Encaixotando Eric Clapton
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Na impossibilidade de encontros presenciais, os aplicativos de bate-papo têm conseguido minimizar a saudade que sentimos de parentes e amigos. É claro que jamais substituirão a mesa do bar, o almoço de domingo em família, o encontro antes do início de uma peça de teatro, o sambão no quintal, um show ou aquela conversa vã numa barraca de praia. Esse tipo de aplicativo é o que se tem. Pelo menos para aqueles que ainda podem se manter em isolamento, uma vez que a maioria da população brasileira não pode, pois está entregue à própria sorte, tendo sido obrigada pelos donos do poder a se expor ao vírus, pra máquina capitalista continuar funcionando.
E eis que por meio de um desses aplicativos um amigo de longas datas me envia algumas imagens de caixas e mais caixas. Em seu interior, CDs e livros, principalmente. As imagens me chamaram atenção, tendo em vista que muitas das pessoas que já passaram dos cinquenta não costumam abrir mão dos bens materiais que lhe formaram culturalmente. Trata-se de uma geração que, mesmo reconhecendo o valor, dá de ombros para os livros digitais, bem como pra música por streaming, por exemplo.
O flagelo que assola o país, e que já vai assassinando mais de meio milhão de brasileiros e brasileiras, não permite que pessoas politicamente alfabetizadas fiquem inertes frente a tanto descalabro. Registre-se que não há espaço para “isentos” e extremistas, quando a educação é libertadora, muito pelo contrário. Em tempos sombrios, de avanço de ações políticas neofascistas, a tomada de posição em defesa do Estado Democrático de Direito, assim como de tudo que por ele é garantido, é imprescindível.
Inaceitável é que vozes sejam silenciadas e cidadãos sejam constrangidos, autuados e presos por defenderem a vida, a decência e a democracia. Há algo de muito podre no reino da Bruzundanga, que deixaria Lima Barreto de cabelo em pé, e que faz a tragédia Tito Andrônico, de Shakespeare, parecer-nos tão próxima, uma vez que não temem cortar nossa língua, braços e mãos. E, nesse teatro de vampiros, como nos diz Renato Russo “os assassinos estão livres”.Nas caixas do meu amigo estavam vários livros. Entre tantos, aqueles de um autor latino-americano, ganhador do Nobel, extremista, defensor de tudo que é execrável na política e na vida. Um maravilhoso escritor, mas um ser humano desprezível. Fazendo companhia ao autor que não merece ser mencionado, cantores e compositores que apoiaram o golpe de 2016 contra a presidenta Dilma Rousseff, que nas suas entrevistas para além-mar diziam cobras e lagartos dos programas de inclusão social do PT, e que hoje, quando o Brasil volta ao mapa da fome e afunda na miséria, estão caladíssimos, coniventes com o ambiente de terra arrasada que se vê por aqui. Enfim, a hipocrisia!
Alguns desses “artistas” - e são muitos, dizem que “votaram em branco” em 2018 ou se dizem “arrependidos” de terem ajudado a eleger o macaco guariba. Seja como for, esse meu amigo resolveu dar um basta e limpar sua casa desse tipo de idiota útil. Não há razão, disse-me, para desperdiçar tempo e dinheiro com gente aporofóbica num país pobre, negro e racista. Assim, bandinhas que defenderam e ovacionaram em seus shows o juiz ladrão, por exemplo, jazem nas caixas. Lá estão “sepultados” também os extremistas, isentões e “mudos” (os “mudos”, no caso, são aqueles e aquelas que têm as mãos sujas de sangue, mas que continuam calados. Esses são os piores, disse-me ele).
Enquanto as imagens me eram enviadas, ele já procedia ao encaixotamento de Eric Clapton, cujas declarações racistas, bem como suas recorrentes divulgações de fake news acerca da eficácia das vacinas contra Covid-19 foram a gota d’água. Não houve despedida ao deus da guitarra, assim como também não houve para os medalhões da MPB. As caixas foram todas doadas. Nenhuma dessas vozes, jamais, em tempo algum, terão acolhida naquela casa, cujo ar já se sente mais respirável. Que descansem em paz!
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