos imanentes de individuação e de suas dinâmicas disciplinares repressivas. Essa é a maneira que Guattari tem de seguir afirmações de William Reich (1996, p. 17) como “O fascismo não é, como se tende a acreditar, um movimento puramente reacionário, mas ele se apresenta como um amálgama de emoções revolucionárias e de conceitos sociais reacionários”. A questão não poderia resumir-se apenas àquilo que o fascismo proíbe, mas há de se entender aquilo que ele autoriza, o tipo de revolta a que ele dá forma, ou, ainda, a energia libidinal que ele é capaz de captar.

Isso nos lembra como há várias formas de destruir o Estado, e uma delas, a forma contrarrevolucionária própria ao fascismo, seria acelerar em direção a sua própria catástrofe, mesmo que isso custe nossas vidas. Como gostaria de mostrar mais à frente, o Estado suicidário seria capaz de fazer da revolta contra o Estado injusto, contra as autoridades que nos excluíram, o ritual de liquidação de si em nome da crença na vontade soberana e na preservação de uma liderança que deve encenar seu ritual de onipotência mesmo quando já está clara sua impotência. Desse modo, juntam-se a noção do fascismo como uma contrarrevolução preventiva e como uma forma de abolição pura e simples do Estado através da autoimolação do povo a ele vinculado.

Mas aqui poderíamos nos perguntar se a hipótese da pulsão de morte seria, afinal, o verdadeiro nome do fundamento psicológico da destrutividade fascista. O que ela poderia nos trazer? Pois isso parece inicialmente nos colocar diante da clássica tópica da pretensa destrutividade imanente da ordem humana, da hostilidade primária entre os humanos como fator permanente de ameaça à integração social.[x]Lembremos como, ao se perguntar sobre as razões da guerra, tendo em vista os impactos da Primeira Guerra, Freud de fato mobiliza o instinto de destruição, esse instinto que age no interior de cada ser vivo e se empenha em levá-lo à desintegração, em fazer a vida retroceder ao estado de matéria inanimada. Mas isso serve, no máximo, como uma explicação genérica e a-histórica das bases libidinais que podem ser mobilizadas por Estados que usam a tópica da guerra total e do extermínio como modelo de gestão social.

Nesse sentido, o risco de tal apelo à pulsão de morte parece estar no recurso a certo “núcleo metafísico” da política, com sua ideia de uma violência irredutível das relações interpessoais. No limite, e esse talvez seja o problema maior, ela tenderia a fazer de toda violência e destrutividade no interior dos conflitos políticos a expressão de uma pulsão que seria o avesso da política. Não foram poucos os momentos em que a pulsão de morte foi chamada para preencher o papel do avesso da política, em uma fórmula que acabaria por ressuscitar certo humanismo, de cunho fortemente moralista, dos que pretensamente defendem as “forças da vida” (que significa sempre “a vida tal como hoje se configura”) contra o “império da morte”. Foi dessa forma que vimos, por exemplo, a pulsão de morte ser evocada como o nome do que se esconde por trás do “terrorismo internacional”, das “ações diretas”, entre outros.[xi]

De toda forma, não é isso que encontraremos na hipótese do Estado suicidário de Deleuze e Guattari.[xii] É tendo esse risco em mente que Guattari (2012, p. 52) dirá que a pulsão de morte não é uma “coisa em si”, que ela só se constitui quando “saímos do terreno das intensidades desejantes para este da representação”.[xiii] Mesmo em Mil platôs encontramos afirmações como: “não invocamos pulsão de morte alguma” como pretensa pulsionalidade imanente ao desejo. Essa é uma forma de afirmar que haveria uma metamorfose histórica responsável pelo advento da pulsão de morte, proposição distante da hipótese freudiana da inscrição biológica da pulsão de morte.

A insistência nessa possível metamorfose histórica especifica visa, à sua maneira, liberar a tópica freudiana da autodestrutividade imanente do organismo de sua tradução imediata em política de desagregação terrorista do corpo social. Em trabalhos anteriores, Deleuze demonstrara-se consciente de que a descoberta freudiana não poderia restringir-se às formas das dinâmicas bélicas que implicam autodestruição simples.

Em Diferença e repetição, encontrávamos, por exemplo, a ideia do instinto de morte como base pulsional para processos de despersonalização que mais se aproximavam dos impulsos estéticos de crítica da expressão egologicamente determinada. Daí a afirmação de que: “O instinto de morte é descoberto não em relação às tendências destrutivas, não em relação à agressividade, mas em função de uma consideração direta dos fenômenos de repetição. De forma bizarra, o instinto de morte vale como princípio positivo originário para a repetição, eis seu domínio e seu sentido. Ele desempenha o papel de um princípio transcendental enquanto que o princípio de prazer é apenas psicológico” (Deleuze, 1969, p. 27).[xiv][xv]

