Eram outros tempos e o tempo era outro
As relações em rede são mantidas pôr duas razões: (i) a possibilidade de conectar e (ii) a possibilidade de desconectar o contato no meio virtual
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Quando eu era criança os dias eram longos - acho até que eles tinham mais do que vinte quatro horas -, os amigos eram para sempre, vivíamos a infinitude do tempo e alegria das múltiplas possibilidades, além de aventuras imaginárias – as quais eram minuciosamente debatidas, conversávamos muito até encontrar um consenso, a comunicação ocorria pela linguagem pessoal e direta e, quando o consenso não ocorria, éramos obrigados a defender nosso ponto de vista “olho-no-olho” e, muitas vezes, amargar derrotas. Era um exercício necessário de convivência.
Hoje tudo parece ser tão rápido e impessoal que, quando percebemos já acabou o dia, a semana e o mês; não convivemos de verdade e, diante de uma contrariedade podemos apenas “bloquear” ou “excluir” contatos, pois, hoje as relações são descartáveis, nada é para sempre e todos parecem preferir não conversar, a comunicação dá-se por e-mail, WhatsApp e outras formas impessoais.
No escritório pergunto a um jovem advogado: “- Falou com o cliente ‘tal’?” e a resposta é “- Sim, mandei e-mail”, eu fico desesperado, pois isso me parece impessoal e asséptico.
Nesses tempos de instantaneidade, impessoalidade e descartabilidade, bate um saudosismo grande e lembro de coisas simples como as “viagens” de ônibus até Sousas, pegávamos o ônibus da Viação Bortolotto na rua Conceição, em frente ao cine Ouro Verde, ansiosos para chegar logo ao Cultura; quem nos levava nos verões ao clube era nossa tia Bel, irmã de minha mãe e uma das mais fortes e duradouras presenças da nossa infância e adolescência.
Seguíamos pela rodovia Heitor Penteado, numa viagem demorada até Sousas; eram outros tempos e o tempo era outro, assim como a natureza das relações e interações; conhecíamos o motorista, conversávamos com ele e com todos; nossos olhos estavam voltados para o mundo real, suas cores, sons e aromas.
Os temas que trago à reflexão hoje são: (i) o tempo, (ii) a natureza atual das relações humanas e (iii) a sensação de desencanto que nos alcança; então recorro à sociologia de Bauman, pois, ela nos ajuda a compreender o que nos rodeia, o comportamento das pessoas e os rumos da sociedade.
Vamos lá.
Se as relações, interações humanas e lembranças da minha infância são duradouras, afetivas e definitivas, atualmente “vivemos em tempos líquidos. Nada foi feito para durar” (essa é uma das frases mais famosas de Bauman, que descreve a era contemporânea em temas como a sociedade de consumo, ética e valores humanos, as relações afetivas, a globalização).
Também foi Bauman que cunhou o conceito de “modernidade líquida” para definir o tempo presente; ele escolheu a metáfora do “líquido” ou da fluidez como o principal aspecto do estado dessas mudanças, afinal, um líquido sofre constante mudança e não conserva sua forma por muito tempo.
A vida contemporânea se caracteriza pela vulnerabilidade e fluidez, somos incapazes de manter a identidade por muito tempo, o que reforça um estado temporário e frágil das relações sociais e dos laços humanos.
Essa é uma grande mudança das perspectivas, com as tecnologias, o tempo se sobrepõe ao espaço. Podemos nos movimentar sem sair do lugar. Esse é o tempo líquido, instantâneo e o temporário.
A partir de meados do XX passamos da sociedade de produção para a sociedade de consumo (o que não significa que não exista uma produção, mas que o sentido do ato de consumir ganhou outro patamar, que se tornou um elemento central na formação da identidade). Muito além da satisfação de necessidades, consumir passa a ter um peso primordial na construção das personalidades.
O “ter” se torna mais importante que o “ser”. Hoje há inúmeras possibilidades de escolha, passamos a consumir produtos que identifiquem um determinado estilo de vida e comportamento. Se tudo é mercadoria, nossa identidade também se constitui a partir da satisfação do prazer pelo consumo. Marcas e grifes se tornam um símbolo de quem somos. Sua compra também significa um status social, o desejo de um reconhecimento perante os outros.
O mundo contemporâneo não busca “satisfazer” por completo os consumidores, pois, se isso ocorresse, não haveria mais nada para vender; por isso “consumir significa descartar”. Temos acesso a tudo o que queremos e ao mesmo tempo as coisas se tornam rapidamente obsoletas, noutras palavras: “O problema não é consumir; é o desejo insaciável de continuar consumindo”, diz Bauman, tanto que o descarte do lixo é um grande problema na sociedade.
E as relações humanas? Os vínculos humanos têm a chance de serem rompidos a qualquer momento, causando uma disposição ao isolamento social, onde muitos escolhem vivenciar uma rotina solitária, impessoal e egoísta; tudo isso enfraquece a solidariedade, emergindo o individualismo, a fluidez e a efemeridade das relações.
Hoje tudo é efêmero, as relações humanas agora se dão em rede, não mais em comunidade; dessa forma, os relacionamentos passam a ser chamados de conexões, que podem ser feitas, desfeitas e refeitas; os indivíduos estão sempre aptos a se conectarem e desconectarem conforme vontade, o que faz com que tenhamos dificuldade de manter laços a longo prazo.
Bauman acredita que as redes sociais significam uma nova forma de estabelecer contatos e formar vínculos, contudo, elas não proporcionam um diálogo real, pois é muito fácil se fechar em círculos de pessoas pensam igual a você e evitar controvérsias.
As relações em rede são mantidas pôr duas razões: (i) a possibilidade de conectar e (ii) a possibilidade de desconectar o contato no meio virtual; o que pode ocorrer ao primeiro sinal de descontentamento, o que denota uma das características da sociedade líquida a ausência de humanidade.
Tenho saudades das viagens de ônibus ao Cultura com a tia Bel, das relações humanas presenciais, fraternas e duradouras.
Essas são as reflexões.
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