Ensinando o livro de Aleksandr Solzhenitsyn ‘Arquipélago Gulag’ na Prisão
Há muitas similaridades perturbadoras entra a brutalidade imposta sobre as vítimas de Stalin e as injustiças sofridas pelos encarcerados nas prisões nos EUA
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Artigo de Chris Hedges originalmente publicado no site do autor em 18.12.22. Traduzido e adaptado por Rubens Turkienicz com exclusividade para o Brasil 247
Duas noites por semana, durante os últimos quatro meses, eu abri o meu caminho através dos três volumes do livro Arquipélago Gulag de Aleksandr Solzhenitsyn com 17 estudantes no programa da faculdade oferecida pela Universidade Rutgers no sistema de prisões do estado de New Jersey (EUA). Ninguém das minhas classes sofre com os extremos que foram impostos sobre milhões de pessoas que trabalhavam, e frequentemente morriam, como escravos no Gulag soviético, ou campos de trabalho, estabelecidos depois da revolução russa. Os últimos remanescentes das centenas de campos foram desfeitos em 1987 por Mikhail Gorbachev — sendo ele próprio neto de prisioneiros do gulag. Meus alunos nas prisões de New Jersey tampouco vivenciaram o tratamento dos detentos da Abu Ghraib, de Guantanamo e nos nossos locais negros secretos que passam por julgamentos e execuções simuladas, tortura, privação sensorial extrema e abuso que chegam perturbadoramente próximas de réplicas do inferno dos gulags.No entanto, o que Solzhenitsyn passou durante os seus oito anos como prisioneiro nos campos de trabalho era familiar para os meus estudantes — a maioria dos quais são pessoas de cor, pobres, muitos carecendo de representação legal competente e quase sempre sendo coagidos a assinar confissões, ou aceitando acordos judiciais que incluem crimes, ou versões de crimes com os quais eles se envolveram e que eram frequentemente falsos. Mais de 95% dos prisioneiros são pressionados a aceitar acordos no sistema de tribunais dos EUA, o qual não consegue prover julgamentos de júri para cada réu que tem direito a um julgamento por júri — caso ele efetivamente exigir um. Em 2012, a Suprema Corte dos EUA disse que “acordos judiciais… não são atributos secundários do sistema criminal de justiça; eles são o sistema criminal de justiça”.
Meus estudantes, como os prisioneiros soviéticos — ou ‘zeks’ — vivem em um sistema totalitário. Também eles trabalham como escravos, cumprindo 40 horas de trabalho por semana em empregos na prisão e ganhando US$ 28 por mês — um dinheiro usado para comprar necessidades básicas com preços altos da delegacia, como era no gulag. Eles também são identificados pelos seus números designados, vestem uniformes de prisão e abdicaram dos direitos que vêm com a cidadania.
Eles são privados de quase todos os seus pertences pessoais; são despojados de todos os sinais externos de suas biografias e individualidades; são forçados a aguentar humilhações, incluindo ficarem nus na frente dos guardas; eles não podem expressar raiva contra os seus captores sem sofrerem severas retribuições; aguentam arregimentações de estilo militar; lidam com vigilância constante, incluindo — como no gulag — uma rede de informantes da prisão; eles podem ser colocados em isolamentos prolongados; são proibidos de ter contatos com as suas famílias, bem como a companhia de mulheres; e recebem sentenças longas que, a não ser por milagre, significam que muitos morrerão na prisão. Eles também tem sido demonizados pela sociedade em geral e — assim como aqueles no gulag que eram liberados no exílio — são forçados a fazerem parte de um sistema de castas que os pune para o resto das suas vidas.
Eles vivem naquilo que o sociólogo Gresham Sykes chamou de Uma Sociedade de Cativos [A Society of Captives], com os seus peculiares costumes, gírias, rituais e códigos de comportamento — todos os quais foram replicados no gulag, bem como o foram em prisões ao longo de séculos.
As prisões dos EUA — que detém cerca de 20% da população carcerária do mundo, apesar de nós sermos menos de 5% da população global — são formas de controle social, juntamente com a polícia militarizada, as campanhas de propaganda que buscam nos amedrontar e nos tornarem passivos, com a vigilância por atacado de todos os cidadãos e um sistema judicial que despojou os pobres de proteção legal — na verdade, criminalizando a pobreza. A desindustrialização dos EUA e o empobrecimento da classe trabalhadora, especialmente as pessoas de cor, efetivamente excluiu muitas pessoas da sociedade, transformando-os em párias que vivem em colônias internas sob o tacão de exércitos paramilitares de ocupação.
