Escravidão

Brasil deve fechar 2020 com ociosidade elevada na economia
Brasil deve fechar 2020 com ociosidade elevada na economia (Foto: REUTERS/Amanda Perobelli)


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Andando com um velho amigo pelas ruas de São Paulo, em certo momento começamos a debater sobre liberdade. Em um primeiro momento percebi que o debate não ia para lugar nenhum… estávamos encalhados numa mescla de psicologia com sociologia, pitadas de filosofia e muita massa de lugares comuns. Propus, enfim, que a nossa sociedade era ainda escravista e, assim, a liberdade hoje era apenas uma possibilidade social, mas que a mesma não existe de forma efetiva. O desafiei que provaria minha tese de forma breve em 4 pontos. O desafio foi aceito.

 Assim desenvolvi a minha lógica:

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1 - Em nossa sociedade temos uma divisão conceitual bem simples: há aqueles que produzem e aqueles que comandam os meios de produção. Os que produzem são aqueles que chamamos de trabalhadores ou força produtiva, e os que comandam os meios de produção são aqueles que determinam como, quando e onde algo será produzido, independente do desejo daqueles que vão produzir. Por essa razão, podemos de fato afirmar que se trata de uma divisão de dois grupos e que essa não é uma divisão natural, mas imposta por conjunturas históricas que não cabem ser debatidas no momento.

 Tudo certo até aqui.

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2 - Ao observar essa divisão vemos que o grupo dos que produzem é extremamente heterogêneo e convivem entre si com enormes distorções do valor de seu trabalho que é pago na forma de salário, com dinheiro. Por vezes, observamos que um especialista em uma área científica de enorme complexidade pode ter o mesmo salário ou até um salário inferior do que outro produtor cuja complexidade de trabalho seja muito inferior. Não me levem a mal, todos são úteis na sociedade. 

Mas o que faz um professor, um engenheiro, um técnico automotivo, um bombeiro, um médico, um técnico de construção civil e um juíz ganharem salários distintos? Com certeza esse salário não é mensurado no tempo de aquisição do conhecimento historicamente necessário para a formação desses profissionais, mas sim por duas regras: a) a oferta e procura e b) as lutas que um grupo de produtores fez para conseguir obter maiores vantagens salariais. Porém, enquanto a regra “b” é variável e ocasional, a regra “a” é sempre constante. 

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Assim, a primeira tende a ser a dominante e a segunda excepcional, o que nos leva a outra conclusão: os que produzem são submetidos à mesma lógica do mercado das coisas em geral (por isso, inclusive, chamamos isso de “mercado de trabalho”). Os que produzem não são, nesse sistema, vistos como “seres humanos livres e dotados de qualidades livremente estabelecidas”, mas coisas que vendem sua força de trabalho no mercado, em troca de um salário -  obedecendo a lei da oferta e da procura.

Pronto. Duas conclusões até aqui dispostas: há uma divisão em nossa sociedade entre produtores e comandantes dos meios de produção; os produtores são mercadoria que vendem sua força de trabalho no mercado em troca de salário.

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3 - Quem determina os salários? Por exclusão só podem ser os comandantes dos meios de produção. Eles vão ao mercado de trabalho e compram a força produtiva que eles necessitam para produzir uma enorme variedade de coisas, ou mercadorias. Eles sabem que a força produtiva tem um preço que será pago em dinheiro, por um salário. O ideal para esses comandantes dos meios de produção é encontrar um produtor que lhe custe o mínimo possível e lhe entregue o máximo de sua força de trabalho. 

Dessa forma, o custo da produção de qualquer outra mercadoria pode ser rebaixado a um nível em que o comandante dos meios de produção possa lucrar com o processo de sua venda. Assim, concluímos aqui duas coisas: a) as relações nessa sociedade são feitas por mercadorias que produzem mercadorias e b) Os comandantes dos meios de produção precisam - para lucrar - explorar ao máximo a força de trabalho de quem produz, pagando o mínimo possível para os mesmos.

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Pausa. 

Temos agora três pontos centrais: há uma divisão em nossa sociedade entre produtores e comandantes dos meios de produção; os produtores são mercadoria que vendem sua força de trabalho no mercado em troca de salário; e são comprados pelo mínimo valor salarial possível, tudo para que os comandantes dos meios de produção possam explorar ao máximo sua força de trabalho e dessa forma obter o máximo de lucro.

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Último ponto:

4 - Falemos um pouco mais sobre os comandantes dos meios de produção. Como eles são detentores das máquinas, das estruturas físicas, das coisas que são e/ou serão produzidas e também donos daqueles que vendem sua força de trabalho, não são apenas “comandantes”, mas donos dos meios de produção. Como donos de tudo, inclusive daqueles que vendem sua força de trabalho (os produtores) não estamos mais falando em qualquer divisão social, mas em uma divisão entre senhores e seus escravos - comprados no mercado de trabalho, onde venderam sua força de trabalho em troca de dinheiro na forma salarial.

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Pronto.

