Em obra exemplar, a gritante atualidade de Toussaint Louverture (1740-1803)

"Toussaint Louverture (1740-1803) foi um dos personagens principais das lutas de libertação da América Latina", diz Paulo Moreira Leite

 O General e ex-escravo rebelde Toussaint Louverture, fundador da República do Haiti, em pintura da época
 O General e ex-escravo rebelde Toussaint Louverture, fundador da República do Haiti, em pintura da época


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Por Paulo Moreira Leite

Num momento em que a sucessão presidencial marca a conjuntura política de vários países da América do Sul, vale a pena encarar as 583 páginas de "O maior revolucionário das Américas: a vida épica de Toussaint Louverture", recém chegado às livrarias do país.

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Nascido numa família de escravizados da colônia francesa Saint Domingue, mais tarde batizada como Haiti, Toussaint Louverture (1740-1803) foi um dos personagens principais das lutas de libertação da América Latina.  

Toussaint liderou, organizou -- e armou -- a população negra para enfrentar e derrotar a escravidão, num processo que levaria o país a proclamar sua independência, numa mudança  com poucos  paralelos na região.  

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Sabemos que em boa parte dos países latino-americanos, o caminho para a autonomia nacional acabou  construído através de um pacto com os novos senhores. 

Assim, uma elite colonial de origem espanhola e/ou portuguesa afastou-se das casas imperiais de Madri e Lisboa para servir à potência global da época, o Império Britânico, que dispunha de capital e canhões para garantir uma transição sem atropelos, evitando que a separação com a antiga metrópole abrisse caminho para a ascensão de lideranças nativistas,  boa parte delas com ideias republicanas. 

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Entre vários exemplos deste processo, o caso   brasileiro talvez seja o mais conhecido e mais típico. Num território onde a emergência de forças sociais mobilizadas pela ideia de independência deu origem à Confederação do Equador, em Pernambuco, ou à  Inconfidência Mineira, em Ouro Preto, uma fatia da Casa Orleans e Bragança abriu os cofres enriquecidos pelo ouro e demais riquezas da colônia para garantir uma continuidade sem conflitos maiores. 

Comprou os serviços da esquadra de Lorde Cochrane, mercenário a serviço do Império Britânico que não só garantiu uma transição em família, mas também preservou um aspecto essencial da ordem social -- o trabalho escravo e a submissão das nações indígenas --, além de evitar que a independência abrisse as portas a processos autônomos, quem sabe democratizantes.   

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Em Saint Domingue, o país de Toussaint, o processo seguiu outro curso, num ambiente de mobilização popular e  luta revolucionária. 

Saint Domingue ainda era uma colonia, em 1801, quando seus cidadãos, reunidos em assembléia, decidiram abolir a escravidão "para sempre", numa decisão que chama atenção pelo calendário da região. 

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A  vitória de Abraham Lincoln na Guerra de Secessão, que eliminou a escravidão nos Estados Unidos, só iria ocorrer 65 anos depois da histórica decisão de Saint Domingue. A lei Áurea que extinguiu o cativeiro no Brasil só seria assinada por Izabel 87 anos mais tarde, numa delicada negociação que impediu qualquer indenização à população negra e preservou as regras excludentes sobre a propriedade da terra.  

Com auxílio de uma potência intelectual respeitável,  Sudhir Hazareesing, acadêmico dedicado a estudar ideias políticas que marcaram a história da França e Inglaterra, "O maior revolucionário..."combina erudição e engajamento para narrar uma epopeia gigantesca, onde se aprende lições essenciais sobre as ideias políticas, frequentemente ameaçadas pelos interesses materiais das camadas com acesso ao poder e ao dinheiro.  

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Assim, sob o comando de Napoleão Bonaparte,  a mesma França  que pregava Liberdade, Igualdade e  Fraternidade para seus cidadãos, mobilizou homens e armas para  organizar uma expedição de 20.000 soldados para invadir Saint Domingue na esperança de revogar a abolição. 

Apesar do esforço da Metrópole, do ponto de vista prático o efeito foi um desastre. A operação acabou estimulando a resistência da população nativa, que em janeiro de 1804 proclamaria a independência -- processo que o próprio Toussaint não tinha muita pressa em consumar.

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Do ponto de vista do futuro da região, o desastre foi ainda maior. Desorganizou um sistema político em construção para dar lugar a um deserto institucional que, salvo exceções de sempre, permanece até hoje.   

Interessado em eliminar Toussaint da cena política, cuja liderança era vista como ameaça em Paris,  Napoleão cometeu um crime à luz do dia: determinou que ele  fosse capturado em Saint Domingue e deportado com a família para a França. 

Ali, num momento em que povos e países definiam seu destino em várias partes do mundo, o principal líder político do futuro Haiti   foi internado no Forte de Joux, fortaleza na fronteira com a Suíça, de onde sairia sem vida, oito meses depois -- contaminado por uma pneumonia, doença sem cura pelos conhecimentos da medicina da época, mas que podia ser provocada para eliminar personalidades indesejáveis. 

Nunca se saberá o que poderia ter acontecido caso o desfecho dessa história tivesse sido diferente. Toussaint movia-se numa realidade áspera mas possuía um raro senso de equilíbrio político.  Possuía uma clareza radical nos objetivos que pretendia alcançar, mas era ponderado nos métodos empregados para chegar onde pretendia. 

Não abria mão da abolição da escravatura, linha divisória no universo de seu tempo. Mas não tinha pressa numa independência que provocasse uma ruptura com a França -- que só iria ocorrer após sua morte -- e era capaz de enxergar uma existência de cooperação com os Estados Unidos da América, império ainda em construção no período. 

Na conclusão de "O maior revolucionário das Américas...", Sudhir Hazareesingh produz uma reflexão aprofundada em torno da herança de seu personagem. 

Recorda a presença de suas ideias no trabalho de pensadores influentes  como Edward Said, autor do clássico Cultura e Imperialismo,  do poeta Aimé Césaire, criador do conceito de negritude. Hazareensingh também lembra que Toussaint foi homenageado pelo rock de Carlos Santana e pelo  jazz de Duke Ellington, além de ter sido retratado num quadro de Jean-Michel Basquiat. 

"Toussaint é muito mais do que uma relíquia gloriosa, a ser mencionada em aniversários oficiais", escreve.  "Serve como lembrete de que as injustiças globais de hoje, dentro das sociedades e em todas as sociedades, têm profundas raízes históricas". 

Dois séculos e 20 anos depois de um homicídio programado, a herança de Toussaint Louverture permanece como uma inspiração necessária  em momentos de mudanças históricas.   

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