Assim como sob Stalin, o sistema legal dos EUA compartilha uma predileção por quotas, determinando por antecipação o número de prisões que eles precisam, frequentemente por não-crimes tais como vender cigarros avulsos ou ter uma lanterna quebrada no carro. Muitos departamentos de polícia, escritórios de promotoria pública e até mesmo alguns condados nos EUA dependem da renda gerada por detenções, multas de trânsito e outras e o confisco de ativos civis — uma forma de roubo legalizado pelo qual o estado pode confiscar ativos — incluindo dinheiro, automóveis e lares, que estariam alegadamente ligados a atividades ilegais, geralmente sem requerer uma convicção, nem sequer um indiciamento criminal. Um relatório da publicação Governing — uma revista de pesquisa e análise focalizando em políticas locais e estaduais — revelou que quase 600 pequenas localidade e cidades nos EUA obtém mais de 10% dos seus orçamentos totais com tais meios. Isto aumentou, chegando a 20% do orçamento em pelo menos 284 localidades e cidades e para mais de 50% em 80 delas.“Procure por corajosos na prisão”, escreveu Solzhenitsyn no Arquipélago Gulag, ecoando um antigo provérbio, “e procure os estúpidos dentre os líderes políticos!”
O poder deste livro — discutivelmente uma das maiores obras de não-ficção do século XX — é que ele é tanto uma meditação sobre o poder, a resistência e uma vida moral, quanto é uma crônica do gulag. Solzhenitsyn, que era formado em uma universidade e foi Capitão do Exército Vermelho quando foi preso, vestiu o seu velho casaco de oficial para lembrar aos guardas e seus companheiros zeks sobre o seu status anterior. Ele teve que aprender a livrar-se da arrogância e a soberba que veio com s sua elevada posição na sociedade. Ele escreveu que o orgulho “cresce no coração humano como a banha num porco”. A intoxicação do poder é um forte incentivo para cometer o mal. Poucos estão isentos disso.
“Se a minha vida tivesse resultado diferir disso, será que eu me tornaria um carrasco desses?”, escreveu ele, sugerindo que todos devam fazer-se esta pergunta.
“Se fosse tão simples”, ele lamentou. “Se houvesse pessoas más cometendo insidiosamente ações más em algum lugar, e se fosse necessário separá-los do resto de nós e destruí-los. Porém, a linha divisória entre o bem e o mal atravessa o coração de cada ser humano. E quem está disposto a destruir uma parte do seu próprio coração?”
A iniciação de cativos nesta sociedade começa com uma prisão, um impulso destruidor, uma expulsão, um salto mortal de um estado para outro”. Isto joga as vítimas em algo que ele chama e “um sistema subterrâneo de descarte de esgoto”.
“Cada um de nós é um centro do Universo, e este Universo é estilhaçado quando chiam para você, “Esteja preso”, ele escreveu.
Mas isto é só o começo. O interrogatório vem a seguir, projetado para coagir uma confissão. As táticas diferem um pouco através de culturas ou períodos da história. Supressão de sono. Intimidação física. Mentiras. Isolamento prolongado. A “linha de montagem” — interrogação contínua por horas e dias sem fim. Meus estudantes conheciam por experiência própria aquilo que Solzhenitsyn descobriu por si próprio, que “é muito mais esperto desempenhar o papel de alguém tão improvavelmente imbecil, que ele não consegue se lembrar de um único dia da sua vida, mesmo arriscando ser espancado”.
Ele perguntou: O que “você precisa para fortalecê-lo a não ser o interrogador e a armadilha toda”?
Ele escreveu:
“À partir do momento em que você vai para a prisão, você deve deixar o seu acolhedor passado para trás. No limite, você deve dizer à si mesmo: ‘Minha vida acabou, certamente um pouco cedo demais, mas não há coisa alguma a ser feita a este respeito. Eu jamais voltarei à liberdade. Estou condenado a morrer — agora, ou um pouco mais tarde. Porém, na verdade, mais tarde será mais difícil; portanto, quanto mais cedo for, melhor será. Eu não tenho mais qualquer propriedade. Para mim, todos os que eu amo morreram e para eles, eu morri. A partir de hoje, o meu corpo é inútil e estranho para mim. Somente o meu espírito e a minha consciência permanecem sendo preciosos e importantes para mim”.
Confrontado com tal prisioneiro, o interrogador tremerá.
Apenas o homem que renunciou a tudo pode ter esta vitória.
