Entre o Rei e o Edson Arantes

"Pelé em campo foi uma espécie de deus", diz Eric Nepomuceno

Pelé
Pelé (Foto: Acervo Pelé/Divulgação)


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Por Eric Nepomuceno, para o 247

Lembro que jovem repórter daquele glorioso Jornal da Tarde, de São Paulo, que sumiu no breu da história, uma vez me escalaram para uma missão estranha: ir ao estádio da Vila Belmiro, em Santos, num jogo com o Pelé, e não ver o jogo.

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Minha missão era contar como era a vida de quem vivia no estádio mas mas não via o jogo. O bilheteiro, o ascensorista, o vendedor de belas e bebidas que circulava nas arquibancadas, os seguranças da porta. Não lembro quem era o adversário – estamos falando de 1969, talvez 1970. Mas lembro perfeitamente que estava conversando com o ascensorista quando ouvimos, de porta fechada e tudo, uma gritaria distante, e ele me disse: “Foi gol do Pelé”. Antes de ir conferir, perguntei como ele sabia. E a resposta foi fulminante: “Só quando ele marca a gente escuta aqui dentro do elevador”. Sou de uma geração que viu Pelé surgir e crescer. Eu tinha dez anos, quando o Mundial não era transmitido pela televisão – a gente ouvia os jogos pelo rádio –, aprendi, pela mesma gritaria, quando Pelé marcava um gol. Ao vivo, eu vi Pelé jogar poucas vezes. E confesso que, mais ainda que os gols, o que me impressionava eram os passes. Semelhante precisão eu nunca mais vi na vida, e isso que sou futeboleiro desde meus oito ou nove anos. Aliás, tem mais lembrança: em 1957, eu garoto de nove anos, mudei com a família para a Alemanha, onde meu velho, físico tarimbado, ia estudar para ser um dos pioneiros do estudo da acústica no Brasil.

Em nosso voo da Panair ia a seleção brasileira disputar, creio eu, a classificação para a Copa do ano seguinte.

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Lembro até hoje daqueles grandalhões e de um garotinho negro, magricela e silencioso, com olhos brilhantes, que ao ver que eu mirava tanto seu rosto sorriu. 

E disse para a minha mãe: “Eu sou o Pelé”. 

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Foi a única vez que nos vimos de perto e ao vivo.

Torno, e de novo peço perdão, a ser reiterativo. 

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Pelé em campo foi, para a minha geração e para as que vieram depois – meu filho Felipe, por exemplo, só viu Pelé em gravações antigas –, uma espécie de deus. 

Nunca vi nada igual antes, nunca vi nada igual depois. 

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Aliás, nunca vi nada sequer parecido – e sou da geração que v/iu Tostão, Didi, Coutinho, Júnior, e Zico, e Gerson, e Garrincha (outro deus), e meu bom amigo Sócrates, e Maradona, e Messi, e por aí vai, claro que cada um em sua posição em campo, mas gênios todos.

Pelé, na minha opinião, foi, para mim, uma mescla de Pablo Picasso e Joan Miró na pintura. 

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Nada foi igual antes dele, nada foi igual depois dele. 

Não me lembro de nenhuma outra imagem de beleza absoluta que resultou em fracasso que o drible de Pelé num goleiro – não me lembro agora e não vou perguntar ao doutor Google – na copa de 1970. Drible absoluto, divino, e a bola saiu pela tangente.

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Aos meus 22 anos ficou claro para mim, e para sempre, que um fracasso podia ter luz e dignidade. 

Naquele caso específico, dignidade suprema.

Reitero: no futebol, mesmo nesse de hoje, maquinal, mecânico, desumanizado ou quase, nada, absolutamente nada, se parece ao futebol luminoso de Pelé.

Para mim foi, sem sombra nem réstia de dúvida, o melhor dos melhores de todos os tempos.

Porém, como lamentavelmente costuma acontecer, entre a figura pública e a pessoa, há, no caso de Pelé, um abismo sem fundo. Porque o Edson foi um cidadão abominável.

Registrou sua primeira filha como “branca”. E se recusou a admitir uma outra filha como sua. Ela morreu sem ver a Justiça reconhecendo a paternidade do deus da bola. 

E aos filhos dela, netos dele, Edson concedeu uma mesada miserável, de 3.500 reais, enquanto ele só não nadava em dinheiro por preguiça: mergulhava e ficava boiando.

Hoje li de várias fontes, a começar pelo sempre admirado Juca Kfouri, que Pelé não morreu, quem morreu foi o Edson Arantes do Nascimento.

Que assim seja. Que não se confunda a imagem e a memória de um cidadão degradado com a do maior deus, o maior gênio, o maior dos maiores do futebol, do esporte mais amado do planeta.

Que Pelé descanse em paz. Que Edson seja esquecido.

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