Erundina e o general

"O negacionismo constitui um dos traços do modo como o racismo se expressa no Brasil", escreve o professor titular de Saúde Pública da USP Paulo Capel Narvai

(Foto: LUCIO BERNARDO JR)


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Por Paulo Capel Narvai 

(Publicado no site A Terra é Redonda)

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A reação do vice-presidente da República, Hamilton Mourão, ao assassinato de João Alberto Silveira Freitas, por espancamento e asfixia no estacionamento de um supermercado Carrefour em Porto Alegre, lamentando-a, diz muito sobre vários aspectos envolvidos no homicídio. Um deles é a formação de generais no Brasil.

Freitas tinha 40 anos e era negra a cor de sua pele.

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Mourão e outras autoridades reconheceram e repudiaram a violência cujo trágico desfecho, na véspera do Dia da Consciência Negra, celebrado em 20 de novembro, motivou reações e manifestações públicas em Porto Alegre e outras cidades.

Mas o general Mourão não viu racismo no homicídio. Para ele “no Brasil não existe racismo. Isso é uma coisa que querem importar, isso não existe aqui. Eu digo para você com toda tranquilidade, não tem racismo”. A referida importação teria como referência os Estados Unidos. Tendo residido por dois anos em Washington, o general afirmou que “racismo tem lá”, pois na escola em que estudou [no final dos anos 1960] “o pessoal de cor andava separado”, “sentava atrás [no] ônibus” e que teria ficado “impressionado”, pois “nunca tinha visto isso aqui no Brasil”. Mourão admitiu que “nós temos uma brutal desigualdade aqui, fruto de uma série de problemas, e grande parte das pessoas de nível mais pobre, que tem menos acesso aos bens e as necessidades da sociedade moderna, são gente de cor”.

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Ao comentar a postagem de uma amiga em rede social sobre esse assunto, escrevi que “a declaração dele dá a exata dimensão do nível da formação social e humana dos militares brasileiros. Ouvi-lo deu em mim aquela desagradável sensação de estar frente a um general (general!), vice-presidente da República, que fala sobre algo dessa relevância com base apenas em senso comum. É como se ele nunca tivesse lido ou estudado nada sobre o tema. Como se, para formar um general, bastasse instruí-lo sobre temas militares…

A linguagem é imprópria para alguém com a patente dele, exercendo a função que exerce hoje, o segundo homem na hierarquia do Estado Brasileiro. É, sobretudo, desolador. Que elite está sendo formada em nossas escolas militares?” Esta pergunta, admito, foi apenas retórica, a pretexto de estimular a reflexão, pois eu sei muito bem o quanto essa formação é insuficiente e excessivamente ideologizada, sob o marco teórico do “inimigo interno”.

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Para Mourão, ou o racismo se expressa como segregação ou não existe. A manifestação é de um simplismo assustador em um general e deve servir de alerta, como um importante indicador, para os dirigentes e responsáveis pelos conteúdos curriculares das escolas de formação de oficiais das Forças Armadas. Há algo de muito ruim nos conteúdos, para muito além dos conhecidos problemas ideológicos dessa formação. A profundidade de espelho d’água com que são abordados temas candentes da contemporaneidade compromete a formação e representa risco para o país.

A expressão “gente de cor” remeteu-me, contudo, ao período em que Luiza Erundina foi prefeita de São Paulo (1989-92), quando o Sistema Único de Saúde (SUS) começou a ser organizado na cidade, com intensa participação popular. Permeável aos movimentos sociais, o governo municipal acolhia suas demandas. Uma delas, com origem no Movimento Negro, reivindicava a introdução do “quesito cor” nos prontuários dos pacientes e sistemas de informação em saúde.

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Logo ficou esclarecido que a “cor” de que se tratava era a “cor da pele”, pois pessoas são apenas seres humanos e, portanto, não têm cor. Mas a cor da pele, ah, essa sim tinha muitas implicações também para a saúde.