Solzhenitsyn argumentou que a esperança que não se baseia na realidade é um dos maiores pacificadores nas sociedades tirânicas: a crença de que, em última análise, a justiça prevalece, que a anistia está no horizonte, que a sentença de prisão vitalícia será comutada, que aparecerão novas evidências que resultarão em um julgamento justo e na liberdade. Esta falsa esperança, a qual Solzhenitsyn afirma ser similar à crença religiosa entre os prisioneiros, é debilitadora.
“Será que a esperança fortalece, ou será que enfraquece um homem?”, perguntou Solzhenitsyn. “Se o home condenado em cada cela houvesse enforcado os carrascos quando eles entrassem e os houvesse estrangulado, isso não haveria acabado com os carrascos mais cedo do que os recursos jurídicos ao Comitê Executivo Central russo? Quando a pessoa já está à borda da cova, por que não resistir?”
Ele prossegue: “Ao final de contas, nós nos acostumamos a considerar como valor apenas o valor na guerra (ou o tipo de valor que é necessário para voar aos espaços siderais), o tipo de valor do tilintar de medalhas. Nós nos esquecemos de um outro tipo de valor – um valor civil. E isso é tudo que a nossa sociedade precisa, só isso, só isso, só isso! Isso é tudo que necessitamos e é exatamente isso que não temos”.
A esperança é muito mais intangível. Ela é a capacidade de manter a sua humanidade, a sua dignidade e a sua autovalorização em situações extremas — tudo aquilo que as prisões tentam esmagar. Solzhenitsyn escreveu sobre um incidente no Campo Samarka em 1946, quando um grupo de intelectuais que enfrentavam a morte iminente, desgastados pela fome, pelo frio e pelos pelotões de trabalhos punitivos. Eles formaram um seminário e davam palestras uns para os outros, mesmo que os participantes morressem lentamente e fossem levados ao necrotério.
A esperança intangível é a razão pela qual as horas despendidas na sala de aulas de uma prisão podem ser sagradas. Elas restauram e nutrem a humanidade e a dignidade dos demonizados. Pela experiência de outros, é possível ver a nossa própria experiência e para nos relembrar que não somos aqueles cuja autoridade nos diz quem somos.
Solzhenitsyn via naqueles que se rebelam — mesmo que a rebelião fracasse – o único caminho para a liberdade. Ele escreveu que cada ato de rebelião cria rachaduras imperceptíveis nos edifícios totalitários.
Solzhenitsyn descreveu uma rebelião solitária no gulag:
“Na primavera de 1947, na Kolyma, perto de Elgen, dois guardas de comboio estavam conduzindo uma coluna de zeks. De repente, um dos zeks, sem qualquer combinação com outros, atacou habilmente os guardas de comboio sozinho, os desarmou e atirou em ambos. (O nome dele é desconhecido, mas resulta que era um oficial militar que esteve recentemente na frente de batalha. Este foi um exemplo raro e brilhante de um soldado de frente de batalha que não perdeu a sua coragem num campo!). O audaz oficial anunciou à coluna que eles estavam livres! Mas os prisioneiros estavam dominados pelo horror; ninguém seguiu a liderança dele e todos se sentaram ali mesmo e esperaram por uma nova escolta. O oficial os envergonhou, porém em vão. Então, ele pegou os rifles (trinta e dois cartuchos, “trinta e um para eles!”) e foi embora sozinho. Ele matou e feriu diversos perseguidores e, com o trigésimo-segundo cartucho, ele se matou. O Arquipélago inteiro poderia ter entrado em colapso caso todos os antigos soldados de frentes de batalha tivessem se comportado como ele.”
O percurso de Solzhenitsyn no gulag foi tanto uma jornada espiritual quanto física. Esta jornada ressoou com os meus estudantes, alguns dos quais entraram na prisão como analfabetos, ou minimamente alfabetizados, e que trabalharam obstinadamente para entrar no programa da faculdade. Aqueles que tinham longas penas frequentemente diziam às suas esposas para pedirem um divórcio; diziam às suas namoradas para encontrar outra pessoa; as suas mães, pais e irmãos, diziam para pararem de visita-los; e aos seus amigos e parentes, diziam que pensassem neles como se estivessem mortos.
Aqueles que melhor sobrevivem na prisão são dotados de uma antena e de uma inteligência emocional que lhes permitem ler rapidamente as pessoas que estão ao seu redor; eles sabem em quem confiar e quem devem evitar. Os dedos-duros são especialmente perigosos na prisão. Geralmente, eles são as primeiras pessoas que organizam levantes na prisão, inclusive aqueles do gulag; eles são os primeiros a serem mortos pelos seus companheiros de prisão.
