Elegia do Z

"Em Berlim a letra 'Z' está sob suspeita", escreve Flávio Aguiar

(Foto: Alexander Ermochenko/Reuters)


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Por Flávio Aguiar 

(Publicado no site A Terra é Redonda)

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Li, com certo espanto, mas não muito,

Dados os tempos em que vivemos,

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Que em Berlim a letra “Z” está sob suspeita,

Por ser usada pelos tanques russos

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Como identificação na guerra aqui por perto.

Ela pode ser usada, mas com moderação,

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Dependendo da circunstância e da ocasião,

Sempre a critério da autoridade

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Que, dizem, saberá usá-lo com precisão.

Minha companheira Zinka Ziebell

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Ficou preocupada, e eu também:

Serão dois “Zês” no nome um excesso,

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Um sinal de exagero na expressão,

Uma herança maldita dos ancestrais

Que pode levá-la até à prisão?

Com tais receios na mente

Passei uma noite febril e fremente

Com sonhos no varejo e no atacado.

Num deles, com horror eu via

O alfabeto deitado em mesa de cirurgia

Como naquele célebre quadro

Da Lição de Anatomia,

Sendo esquartejado por sérios doutores,

Sem gargantilha, mas de colarinho branco,

Embora alguns envergassem a toga

Quais fossem juízes de laço e tesoura.

Quis correr às letras, em seu socorro,

Mas me detive ao ouvir um dos doutos

Pronunciar com ar grave e soturno:

“Comecemos proibindo ‘A marca do Zorro’”,

Ao que outro, pondo sobre o Z seu coturno,

Respondeu: “é boa medida, e também,

Ponhamos em nossa agenda

Proibir ‘O prisioneiro de Zenda’”.

O pé sobre o “Z” causou grande tumulto

Sobretudo nas letras próximas:

Tremeram o “Y”, o “X”, com razão,

Pois logo foram levadas de roldão

Na implacável razzia

E sem qualquer culpa formada:

Seu dolo era serem letras, mais nada.

Uma se foi por ser o “X” da questão,

E a outra por ser a letra inicial

De nomes como Yuri, Yashin,

Levando juntos no mesmo abraço

Cosmonauta e goleiro, submetidos,

No pescoço, pelo mesmo baraço.

E logo outro douto sugeriu:

“Cortemos também o ‘V’ de Vladimir,

E o ‘P’ de Putin não há de sobrar!

E mais adiante sugeriu um mais afoito:

“Voltemos aos velhos tempos,

Cortemos também o ‘L’ de Lênin

E o “T” de Trotsky, o “M” de Maiakovsky,

O ‘D’ de Dostoievsky e o ‘Ch’ de Chostakovitch”.

Distante, a tudo observava o “A” arrogante,

Pensando: “É tudo muito longe…

Afinal, trata-se do “Z”, dos confins do alfabeto…”

Mas logo um novo censor, com ar muito matreiro

Foi dizendo, com jeito de brasileiro frajola:

“Mandemos pro balaio o ‘B’ de Brizola,

Político esperto que nem saracura,

‘B’  que também é de Baiano, antigo apelido

De Luiz Inácio da Silva, o Lula”.

E assim foram caindo, uma a uma,

Todas as letras, sem exceção…

Não escapou de tal sanha desabrida

Nem mesmo o “Z” de “orgasmo”

Retalhado por censor de incontido

Esgar, com satisfeito espasmo.

No imenso alarido de desolação

O “H” ficou mudo, pensando assim escapar.

Mas a fuga foi só uma vã ilusão

Pois logo um censor o agarrou pelas aspas

Vociferando: “estás em Hiroshima,

Em Holocausto, e nos muitos massacres do Hebron,

Coisas que devemos banir da lembrança,

Antes que com sua dolorosa presença

Nas mentes façam muita lambança”.

Já estava tudo demais de quieto

Quando surgiu uma letra muito apressada:

Era o “U” querendo fazer uma delação premiada!

Foi acolhido por um censor togado

Que declarou, sem se fazer de rogado,

Com ar de sibilino monge:

“Eu sou o conhecido juiz Conge,

Com meu brilhante assistente

Espevitado e magro como um anzol,

O famoso doutor Daranhol.

Dize-me o que queres delatar

E teu caso vou então ajuizar”.

“Pois veja”, disse o “U” todo trêmulo,

“Sou o U de Ucrânia e para merecer vosso perdão

Denuncio meu êmulo co-irmão,

O “U” da palavra Rússia: este sim

Deve ser banido por subversivo”.

Depois de rápida conferência

Com seu preclaro assistente,

Manifestou-se assim o douto censor,

Demonstrando ajuizado crivo:

“Ide em paz, U de Ucrânia;

Acolhemos tua denúncia

Pois nesta palavra és

De inocente pronúncia.

De resto, se condenamos o ‘Z’ dos tanques,

Saudamos o Z de Zelensky, nosso herói da ocasião;

Vós sois, como o ditado prega,

As nobres exceções

Que confirmam a regra!”

Mas não parou por aí o massacre

Perpetrado por aquela gente

Vetustamente vestida como um Quacre.

E assim foram banidos

De todos os livros de Geografia

Lugares como Zanzibar, Zâmbia, Zimbábue,

E como se fossem bandidos

Foram riscados dos livros de Filosofia

Gente como Zoroastro e Zaratustra,

E ainda que fossem ariscas

Todas as zebras perderam suas riscas

No livro de Zoologia, que passou a chamar-se

Tão somente Oologia.

A “Zabumba” saiu da Música,

E como na antiga lenda

Zumbi preferiu jogar-se de um penhasco

A ver-se de novo escravizado

Por aqueles senhores de ódio e asco.

Em meu sonho eu já estava atarantado

Com aquela loucura desatada

Quando vi um pouco mais adiante

Outra mesa de cirurgia,

Em que idêntica operação se fazia,

Retalhando e matando outro alfabeto.

Embora estranho para mim

Reconheceu meu conhecimento empírico

Que tratava-se do alfabeto cirílico,

E sem conhecer a língua que usavam

Minha consciência já tão aflita

Pode ver que os outros censores

Falavam com sotaque moscovita…

“Guerra é guerra”, pensei

Com meus tristes botões,

“Trata-se de entronizar a insânia

E de banir com feroz impaciência

Toda forma de inteligência,

Reduzindo a um branco e preto iracundo

Toda a riqueza colorida do mundo”.

Notei que os alfabetos assim destroçados

Pegavam fogo e deles as cinzas juntas caíam

Em jazigo comum depressa cavado.

Aproximei-me do buraco maldito

E vi que naquele borralho improvisado

Algumas brasas ainda bruxuleavam

Depois de passarem por tais Inquisições desalmadas.

Vi, com renovada esperança,

Que ali ardiam, como almas penadas,

O “Z” em “Poesia” escondido,

O “Z” de “Ousadia” disfarçado,

E também o “Z” de Zênite declarado.

E dali elas e outras letras foram se elevando

Por um celeste Zimbório protegidas,

Fugindo das garras dos perseguidores

E no meio delas reluzia

A palavra Liberdade – ainda que tardia.

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