Esboço para uma epopeia da paz
O ódio pode ser meu. O ódio pode ser seu. A concórdia que abraça, no entanto, torna porosas e embaralha as nossas fronteiras farpadas: na terra de ninguém do nosso toque em comunhão, o calor do afago não é meu e não é teu (mas me afeta e te afeta). O acalento germina uma nova semente: nós.
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I. A árvore
A mão que arma o soco pressupõe a mão que atira a pedra.
A mão que atira a pedra prenuncia o estilingue, irmão mais velho do arco e flecha.
O arco e flecha, sobretudo quando desfere setas embebidas em estricnina, é a antecâmara do revólver.
O revólver de tiro e morte sequenciais - um, dois três; uma, duas, três - já anseia pela rajada de morte múltipla da metralhadora.
II. A floresta
A lança é a infância da catapulta.
A catapulta é a mãe do canhão.
O canhão, quando se aposenta, indica o míssil para o trabalho.
O míssil, tubarão dos ares, violador de nuvens, tem medo de si mesmo quando seu nariz de palhaço é uma ogiva de urânio.
III. A árvore
A mão que arma o soco vê o rosto ensanguentado da vítima e ainda consegue entreouvir a súplica de medo e desespero.
A mão que atira a pedra já começa a se eximir: ela toca a mediação da morte, mas não a morte propriamente dita.
O arco e flecha, primo pobre do revólver, não conseguiu vender os direitos autorais da mira telescópica (e da distância cúmplice e alienada do fuzil), mas a mira infalível deveria lhe pagar royalties.
A metralhadora, sádica como ela só, volta ao campo de batalha para redimir o guerreiro cercado, que, sem 300 socos por minuto, não tem como derrotar as tropas inimigas que o encurralam.
IV. A floresta
O canhão pisa nas costas da catapulta e rouba o urro do trovão. Quanto às vítimas pequeninas como formigas do outro lado da costa, o canhão da colonização sentencia: “Deixa que os mortos enterrem seus mortos”.
O míssil não entende como o canhão, aniquilador de meras casas, e não de sucessivos bairros e cidades, fica resignado à ambição réptil e rasteira da bola de boliche ou do voo rasante das galinhas.
V. A semente
Enquanto o bélico irradia a metástase de sua covardia e abstrai suas vítimas como inequívocos e inescapáveis alvos via satélite, tudo aquilo que é belo e bondoso reparte o pão, a um palmo de distância, antes mesmo de oferecê-lo.
O anjo interpretado por Bruno Ganz, no filme Asas do desejo, de Wim Wenders, se pergunta com compaixão e perplexidade: “Por que Homero, na Ilíada e na Odisseia, compôs epopeias da guerra, e não da paz?”.
Ora, por que somos tão pródigos em fazer a ode às armas e aos barões assinalados, mas temos poucas palavras para as pessoas, que, sem pedras nos bolsos, oferecem o peito como porto para os alagados pela tristeza e amargura?
Eu me sinto comovido quando alguém desconfia da própria dúvida (e do próprio medo) e abre um flanco mole e frágil como gema de ovo: ali ainda há vontade de amar.
Eu me sinto comovido quando alguém ousa levantar o pescoço como um periscópio por sobre o mar gélido de nossos afetos e tenta cicatrizar o ceticismo e o cinismo do filósofo Diógenes de Sínope, que, mesmo ao meio-dia, empunhava sua lanterna em busca de um amigo.
- Eu estou aqui, Diógenes. Vamos tomar uma cerveja, velho?
Eu me sinto comovido quando alguém tenta desarmar o inimigo com uma arapuca de perdão e esquecimento. Quando as tropas inimigas se dão conta de que não sabem viver sem uma guerra diante de si, o mensageiro da paz pode lhes dizer, com suma alegria, apontando para o campo de batalha repleto de tanques convertidos em casas:
- A capela já não precisa ser a testemunha e a sentinela do túmulo. A saudade já não precisa se alimentar de si mesma como um estômago faminto. Que tal tatear rumo ao amor sem tormento e inquietude? Que tal dançar valsa com as próprias sombras? Que tal libertar o palhaço de sua condenação ao sorriso perpétuo para que possamos sorrir não apenas nos entreatos da vida?
A bondade é frágil em face do ódio. O ódio tem sempre o dedo no gatilho, enquanto a bondade sente compaixão por quem empunha a vida como um escudo.
O ódio pode ser meu. O ódio pode ser seu. A concórdia que abraça, no entanto, torna porosas e embaralha as nossas fronteiras farpadas: na terra de ninguém do nosso toque em comunhão, o calor do afago não é meu e não é teu (mas me afeta e te afeta). O acalento germina uma nova semente: nós.
*Ilustração de Luanna Falcão. Sigam seu Instagram: https://www.instagram.com/luanna.artworks/
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