Aqui terminamos a lógica de funcionamento das relações de nossa sociedade. Os donos dos meios de produção são os “novos senhores” e os que produzem são os “novos escravos” ou “escravos assalariados”. No fim, a meta dos donos dos meios de produção é lucrar mais para obter mais mercadoria trabalho e outros insumos para produzir ainda mais mercadorias, formando o que chamamos de “sociedade de consumo”.

Enquanto houver escravidão não haverá liberdade. Tão pouco as coisas mudam quando os escravos sonham em ser um dia um senhor de escravo. O contrário de ser escravo não é ser senhor, mas ser livre; bem como o contrário de ser senhor de escravo não é ser escravo, mas sim, ser um abolicionista.

A nossa sociedade pouco evoluiu desde o fim da escravidão moderna e racial. Naquela época os senhores diziam aos escravos “calma, se você for um bom escravo, não precisará viver na senzala, eu lhe autorizarei a construir sua própria casinha, lhe darei um rancho onde, no seu tempo livre, você poderá plantar o que quiser e um dia poderá ser alforriado e quem sabe ter alguns escravos. Seja um bom escravo que apenas coisas boas lhe acontecerão”. 

No fim, a expectativa de vida produtiva de um escravo no Brasil e nas áreas de escravidão na América variava de 11 a 17 anos. Quando não prestava mais, o escravo era alforriado porque era muito mais um peso do que um ganho ao seu senhor. Era posto para fora do seu meio de produção e vivia como pedinte ou como “escravo de ganho”, fazendo serviços eventuais para um senhor mais pobre e que lhe dava em troca algo para comer e vestir. 

Na atual sociedade a escravidão é chamada de ”relações livres e contratuais de trabalho”. Mas um trabalhador reduzido a mercadoria é desumanizado no sentido semântico da palavra. Essa relação não pode ser livre para o trabalhador. Ela é livre para o dono do meio de produção que pode comprar a força de trabalho de um trabalhador, fazê-lo assinar um contrato que lhe dá a garantia da entrega de sua força produtiva e a possibilidade de dispensá-lo no momento em que melhor lhe convir, por exemplo, caso ele ofereça uma deficiência física ou psicológica que lhe impeça de produzir.

De forma semelhante à escravidão moderna os donos dos meios de produção ainda dizem aos escravos assalariados: “calma, se você for um bom trabalhador, poderá ter melhores salários, conseguir comprar uma casa e quem sabe, um dia, poderá também ter seu próprio negócio.”

Assim como antes, cria-se dois mundos paralelos para se reproduzir o mesmo mundo: os produtores não podem ter acesso a boas escolas, porque aumenta o seu custo, não podem ter saúde de qualidade porque não vale a pena gastar muito dinheiro em uma mercadoria que está em mal funcionamento, suas casas devem ser financiadas por eles mesmos, assim como seus bens, porque isso aumenta o seu compromisso com a sua posição de escravo assalariado, pois se ele não for um bom escravo, poderá ser demitido, perder tudo e ir para a miséria… aliás, por isso que a miséria precisa existir…

O outro mundo é o mundo dos donos dos meios de produção. Aqui há excelentes escolas para que a administração do meio de produção possa ter sucessão hereditária, a saúde deve ser de primeira porque os donos dos meios de produção querem viver bastante para poder usufruir de sua boa vida e acumular mais e mais lucro até o mesmo virar dinheiro entesourado. Sua casa tem tudo do bom e do melhor e já está paga. Seu conforto é a sua prioridade, bem como a sua segurança.

Obviamente que no real concreto temos realidades bem plurais, muitos produtores recebem altíssimos salários para gerenciar a produção, mas não são sábios o suficientes para administrar a educação de seus filhos… muitos pequenos e médios donos dos meios de produção vivem alguns momentos de bonança, mas sofrem com a concorrência e muitas vezes vão a bancarrota… 

No fim, a batalha daqueles que vivem nesse “purgatório” do real concreto só abre mais espaço para que os grandes donos dos meios de produção (em especial aqueles que possuem a mercadoria mais valiosa na nossa sociedade: o dinheiro, ou seja, os banqueiros) ampliem seu paraíso que fica cada vez mais desigual a ponto de 10 desses grandes senhores de escravos terem uma riqueza patrimonial superior à toda a riqueza do continente africano.

Como antes, os que lutam para ser livres são vistos como rebeldes e os abolicionistas são tidos como loucos que vão destruir toda a economia. Mas a História já provou que rebeldes e abolicionistas geraram muito mais progresso do que qualquer escravo e seus senhores.

A humanidade nunca será livre enquanto houver escravidão e a pior delas é a escravidão da consciência. Saber que não vivemos em uma sociedade livre é um bom começo para a libertação e para o fim da última escravidão da História: a escravidão assalariada. Ser libertador ou abolicionista; ser escravo ou ser senhor. A primeira opção é ter consciência, o primeiro degrau para o fim da escravidão. A segunda opção é aceitar a realidade como ela está.

Por isso afirmei, no começo, que a liberdade existia apenas no plano da possibilidade. Meu velho amigo pareceu convencido e animado e pediu para que eu escrevesse essa tese. Aqui está…

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