Solzhenitsyn escreveu o seguinte:
“E sempre o relé secreto do sensor – pela criação do qual eu sequer merecia um mínimo de crédito – funcionava antes mesmo que eu me lembrasse que ele estava lá, funcionava na primeira olhada de uma face e dos olhos de um ser humano, no primeiro som da sua voz; de modo que eu abria o meu coração para aquela pessoa totalmente, ou apenas uma pequena fresta, ou eu me fechava e o evitava completamente. Isso era tão consistentemente infalível, que todos os esforços dos oficiais da Segurança do Estado para usar dedos-duros começaram a me parecer tão insignificantes quanto ser molestado por mosquitos: ao final de contas, uma pessoa que era tida como um traidor sempre trai este fato com a sua face e a sua voz; apesar de alguns serem mais hábeis na farsa, sempre havia alguma coisa que cheirava mal neles.”
Os prisioneiros não podem se dar o luxo de serem não-violentos. Aqueles que não se defendem em altercações físicas são esmagados. “Pessoas que tem expressões afáveis e conciliatórias morrem rapidamente nas ilhas”, ele advertiu. Ninguém lutará para proteger você, apesar que algumas vezes eles lutarão ao seu lado.
Ele insistia que os prisioneiros tinham um mandamento complexo: “Não confie, não tema, não mendigue!”
Somente abrindo mão da honra, das posses materiais, da lascívia pelo poder, das vantagens pessoais e até mesmo da sua vida é que você pode proteger a sua consciência e a sua alma.
“Não busque aquilo que é ilusório – as propriedades e a posição social: tudo que é ganho às custas dos seus nervos, década após década, é confiscado em uma única noite”, ele escreveu. “Não tema o infortúnio e não anseie pela felicidade; ao final de contas, isso é tudo igual: o amargo não dura para sempre e o doce jamais enche o copo até transbordar”.
Eu começo todas as aulas pedindo que um estudante resuma o capítulo que está sendo discutido. Eu designei um capítulo no segundo volume, intitulado “A Ascenção” ao Luís – que cresceu na pobreza, num projeto de habitações populares e foi aprisionado com a idade de 16 anos, depois de ter roubado uma joalheria. O seu cúmplice deu um tiro e matou o dono da joalheria. Luís passou 31 anos na prisão por assassinato à mão armada.
Solzhenitsyn escreveu que os prisioneiros podem escolher sobreviver a qualquer custo – o que geralmente significa “às custas de outro”. Ou eles podem passar por “um profundo renascer enquanto ser humano”.
Luís passou para a passagem que diz: “Vamos admitir a verdade: Naquela grande bifurcação na estrada do campo, naquele grande divisor de almas, não era a maioria dos prisioneiros que escolhia a direita. Infelizmente, não era a maioria. Mas, felizmente, não foram apenas alguns. Há muitos deles – seres humanos – que fizeram esta escolha”.
“Não é o resultado que conta! Não é o resultado – mas é o espírito! Não é o que – mas o como. Não é o que foi conseguido – mas, sim, por qual preço”, escreveu Solzhenitsyn.
Eu ouvi a voz embargada do Luís. Ele lutou contra as lágrimas. Ele não estava só falando sobre a transformação de Solzhenitsyn, mas da sua própria transformação – e a dos outros estudantes na classe.
“Olhando para trás, eu vi que, durante a minha vida consciente inteira, não havia compreendido nem a mim mesmo, nem aos meus esforços”, lembra-se Solzhenitsyn. “Aquilo que, durante tanto tempo, parecia ser benéfico, agora revelava-se ser fatal e que eu estava me esforçando para ir na direção oposta ao que era verdadeiramente necessário para mim”.
“E é por isso que eu revejo os anos da minha prisão e digo, algumas vezes para espanto dos que estavam no meu entorno: ‘Abençoada sejas, prisão!’”, ele escreveu.
Uma semana depois daquela aula, eu assumi o banco de testemunhas de um tribunal do estado de New Jersey, durante a audiência de recurso judicial de Luís. Eu contei ao tribunal sobre a aula. Eu contei a eles que Luís foi tomado pela emoção, porque aquele era um capítulo que ele mesmo, e a maioria dos meus estudantes, poderia ter escrito.
Luís foi libertado em 15 de dezembro último, um menino que cresceu dentro de uma prisão, um homem que, assim como Solzhenitsyn, se tornou um ser humano moral. Eu não sou um romântico sobre o sofrimento. Eu vi muito disso como correspondente de guerra. O sofrimento pode destruir você. Mas ele também pode elevá-lo. A tragédia é que Luís deixa para trás tantos homens e mulheres.
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