Eduardo Leite, Jean Galtier- Boissière e a França de Vichy
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O Governador do Rio Grande do Sul Eduardo Leite foi correto em assumir publicamente a sua homossexualidade, ato louvável que todos devemos apoiar. Afinal, em pleno século XXI, já nem deveria haver mais espaço para preconceitos que, infelizmente, ainda causam tantos traumas e sofrimento.
Porém, resta o fato de que o Sr. Eduardo Leite votou no homofóbico Jair Bolsonaro para presidente, o que, diante de sua revelação, não deixa de surpreender. Segundo a declaração do Governador:
"As declarações de intolerância que o presidente tinha tido no passado me pareciam, naquele momento, embora preocupantes, ter menos espaço para se apresentarem de forma prejudicial ao país, tendo em vista que temos instituições fortes que garantiriam que a posição homofóbica dele não significasse política pública contrária a gays. Então a gente tem que analisar esse erro e aprender com ele pra não cometer mais esse erro no futuro".
Em seguida, o Governador afirmou, atacando o PT:
"Não vamos nos resignar em sermos levados a um segundo turno como em 2018, em que tenhamos que escolher entre um projeto ruim e outro igualmente ou pior. Temos que construir alternativas para construir um Brasil novo. Não me manifesto sobre esse cenário de segundo turno porque vou trabalhar para que ele não aconteça.”
É preciso dizer, em primeiro lugar, que chamar de ‘declarações de intolerância’ as repetidas agressões e ameaças de Jair Bolsonaro aos homossexuais já é minimizar a sua gravidade e as suas consequências. Nem tampouco suas declarações se situam num passado distante, dando a entender que deste então o Presidente teria evoluído e mudado sua posição. O Governador prefere ignorar que as ‘declarações de intolerância’ do atual Presidente da República tem alimentado e aumentado a violência cotidiana, a perseguição e o assassinato da população LGBT. E não sei como o Sr. Eduardo Leite qualificaria as também repetidas declarações de admiração do candidato que recebeu o seu voto pelo Coronel Brilhante Ustra, um torturador. Ou será que defender um torturador é também, apenas, mais uma ‘declaração de intolerância’ ? Mas, apesar destes exemplos do caráter e das intenções do candidato no qual o Governador votou para presidente, este considera que em 2022 não devemos ter que escolher entre um ‘projeto ruim’ – como ele agora considera o governo do Presidente Bolsonaro – e outro igual ‘ou pior’ – no caso o PT. O Governador do Rio Grande do Sul repete o discurso mais reacionária, delirante e irresponsável de grande parte da direita brasileira – a de que o ex-Presidente Lula é igual ou ainda pior do que o atual Presidente Jair Bolsonaro.
Este ataques, porém, feitos praticamente ao mesmo tempo em que o Sr.Eduardo Leite assume publicamente a sua homossexualidade, não são uma coincidência, são uma mensagem. Ao declarar que o ex-Presidente Lula e o PT são iguais ou piores que o atual Presidente e seu governo, o que o Governador está dizendo é que ele é gay, sim, mas é um gay ‘do bem’, que aceita e defende as hierarquias impostas pela ordem neoliberal e que continua leal às mesmas forças do mercado que conduziram Jair Boslonaro à Presidência. Ao reafirmar, deste modo, o seu compromisso de classe, o Sr.Eduardo Leite espera contar com a solidariedade e a proteção reciproca desta mesma classe. Os homossexuais não-brancos e pobres, os que questionam a supremacia e as prioridades do capital, que sempre os excluem, seguirão sendo as vítimas permanentes da violência intrínseca da política econômica defendida pelo Sr.Eduardo Leite, a mesma de Jair Bolsonaro, daí o seu voto neste candidato na última eleição. Do ponto de vista do Governador, qualquer alternativa ao neoliberalismo de Bolsonaro, como a apresentada pelo PT, só pode ser ‘pior’; do mesmo modo que o ex-Presidente Lula só pode ser ‘igual ou pior’ do que o homofóbico admirador do Coronel Brilhante Ustra.
Este atitude do Sr.Eduardo Leite me lembrou de um episódio passado na França ocupada pela Alemanha nazista.(Já escrevi em um outro texto sobre certas semelhanças entre o Brasil do pós-golpe e a França de Vichy - https://jornalggn.com.br/literatura/o-brasil-vichy-e-os-anos-negros-por-franklin-frederick/amp/).
Uma das fontes de informação mais importantes sobre o período da ocupação da França pelos nazistas são os diários de Jean Gaultier-Boissière (1881-1966), comparáveis às memórias de Simone de Beauvoir sobre o mesmo período. Antiracista, antinazi, pacifista de esquerda, criador do jornal ‘Le Crapuillot’ durante a Primeira Guerra Mundial, o memorialista Gaultier-Boissière foi um observador atento e irônico da França ocupada, seguindo de perto sobretudo as carreiras dos seus contemporâneos que se tornaram colaboradores do regime de Vichy instalado pelos nazistas.
Abel Bonnard, escritor que se tornou um membro importante do governo de Vichy é um nome que aparece repetidas vezes nos diários de Gaultier-Boissière. Simone de Beauvoir também o menciona em suas memórias, anotando, por exemplo, a euforia de Bonnard com a vitória de Franco na Guerra Civil Espanhola em 1936. A partir de 1942, sob a ocupação, Bonnard se tornou Ministro da Educação Nacional e foi responsável por afastar Simone de Beauvoir do ensino universitário, como ela própria relata. Bonnard defendia que a educação não deveria ser extendida ao ‘povo’ ou às mulheres, devendo ser exclusiva de uma ‘elite’ (qualquer semelhança com o pensamento de alguns ilustres ministros da educação do atual governo é apenas uma coincidência...). Durante sua gestão como Ministro, Bonnard também foi responsável pela expulsão de todos os judeus que tinham postos de trabalho dentro das instituições de educação nacional. Mas Bonnnard era conhecido pelo público francês da época sobretudo pela sua reputação de homossexual, que ele fazia questão de promover e que parecia lhe dar um certo prazer. Bonnard certamente sabia que os homossexuais não eram bem vistos pelo regime nazista, mas estava seguro de que o seu compromisso com a classe dominante, seu antisemistismo, sua defesa dos ‘valores’ arianos e seu apoio e participação no governo colaboracionista o colocava a ‘salvo’ de qualquer perseguição, apesar de sua reputação. Na França ocupada a colaboração com o regime nazista significava, na prática, colaborar com a temida polícia secreta nazista, a Gestapo, sempre à caça de membros da resistência francesa, comunistas, judeus e outros inimigos do regime. Torturas e assassinatos eram comuns nos ‘interrogatórios’ feitos pela Gestapo. Nestas condições, eram muitos os que, por medo, tinham que esconder também suas opções sexuais, para não despertar as suspeitas da Gestapo , seus informantes e espiões.
Jean Gaultier-Boissière cunhou o termo ‘Gestapette’ – Gestapo + Tapette ( gíria para bicha ou maricas em francês) – para designar Abel Bonnard. Esta nova palavra depois entrou na língua francesa com o significado de ‘homossexual masculino com opiniões de extrema-direita’.
No Brasil de Bolsonaro, Gaultier-Boissière certamente iria encontrar muitos ‘Gestapettes’.
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