Não se sabia até então, diziam as lideranças dos movimentos, praticamente nada sobre a mortalidade infantil, a mortalidade materna, a expectativa de vida ao nascer, as condições de acesso e uso de serviços públicos de saúde, especificamente para as pessoas cuja cor da pele era negra. Os dados gerais sobre esses indicadores, diziam, serviam apenas para ocultar desigualdades e iniquidades, pois continham, mas diluíam no “geral”, os dados para os grupos populacionais segundo a cor da pele. Era necessário mudar, detalhando mais, os instrumentos de registros de dados usados em São Paulo.

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Após as propostas de mudanças terem sido analisadas no Conselho Municipal de Saúde e sido objeto de decisão em Conferência Municipal de Saúde, a Portaria 696, de 30 de março de 1990, introduziu o “quesito cor” nos Sistemas de Informação de Saúde (SIS) da Secretaria Municipal da Saúde (SMS).

Atualmente, essa variável étnico-racial está presente em diferentes SIS do SUS, como o de Mortalidade (SIM), Nascidos Vivos (SINASC), Agravos de Notificação (SINAN), Informações Hospitalares (SIH), Informações Ambulatoriais (SIA), Acompanhamento da Gestante (SISPRENATAL) e em inquéritos epidemiológicos populacionais como, dentre outros, a Pesquisa Nacional de Saúde (PNS), o Estudo Longitudinal de Saúde do Adulto (ELSA), o Saúde, Bem-estar e Envelhecimento (SABE), o Sistema de Vigilância de Fatores de Risco e Proteção para Doenças Crônicas por Inquérito Telefônico (VIGITEL), a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) e o Saúde Bucal Brasil (SB Brasil). Há, no presente, amplo reconhecimento da importância dessa variável, frequentemente identificada como “raça/cor”, uma vez que é imprescindível para a produção de dados e informações que subsidiem a elaboração, planejamento, implantação e avaliação de políticas públicas.

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Em 2015, o Município de São Paulo, por meio da lei nº 16.129, de 12/3/2015, ampliou (art.1º) a exigência de inclusão do quesito raça/cor para “todos os sistemas de informação, avaliação, monitoramento, coleta de dados, censos e programas com o objetivo de identificar o perfil das pessoas, bem como de mapear e cadastrar o referido perfil com vistas ao direcionamento das políticas públicas voltadas a atender as necessidades desse segmento social”. Em 8 de maio passado, o Decreto nº 59.406, regulamentou a lei nº 16.129/2015.

Dispondo-se de dados coletados rotineiramente, o achismo sobre esse tema nos serviços de saúde foi dando lugar, gradativamente, desde o início dos anos 1990, a análises consistentes que desvelaram o que sua inexistência ocultava: o racismo é inegável e, praticado sistematicamente, assume múltiplas expressões na vida cotidiana. Institucional, profissional, estrutural.

Foi desse modo que, dentre outras ações sobretudo nas áreas de cultura e educação, o governo de Luiza Erundina em São Paulo deu no âmbito da saúde uma grande contribuição ao enfrentamento do racismo como uma chaga que nos corrói a todos, nacionalmente. No dia seguinte à declaração de Hamilton Mourão, o presidente Jair Bolsonaro secundou-o, negando a existência de racismo. Esta negativa é, porém, um dos traços do modo como o racismo se expressa no Brasil. O reconhecimento contribui para o enfrentamento do problema. Sua negação, ao contrário, o perpetua, buscando ocultá-lo.

Não é exagero afirmar que ao reconhecer o racismo, o SUS nasceu antirracista, não obstante suas próprias dificuldades institucionais em lidar com esse problema. As primeiras decisões sobre isto, tomadas em atendimento a reivindicações sociais em São Paulo nos estertores do século passado, mostraram-se oportunas e de importância estratégica, como se constata no presente. Essa experiência poderia inspirar, decerto, nossas escolas militares. Ganharia o Brasil.

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