Não será por acaso que a noção de uma repetição como princípio transcendental será convocada para falar de Proust e das séries de repetições através das quais as relações afetivas se relacionam a um objeto virtual, abrindo espaço à experiência possível da pura forma do tempo. Ou, ainda, para falar de uma procura, própria à experiência estética, “determinada por sua indeterminação”, ou seja, por aquilo que Maurice Blanchot (1955, p. 111), pensando na escrita de Kafka, descreve como uma negatividade extrema que, “na morte tornada possibilidade, trabalho e tempo, permite encontrar a medida do absolutamente positivo”.[xvi] Nesse caso, outra forma de vínculo entre autodestruição e heterodestruição aparece como possível. Nesse momento, Deleuze (1969, p. 148) acredita que esse aspecto produtivo da construção freudiana estaria ainda preso ao “modelo objeto de uma matéria indiferente inanimada”, do qual deveríamos nos livrar. E é possivelmente a necessidade de, uma década depois, separar mais claramente a potência desse “princípio positivo originário” que levará Deleuze e Guattari (1980, p. 198) a afirmarem: “Inventam-se autodestruições que não se confundem com a pulsão de morte. Desfazer o organismo nunca foi matar-se, mas abrir o corpo a conexões que supõem todo um agenciamento, circuitos, conjunções, níveis e limiares, passagens, distribuições, intensidades, territórios e desterritorializações medidas a maneira de um agrimenso”.

Podemos dizer que, dessa maneira, trata-se de operar uma separação na qual uma espécie de “matriz estética da pulsão de morte” possa ser tematizada em sua especificidade, a despeito de certa “matriz política da pulsão de morte” vinculada, originariamente, à temática dos impactos da Primeira Guerra. Separação que podemos inclusive encontrar em Jacques Lacan, quando este fala da pulsão de morte como uma “sublimação criacionista”.[xvii] Notemos ainda como isso que podemos chamar de “matriz estética da pulsão de morte” recupera, em uma chave produtiva, a proximidade percebida por Jean Laplanche entre o caráter fragmentário e polimórfico da pulsão sexual da primeira tópica e a força de desligamento própria à pulsão de morte na segunda tópica freudiana.[xviii]

Essa matriz estética ressoa o potencial disruptivo do conceito freudiano de Unheimlichkeit: conceito este resultante das reflexões de Freud a respeito de certos aspectos da estética romântica. Não por acaso, o texto freudiano sobre o conceito é escrito no mesmo momento que os cinco primeiros capítulos de Para além do princípio de prazer.

Lembremos como, não por acaso, Unheimlich é inicialmente dito de fenômenos que embaralham a distinção entre o vivo e o morto, entre o animado e o inanimado (Freud, 1995, p. 237). Fenômenos que provocam a semelhança entre o inanimado e o vivo. Freud os aborda, entre outros, através de exemplos da fascinação por duplos, que, segundo sua interpretação, portam a condição de “inquietantes mensageiros da morte” (p. 238). Ele ainda fala do desejo por repetições que provocam desamparo e inquietude. Mesmo ao descrever a compulsão de repetição em Além do princípio de prazer, Freud fornecerá um duplo eixo para a compreensão do fenômeno: um vinculado às neuroses de guerra, o outro ligado ao jogo infantil. Ou seja, se um eixo nos leva à destruição psíquica, o outro nos coloca diante de um processo produtivo no qual as experiências traumáticas de perda e anulação são simbolizadas de forma tal a abrir um campo novo de relacionalidade e de ação.

Ou seja, há de se lembrar que a pulsão de morte tem uma tripla origem no interior do pensamento freudiano: uma histórico-política, ligada à mobilização da destrutividade pelo Estado moderno em uma dinâmica irrefreável de administração estatal do extermínio; uma estética, ligada à força de descentramento própria a processos de despersonalização e crítica da expressão egologicamente determinada; e uma biológica, ligada à dinâmica singular dos organismos de produzir a morte por suas própria vias.[xix]

Levando isso em conta, temos o direito de nos perguntar se a recuperação política dessa matriz estética da pulsão de morte (e talvez seja isso que estaria, de fato, em jogo no pensamento de Deleuze e Guattari) não nos abriria a uma política pós-humanista, na qual a temática da junção entre autodestruição e heterodestruição poderia ser conjugada de forma não propriamente suicidária, mas vinculada a transformações estruturais que permitiriam a emergência de subjetividades políticas não mais dependentes da perpetuação das figuras do indivíduo e da consciência. Isso nos levaria a admitir que a articulação entre pulsionalidade e política poderia servir, nesse caso, para pensarmos as bases pulsionais do desejo por experiências sociais de descentramento e de crítica à identidade. Ou seja, bases pulsionais para certo “devir revolucionário das pessoas”. Um devir que sempre começará pela afirmação de que será melhor a morte por suas próprias vias do que a vida que nos propõe. Esse caminho de reflexão ainda está para ser explorado de forma mais sistemática.[xx]

Notemos ainda que tal variabilidade do problema político da violência e da destrutividade talvez mostre a inutilidade do uso da pulsão de morte como conceito de forte potencial explanatório de fenômenos políticos. Se a pulsão de morte pode ser a base tanto de dinâmicas suicidárias quanto de processos revolucionários de transformação estrutural, se ela pode estar na base tanto das piores regressões quanto das mais desejadas transformações, então há de se perguntar sobre sua real utilidade no esclarecimento do campo do político. O que não significa que a tópica do “Estado suicidário” não tenha seu interesse e sua função, embora talvez sejamos obrigados a abordá-la por outro viés.

Isso nos levaria, por fim, a sermos mais críticos em relação ao uso do conceito de pulsão de morte para dar conta da especificidade do regime de violência no fascismo. Pois, mesmo admitindo que há destinos da pulsionalidade que podem se realizar como destrutividade bruta e direta, seria necessário não se contentar com o fantasma da pura aniquilação e se perguntar o que há de positivo nessa procura fascista de autodestruição do povo.

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